Toada…

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Nasci dando trabalho. O parto estendeu-se por quase 10 horas depois do rompimento da bolsa. Fosse hoje, uma cesariana teria me trazido ao mundo muitas horas mais cedo. “Vamos aguardar, a natureza é sábia” – disse o obstetra de minha mãe. Aguardamos.

Chorei alto naquela manhã de novembro, exatos 9 meses depois do casamento de meus pais. Agarrei-me à primeira oportunidade de vida que me fora oferecida. Nada indicava que desperdiçaria tantas outras dali por diante.

Cresci cercado pelo zelo, pelo amor, e pela crescente responsabilidade de ser exemplo para meus irmãos mais novos. Todos podiam errar. Eu não.

Errei. Errei muito. E, quanto mais errava, menor era minha autoestima. Os hormônios da adolescência chegaram para transformar minha timidez em patologia. Resignei-me com a impossibilidade de que – um dia – viesse a me tornar alguém interessante. Entendia estar fadado às sombras, ao ostracismo, à casta de figurantes que compõe o cenário de todo protagonista.

Dentro de casa, entretanto, minha imagem de irmão-modelo permanecia imaculada. Era educado, bom aluno, respeitoso com os mais velhos, cuidadoso com minhas coisas, ciente de meus deveres e obrigações. Só não era feliz. Fosse hoje, teria frequentado os divãs de muitos psicólogos.

Na ausência de terapeutas, fiz do caderno minha terapia. Com ele compartilhei angústias, medos e expectativas cada vez menos ambiciosas. Suas páginas tornaram-se confidentes fiéis bem antes que Toquinho transformasse em poesia uma relação que me permitiu sobreviver. Nelas ficaram guardadas minhas catarses camufladas de palavras. Delas não guardo cópias.

Não sei dizer por que a confiança resolveu dar as caras. Talvez eu andasse cansado de me fazer de vítima. Talvez o perdão tivesse finalmente me convencido a dar uma chance a mim mesmo. Talvez as folhas do caderno estivessem no fim. O fato era que continuava a dar trabalho para nascer. Tive que me arrancar a fórceps.

Chorei alto quando percebi que conseguia me encarar no espelho, muitos anos depois de ter me separado de mim. Agarrava-me a mais uma oportunidade de vida que me era oferecida. Nada indicava que continuaria a desperdiçar tantas outras dali por diante. Fosse hoje, diriam que ainda não aprendi a viver. Afinal, quem sabe?

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