Companheira onomatopeia…

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– … aí eu falei pra ela que a gente precisava falar mais de Fidel, enaltecer o grande responsável por livrar Cuba do imperialismo estadunidense.

– Uhum.

– Nem todo mundo tem noção do quanto ele foi perseguido ao longo dos anos. E pouca gente sabe que, mesmo assim, ele dizia que sua veste moral valia mais do que qualquer colete à prova de balas. Que líder. Que exemplo.

– Aham.

– Alfredo, você está ouvindo, ou estou falando pras paredes?

– Desculpa, Inês. Minha cabeça está explodindo. Não consigo me concentrar.

– Toma esse remédio aqui. É tiro e queda.

– Glub, glub, glub. Obrigado.

– Enxaqueca?

– Não, acho que é gripe mesmo. Cof, cof, cof, cof, cof.

– Alfredo, que palhaçada é essa?

– Ué, tosse virou palhaçada agora?

– Quando se está tossindo em inglês, sim. E você sabe que inglês é proibido aqui em casa.

– Desde quando tosse tem idioma?

– Alfredo, me dá um beijo.

– Inês, eu acabei de dizer que estou gripado.

– Me dá um beijo agora, Alfredo.

– Smack.

– Aaaai, sai da minha frente seu porco imundo, capitalista opressor, fantoche do patriarcado heteronormativo.

– Inês, você enlouqueceu? Sou tão marxista-leninista quanto você.

– Conta outra. Comunista que se preza não tosse assim, não beija assim, e não pense que eu não estava prestando atenção quando você engoliu aquele comprimido.

– Inês, esse é o jeito que todo mundo tosse, beija e engole há décadas no Brasil.

– Não me venha com desculpa esfarrapada, Alfredo. Nós mesmos cansamos de apresentar seminários sobre o colonialismo cultural e sua dívida histórica. Se você não consegue perceber e superar as influências ocidentais a que fomos submetidos, não sei o que está fazendo ao meu lado.

– Você está exagerando, Inês. Como é que você queria que eu engolisse?

– Ué, como todos nós que defendemos a democracia engolimos. Me dá essa água aqui: gole, gole, gole. Viu? Reparou que nem a linguagem neutra ficou de fora? O mesmo vale pra toce, toce, toce, e pro chamego de um iurupyté. Beijei minha mão porque não quero nem chegar perto de você.

– Iurupyté?

– É beijo em tupi, nossa verdadeira língua materna, herança dos povos originários deste grande país. E você não ter um conhecimento básico desses só aumenta a minha decepção.

– Ah, Inês, deixa de brabeza. Sabia que eu fiquei salivando com esse iurupyté? Vamos ali pro quarto, vamos? Aquela dor de cabeça já passou.

– Ai, Alfredo, não resisto quando você chega com essa conversa mole, cheio de vontade de começar um fuk-fuk.

– Não seria coite-coite?

– Nossa, Alfredo, você sabe acabar com o clima, não é?

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Filho de rio…

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Meus pés descalços caminhavam pelo leito de seixos. A água cristalina, aquietada em um pequeno remanso, movimentava-se a cada passo meu. Sentei-me em uma pedra alongada que se oferecia à margem. Foi quando notei a curva que o riacho fazia logo adiante, escondendo-se na mata espessa. O pequeno projeto de rio desaparecia na minha frente e eu sabia que seu destino final era o mar. Então, abundantes como as águas que me banhavam, as lágrimas brotaram…

Era para ser só mais uma caminhada. Trilhas cortando o cerrado, cheiro de mato misturado ao da chuva da véspera, barro que aumentava o peso das botinas a cada passada, árvores de troncos tortuosos e pássaros coloridos em revoada. De tempos em tempos, abriam-se mirantes para os vales entre as montanhas. Em Minas, o horizonte nunca é uma linha reta. Sucedem-se picos e talvegues, aclives e declives, altos e baixos. Quem quiser saber como é a vida, basta vir a Minas e olhar para o horizonte.

A trilha terminava em uma pequena cachoeira. Já ouvi dizer que a cachoeira está para o mineiro assim como o mar está para o praiano. Só quem não é de Minas pode pensar assim. Cachoeiras não são programas de toda e qualquer hora. Há que se respeitar a liturgia. Há que se manter a cerimônia. Banhar-se de pura energia é um prêmio a ser conquistado, uma celebração, quase uma bênção. A água com sal relaxa, mas só as quedas de água doce consagram.

Digressões à parte, havia algo de novo naquela trilha. Não era o destino nem tampouco o caminho a ser percorrido. A novidade estava em mim. Dois meses antes, eu me despedira do meu pai. Dois meses antes, o rio de sua vida se dissipara no mar. E rio e mar, aqui, eram bem mais do que meras metáforas.

Ele ainda era um jovem de quase 60 anos quando escreveu um livro que contava aventuras e aprendizados de um rio evoluindo ao longo do seu percurso. Naquela marcha, estava a sua história de vida. Estavam seus valores, seus princípios, suas crenças, narrados por um curso d’água que, desde a nascente, tinha consciência de que brotara destinado a mergulhar no oceano.

“Caminho para o mar” passou a fazer parte da minha vida. Não sei quantas vezes as experiências daquele rio me guiaram. Não sei quantas vezes reli cada um de seus capítulos. Exceto o último. Esse foi lido somente uma vez.

Mesmo ciente de que evitava a mais bela das passagens, em que a plenitude do encontro com o mar é descrita de forma sublime, não conseguia conceber sequer a ideia de me despedir daquele rio. Não a ler era uma forma de postergar o que não pode ser postergado.

De repente, lá estava eu, com minhas lágrimas a alimentar as águas de um riacho que iniciava ali a formação do próprio leito. Sob as copas das árvores que emprestavam a sombra e a reverência de que precisava. Então retirei o velho exemplar autografado que carregava na mochila e li seu capítulo derradeiro. Li em voz alta para que o rio que me tocava também pudesse ouvi-lo.

E ali, pela primeira vez, eu me percebi rio também.

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Capadócia…

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A solenidade estava prestes a começar. A lua, como de praxe, foi a primeira a adentrar o salão. Desfilava, soberana, feito guardiã dos segredos da noite, concubina da claridade. Resplandecia, certa de que – no breu – convidado algum seria capaz de ofuscá-la. Nem a corte de estrelas – poeira de lume na cúpula da madrugada –, nem o temido alvorecer – prisioneiro dos caprichos do horizonte –, nem os olhares que já se aglomeravam nas encostas – peregrinos em busca de policromia. Raios de desdém impediam qualquer aproximação. A lua valsava no vazio.

A convocação veio em forma de labaredas. O primeiro lampejo, embora tímido, foi o bastante para que o luar voltasse sua atenção para outras crateras. Novos fulgores vindos do picadeiro entre os rochedos fizeram com que o brilho empalidecesse. A lua aprendera, depois de um sem-número de rituais, a pressagiar seus últimos instantes de protagonismo. Os feixes de soberba despediram-se, cabisbaixos. Foram-se também as estrelas, antes mesmo que a alvorada conseguisse libertar o sol. As cores ainda espreguiçavam quando o azul se vestiu de céu.

O silêncio havia sido rompido. A brisa, nomeada maestrina de uma orquestra de suspiros, fez das rajadas de calor seu coral. Centenas de vozes puseram-se a inflar egos, a elevar espíritos, a tonalizar expectativas, a conjurar epifanias. A aurora se desdobrava para tingir o vórtice que envolvia o firmamento. Embevecidos, os romeiros bailavam pelo salão, agora despido de véus. Uns arriscavam-se em movimentos bruscos. Outros – ainda mais ousados – trocavam breves carícias antes de seguirem direções opostas. Alheio a tudo, o sol fazia do relevo sua tela, e das sombras suas tintas. A coreografia continuou até que a nuvem de gotas em brasa se desfez em forma de garoa, acrescentando pinceladas multicoloridas a uma obra que o luar jamais seria capaz de conceber. Findava-se a festa.

As cores desapareceram quase tão rapidamente quanto foram formadas. Lá no alto, resignada diante de sua monocromia, a lua recolheu-se, disposta a retornar ainda mais cintilante na próxima cerimônia. Cessaram-se os suspiros, e o silêncio voltou a fazer companhia aos rochedos. O sol, revivendo seus tempos de menino, passou o restante do dia a desenhar sombras na areia.

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Lição de casa…

– Pai, me ajuda com a lição de casa?

– Claro, filho. Qual é a dúvida?

– A professora pediu alguns sinônimos da palavra “nojento”.

– Fácil. Anota aí: asqueroso, repugnante, repulsivo, imundo, seboso…

– Obrigado, pai.

– … arrogante, pretensioso, Jean Wyllys, Gleisi Hoffmann, Boulos, Mercadante, Dirceu, dirceuzinhos e agregados, Lula, Marcia Tiburi, Lindbergh, Felipe Neto, Janones, Reinaldo Azevedo, Kennedy Alencar…

– Tá bom, pai, basta uns 5.

– … metido, desdenhoso, Allan dos Santos, Constantino, Carla Zambelli, Nikolas, Bia Kicis, Bolsonaro, bolsonarinhos e agregados, Alexandre Garcia, Adrilles, Daniel Silveira, Damares, Pazuello…

– Pai, nem cabe tudo isso no espaço da resposta.

– … presunçoso, pedante, empolado, dono da verdade, Lewandowski, Gilmar Mendes, Xandão…

– Pai! Já falei que não precisa mais.

– Desculpa, filho, me empolguei. Mais alguma dúvida?

– Só uma: qual é o sinônimo de populista?

– Esse seu dever é pra hoje? Acho que não vai dar tempo…

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Essência…

20230731_163119Não sei dizer que cheiro eu tinha ao nascer. Refiro-me aos momentos seguintes ao parto, antes de ser banhado pelas gotas de suor e lágrimas que marcaram meu primeiro abraço. Antes de ser contaminado pelas fragrâncias genéricas de Johnson’s e Pampers. Antes de começar a envelhecer. Quem poderia descrevê-lo, entretanto, limitou-se a nomeá-lo. Eu tinha cheiro de filho.

Os odores da infância ainda me são caros. Lembro-me dos perfumes de terra batida, de grama orvalhada, de café recém-coado, de gravetos queimando no fogão a lenha, do ovo quente que nunca consegui abrir sem deixar que a gema escorresse. Lembro-me do bálsamo que emanava do mingau de Maizena a borbulhar na panela de barro, dos aromas da torta de abacaxi que findava os almoços de domingo e do capelete à bolonhesa que precedia os ovos de chocolate. Minha infância tinha cheiro de mesa posta.

O calendário trouxe consigo ranços do inverno. O Sono Leve que costumava me aquecer nas noites frias mal conseguia barrar o Minuano, cada vez mais hábil em encontrar frestas na alma. Meu olfato perdeu-se entre as geadas, e fedor era só o que eu sentia ao abrir a porta que dava para a rua. Fechei a janela em busca dos olores que me aquietavam, mas – àquela altura – a panela de barro jazia no fundo do armário. Minha adolescência tinha cheiro de saudade.

Dizem que não há mau cheiro que dure para sempre. Ou talvez o faro seja apenas reflexo do que cada um é capaz de exalar. Fato é que acabei me apaixonando por novos aromas, alguns tão característicos quanto o perfume de uma rosa, tão nítidos quanto o quase sabor do alecrim, tão singulares quanto o ambiente de uma loja de chás. Outros, bem mais complexos, só eu seria capaz de decifrar: o odor único de uma casa em Londres, a olência de suores e salivas que se misturam madrugada adentro, a fragrância (sim, ela existe) de uma obra concluída. Minha juventude tinha cheiro de descoberta.

Há quem meça o tempo pelos aromas experimentados ao longo dos anos. Meu olfato jamais foi apurado a tal ponto. Além do mais, meu roteiro não teria sido o mesmo sem o auxílio da visão, da audição, do paladar, do tato. Ah, o tato… Mas os cheiros continuam marcantes no meu dia a dia. Alguns são gatilhos para lágrimas – de alegria, tristeza, saudade. Outros são apenas ponteiros a me mostrar que o relógio da vida realmente não para. Há, por fim, os que sempre serão eternos: o bouquet de um Brunello repartido em 4 taças, o perfume de um caldeirão de estrogonofe, a efluência de um rio prestes a se encontrar com o mar, o cheiro de filho que – assim como minha mãe – não me atrevo a tentar descrever.

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Ave, Cesar…

FB_IMG_1690806092462Aperte o cinto, caro leitor. Você está prestes a embarcar em uma viagem inesquecível, daquelas capazes de despertar epifanias no mais cético dos seres humanos. Cesar Oliveira irá conduzi-lo por trilhas até então inacessíveis, e ajudá-lo a identificar as belezas inerentes ao fato de se estar vivo. Prepare-se para uma jornada que – assevero-lhe – possui propriedades terapêuticas. O que se busca descrever neste prefácio não é o ato, mas antes. É a nota antes da melodia, a semente antes do grão, o atalho antes do caminho, o graveto antes do ninho, o sereno antes da chuva, a explosão antes da estrela, a linha antes do linho.

Lembro-me ainda hoje da primeira vez que viajei ao lado de Cesar. Um tal de João nos levou para ver o mar. Poucas vezes o oceano me pareceu tão inebriante. As lágrimas então derramadas não deixaram dúvidas de que – dali por diante – eu o seguiria aonde quer que ele fosse. Quando tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente, entendi que ser guia não foi uma escolha. Ele simplesmente é, e isso basta.

Na companhia de Cesar, você descobrirá mundos e rituais sagrados. Poderá tornar-se cais quando as naus dos desafios forem lançadas; templo quando for preciso abrigo; acolhimento quando a solidão for uma ameaça; alívio quando os corpos tiverem sede de amor; chão quando faltar sob os pés; céu quando os horizontes estiverem perigosamente próximos. Não se preocupe com as tempestades e calmarias que virão. Mude o curso, e navegue ao inverso dos ventos. Ao singrar os mares da saudade, embarque na Arca de Noé e atravesse o dilúvio da falta.

Permita-me apenas mais um conselho, prezado leitor: entregue-se. Dê a mão aos aforismos e deixe-se ser guiado pelas sentenças afora. Feche os olhos para admirar os detalhes quase palpáveis das metonímias. Caminhe pelo canteiro de metáforas em flor, e embriague-se com seus perfumes. Faça coro com as prosopopeias, e fique atento ao muito que a brisa tem a lhe dizer. Dispa-se de seus pudores, e liberte sua língua para explorar cada figura de linguagem. Sacie-se.

Ao final do percurso, é provável que você se sinta anestesiado por um bom tempo. Quando tratadas com tamanho zelo, as palavras têm mesmo efeito duradouro. Também não se assuste se – de repente – o crepúsculo começar a lhe parecer enigmático. É sinal de que algumas gotas da sabedoria do autor foram absorvidas. Tampouco se martirize ao reconhecer-se – num ataque de humanidade – mais um Antônio do mundo, atônito diante das frases que Deus sussurra nos ouvidos de Wolfgang. Mas saiba que sua jornada só estará completa se, ao fim e ao cabo, você perceber que seu novo objetivo de vida é um dia conseguir tornar-se um tabaréu.

Boa viagem.

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Alento…

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Escrevo porque reflito. Escrevo porque transpiro, porque meu coração descompassa, porque meus pelos se eriçam. Escrevo porque me agito e porque me aquieto.

Escrevo porque, na forma de palavras, meus medos me assustam menos. Dispersas nas frases, minhas frustrações são toleráveis. Oculta em metáforas, minha dor faz mais sentido. Escrevo porque o espelho me obriga.

Escrevo porque sonho e, nos sonhos, as orações me obedecem. Escrevo porque é assim que rezo quando me falta fé, é assim que choro quando me faltam lágrimas, é assim que enxergo quando me falta luz. Escrevo porque nem sempre me calo.

Escrevo porque minhas opiniões pedem para ser partilhadas, meus pontos de vista suplicam por contatos, minhas verdades se alimentam de confrontos e abonos. Escrevo porque as páginas são perenes mesmo que se queimem, os textos são eternos mesmo que se apaguem, as sentenças são definitivas mesmo que ninguém as leia. Escrevo porque não sei como dizer.

Escrevo para que não me sobrem musas, para que não me bastem motes, para que não me escape o olhar distante. Escrevo porque, transcritas, as feições se tornam eternas. Descritas, as mãos permanecem entrelaçadas. Narrados, os timbres não são esquecidos. Escrevo por contemplar.

Escrevo porque o sorriso me atiça e a agonia me instiga. Escrevo para aprisionar momentos, para libertar angústias, para que o enredo possa ouvir meu eco. Escrevo porque a finitude me apressa.

Escrevo porque transbordo e porque falto. Escrevo porque me indago e não encontro a resposta. Escrevo para me contradizer e endossar, para me benzer e condenar, para que meu olhar se perceba alerta. Escrevo para que minha ânsia repouse ao pé da página tomada. Escrevo porque me conhecer não me basta.

Escrevo porque a plenitude dos detalhes me fascina, os meandros da poesia me afligem, o ritmo da prosa me seduz. Escrevo porque, quando parte do papel, minha voz é promessa. Quando extensão da caneta, meu pulso é fluxo. Escrevo por meus vômitos, meus gozos, meus gritos. Escrevo porque a febre irrompe.

Escrevo porque a letra A tem meu nome, porque tinha uma pedra no meio do caminho, porque a festa acabou, a luz apagou e o povo sumiu. Escrevo porque, quando se vê, já é sexta-feira, porque tem tudo em Pasárgada, porque a tristeza tem sempre uma esperança de não ser mais triste não.

Escrevo porque não tenho razão. Escrevo porque razões não me faltam.

Tormento? Dádiva?

Ar…

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Toada…

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Nasci dando trabalho. O parto estendeu-se por quase 10 horas depois do rompimento da bolsa. Fosse hoje, uma cesariana teria me trazido ao mundo muitas horas mais cedo. “Vamos aguardar, a natureza é sábia” – disse o obstetra de minha mãe. Aguardamos.

Chorei alto naquela manhã de novembro, exatos 9 meses depois do casamento de meus pais. Agarrei-me à primeira oportunidade de vida que me fora oferecida. Nada indicava que desperdiçaria tantas outras dali por diante.

Cresci cercado pelo zelo, pelo amor, e pela crescente responsabilidade de ser exemplo para meus irmãos mais novos. Todos podiam errar. Eu não.

Errei. Errei muito. E, quanto mais errava, menor era minha autoestima. Os hormônios da adolescência chegaram para transformar minha timidez em patologia. Resignei-me com a impossibilidade de que – um dia – viesse a me tornar alguém interessante. Entendia estar fadado às sombras, ao ostracismo, à casta de figurantes que compõe o cenário de todo protagonista.

Dentro de casa, entretanto, minha imagem de irmão-modelo permanecia imaculada. Era educado, bom aluno, respeitoso com os mais velhos, cuidadoso com minhas coisas, ciente de meus deveres e obrigações. Só não era feliz. Fosse hoje, teria frequentado os divãs de muitos psicólogos.

Na ausência de terapeutas, fiz do caderno minha terapia. Com ele compartilhei angústias, medos e expectativas cada vez menos ambiciosas. Suas páginas tornaram-se confidentes fiéis bem antes que Toquinho transformasse em poesia uma relação que me permitiu sobreviver. Nelas ficaram guardadas minhas catarses camufladas de palavras. Delas não guardo cópias.

Não sei dizer por que a confiança resolveu dar as caras. Talvez eu andasse cansado de me fazer de vítima. Talvez o perdão tivesse finalmente me convencido a dar uma chance a mim mesmo. Talvez as folhas do caderno estivessem no fim. O fato era que continuava a dar trabalho para nascer. Tive que me arrancar a fórceps.

Chorei alto quando percebi que conseguia me encarar no espelho, muitos anos depois de ter me separado de mim. Agarrava-me a mais uma oportunidade de vida que me era oferecida. Nada indicava que continuaria a desperdiçar tantas outras dali por diante. Fosse hoje, diriam que ainda não aprendi a viver. Afinal, quem sabe?

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Flatulências imobiliárias…

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– … e aqui fica a área de serviço, com tanque e espaço pra máquina de lavar.

– Acabou?

– Ah, não. Ainda vou levar a senhora pra ver a vaga de garagem e o salão de festas.

– Digo no apartamento. Você já mostrou tudo?

– Ué, acho que passamos por todos os cômodos. A senhora sentiu falta de alguma coisa?

– Claro. Onde é que eu vou soltar meus puns?

– Não se preocupe, o condomínio é pet friendly.

– Não tô falando de cachorro, meu filho. Quero um lugar pra soltar meus puns. Vai me dizer que você não solta.

– Eeeh… desculpe a confusão. Bem, já passamos pelo banheiro, lembra?

– Nem pensar. O banheiro fica ao lado da sala. Que falta de respeito. Vocês acham que a gente não tem dignidade?

– Imagina, senhora. Não foi minha intenção. A senhora tem algum lugar de preferência pra solt… quero dizer… pra ficar à vontade?

– Fico à vontade no quarto. Mas pra soltar pum eu prefiro uma varanda.

– Os apartamentos deste prédio não têm varandas.

– Pois é, olha só o desleixo com a população. Só porque a gente é pobre. Aposto que você é daqueles que acham que só rico pode soltar pum, não é?

– Senhora, que isso? Tudo aqui foi feito com esmero, visando apenas o conforto dos moradores.

– Se vocês tivessem preocupação com as pessoas não tinham esquecido da varanda do pum.

– Mas o apartamento é arejado, tem ventilação cruzada, o pum vai embora rapidinho.

– Que absurdo. Nunca fui tão ofendida assim na vida. Vou chamar a polícia pra você.

– Polícia?

– Isso mesmo. Discriminação de classe social dos puns é crime, sabia?

– E se eu conseguir um desconto de 20% pra senhora?

– Você acha que vai conseguir me comprar com essa mixaria?

– 25%.

– Se chegar a 30% eu finjo que não ouvi as barbaridades preconceituosas que você disse.

– Fechado.

– Mas com uma condição.

– Qual?

– Esse prédio tem espaço gourmet do porre, não tem?

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Carma…

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“Desappareceo no dia 11 de casa do Sr. Jorge Karmm, na Fazenda Villa Theresa, tendo sahido com licença para passear, a preta Rita, de nação Benguella, de altura regular, falla ligeiro e tem o dedo pequeno do pé um pouco levantado; levou chale de merinó amarelo, vestido de chita em cassa, de babados com barra azul, e tem muitos signaes de castigo no corpo. O abaixo assignado dá boa gratificação a quem a apprehender, e protesta com todo o rigor da lei contra quem a tiver acoutado. Villa Theresa, 15 de julho de 1885.”

“Perdeo-se uma caixinha de velludo, encarnada, com 5 alfinetes de brilhante. Roga-se a quem achar o favor de entregal-a em casa da Sra. Antónia Karmm. Villa Theresa, 18 de julho de 1885.”

“Compra-se berço, novo ou cacareco. Importa que esteja imaculado. Aceita-se troca por alfinete de brilhante. Se alguém nestas circumstancias a quiser engajar, dirija-se a esta typographia que se lhe dirá quem precisa. Ribeira, 03 de março de 1902.”

“Precisa-se de criada que seja moça e morigerada, branca ou de côr, para acompanhar e servir a um senhor enfermo. Previne-se que o ancião, apesar de acartado, comporta-se amiúde como sacripanta. Disponibilizar-se-á catre para dormida. Tratar com Saulo Karmm. Villa Theresa, 23 de dezembro de 1913.”

“Aluga-se livros de anatomia. Assevera-se que a colecção servirá de consulta a mancebo asseado, austero e arrazoado. Dá-se como garantia 2 alfinetes de brilhante. Tratar com Oswaldo. Ribeira, 12 de outubro de 1920.”

“Vende-se quinta centenária conhecida como Villa Theresa. Casa grande e magnificente em condição passável. Senzalas e estábulos carecem de melhoramentos. Aceita-se troca e pagamento fiado. Tratar urgente com Saulinho dos conhaques. Villa Theresa, 10 de maio de 1932.”

“Contrata-se carpinteiros, pintores, artesãos, zeladores e agricultores. Apresentar-se na antiga Villa Theresa, portando documento de identificação e carta com a história de vida. Tratar com Dr. Oswaldo. Fazenda Santa Rita, 20 de novembro de 1932.”

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