Fatos e opiniões…

Não tenho lugar de fala para opinar sobre o imbróglio envolvendo Israel e Palestina. Minha árvore genealógica (até onde eu sei) não inclui judeus ou árabes, nunca tive receio de que minha família pudesse ser exterminada por mísseis ou ataques terroristas, jamais escutei uma sirene que indicasse ser preciso me abrigar em um bunker. Nada disso – é claro – impede que tristeza, incredulidade, desânimo e sensação de impotência se manifestem a cada notícia sobre a guerra. Não é fácil se manter são no meio de tanta loucura. Mais difícil ainda é deixar de se indignar com a banalização das mortes de tanta gente inocente. E é absolutamente impossível não se assustar diante do radicalismo que tomou conta de todos os debates sobre o assunto.

Chegamos ao ponto em que opiniões perderam a capacidade de trazer qualquer benefício ao entendimento de um conflito milenar. E não me refiro apenas às mais extremadas – carregadas de verdades, ressentimentos e ideologias imutáveis. As ponderadas tampouco conseguem evitar que rótulos sejam atribuídos a povos que se caracterizam justamente pela sua diversidade. Há gente boa e bem intencionada em ambos os lados. Há quem se compadeça com o sofrimento de crianças que vivem do outro lado do muro. Há quem queira viver com dignidade, e deixar que todos em volta assim também vivam. A estigmatização – sempre perigosa – torna-se hedionda quando insufla ódio e xenofobia.

Recuso-me, portanto, a emitir qualquer opinião pessoal sobre o assunto. Prefiro me ater aos fatos. Muita gente anda se esquecendo do conceito, mas fato é algo cuja existência é inquestionável. Vacinas, por exemplo, salvam vidas, mesmo que aquele grupo do Telegram insista em divulgar o contrário. Governos repressores e totalitários não podem ser chamados de democracias, por mais que o aquele amigo de esquerda afirme que a luta deles é por liberdade. Fato é fato.

Um grupo de guerrilheiros que se dispõe a invadir as casas de centenas de civis, e assassinar homens, mulheres e crianças com requintes de crueldade é uma organização terrorista. Isso é fato, independentemente das opiniões sobre as motivações do movimento. Também é fato que, há décadas, Gaza é uma prisão a céu aberto, mesmo que muitas opiniões encontrem justificativas para o cenário. O Hamas usa civis como escudos humanos? Sim, é fato, há inclusive declarações de seus membros que o corroboram. O governo de Israel sabe que os bombardeios vão atingir civis inocentes? Sim, também é fato. São fatos que o objetivo do Hamas é a aniquilação completa de Israel, que os líderes palestinos recusaram todas as propostas feitas até hoje para coexistência de dois estados, que há um antissemitismo latente – e crescente – em todo o mundo. Também são fatos que houve uma falha injustificável na segurança israelense, que a guerra está sendo usada como arma política por um governo fraco e impopular, que a imagem de Israel se deteriora a cada criança palestina morta.

Tanta morte, tanta dor, tanta desesperança. Há quem garanta existir uma solução pacífica e viável a curto prazo. Pena que não se trate de fato, apenas de opinião.

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Uma mulher de fibra…

Yustrich era uma figura controversa. Técnico de sucesso (chegou a ser bicampeão português pelo Porto no final dos anos 50), dirigiu grandes times do futebol brasileiro. Seu estilo truculento e autoritário, entretanto, impediu que ele tivesse uma longa sequência de trabalho nos clubes por onde passou. Não sabia ser gentil, e seus pedidos sempre vinham em tom de ordem. Assim ele abordou uma das funcionárias da Diretoria de Esportes do Estado de Minas Gerais, numa das salas do subsolo do Mineirão. Ela virou-lhe as costas, deixando claro que não iria atender quem a tratasse com grosseria. Os demais funcionários da autarquia entreolharam-se, estupefatos. Todos temiam aquele homem de quase dois metros de altura, famoso por ter saído no tapa com um sem-número de jogadores. Irritado, o “homão” – alcunha da qual se orgulhava – segurou o braço da funcionária, puxando-a de volta para si.
– O senhor não encoste a mão em mim.
– Você sabe com quem está falando?
– Sei muito bem. E isso não faz a menor diferença. Eu exijo respeito.
– Moça, você está brincando com fogo. Se eu perder a cabeça a coisa vai ficar feia.
– O senhor está me ameaçando? Pois venha se tiver coragem, venha se for homem.

Furioso, Yustrich desistiu do embate e deixou a sala. A funcionária manteve o semblante altivo até ter certeza de que o treinador estava longe. Então caiu em prantos.

Nilda fazia parte da Diretoria de Esportes desde antes da construção do estádio. Exímia datilógrafa, começou a trabalhar bem cedo. Aos 13 anos de idade, viu-se obrigada a largar o ensino fundamental para ajudar a sustentar a própria mãe. Ocupada em sobreviver, acabou casando-se tarde para os padrões da época. Tornou-se esposa aos 30, mãe aos 31. Aos 38, tinha 4 filhos, todos homens. Foi quando decidiu largar o emprego para dedicar-se à família. Acostumada a pagar suas próprias contas, assumiu as finanças da casa com a mesma rigidez com a qual cobrava bom desempenho escolar dos filhos. Como ex-jogadora de vôlei do América, exigiu que todos praticassem esportes. A palavra final era sempre dela.

Aprendeu a dirigir com a mesma facilidade com que aprendera a se defender. Tornou-se motorista, professora, enfermeira, advogada de defesa e acusação, e até psicóloga – embora seus métodos pudessem ser descritos como pouco convencionais. Chineladas e carinhos apareciam com a mesma frequência, broncas homéricas contrastavam com dramas e caras emburradas que demoravam dias para desaparecer. Por fim, Nilda acabou por criar modo próprio de gerir os conflitos de sua família.

Com o crescimento dos filhos, mostrou sabedoria ao buscar ser a melhor anfitriã para os amigos e namoradas de cada um deles. Com a casa constantemente cheia, Nilda permitiu-se finalmente relaxar, ciente de que a privação enfrentada na infância e adolescência não voltaria a lhe fazer companhia. A maturidade foi o período mais suave e feliz de sua vida, talvez pela consciência de ter sempre procurado agir com justiça e coerência. Quando tornou-se avó, a doçura passou a ser sua característica mais marcante. Mas a personalidade forte, capaz de enfrentar preconceitos e dificuldades com brio e coragem, jamais a abandonou.

Entre alegrias e tristezas, conquistas e decepções, erros e acertos, não há dúvidas de que Nilda foi uma mulher de fibra. Hoje, no dia em que completaria 88 anos de idade, muitos ainda se emocionam ao relembrar sua trajetória, suas histórias, seu sorriso, e – especialmente – seu olhar. Eu sempre serei um deles.

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Val e eu…

Vivi muito tempo longe do mundo dos pets. Depois de casado, me convenci de que não teria tempo, espaço e disposição para cuidar de qualquer animal doméstico. Os dois argumentos iniciais não passavam de desculpas para o terceiro, mas foram eficazes nos discursos que costumava repetir quando o assunto vinha à tona. Àquela altura, tinha sido dono de cachorro apenas na infância (o termo “tutor” só seria exigido 4 décadas depois). Zandor, um dálmata doce e brincalhão, foi meu fiel companheiro durante anos.

O nascimento do Arthur prometia findar minhas promessas de isolamento. “Pode escrever: mais cedo ou mais tarde, você vai comprar um cachorrinho pra ele” – diziam os promotores de uniões humano-caninas. De fato, aos 6 ou 7 anos, Arthur passou a requisitar – com irritante constância – a presença de um novo melhor amigo. A insistência deu resultado. No lugar do cãozinho, ganhou um irmão.

Superada a investida, pensei estar definitivamente livre de qualquer ameaça de olhos límpidos e patas sujas. Satisfazia-me brincando com os pets dos amigos, ou acompanhando muitos deles serem eternizados por seus tutores. Vi Tião e Duda transformarem-se em personagens deliciosos nas crônicas de Eduardo Affonso. Cora Rónai fizera o mesmo com Tobias, Toró, Tiziu e Mafalda. Cães e gatos têm personalidades diferentes até na literatura.

Ao concluir o ensino médio, Arthur decidiu que iria estudar fora. Teríamos alguns anos de encontros esporádicos pela frente, fora o risco de que ele acabasse ficando por lá. Guilherme estava desolado. Eu? Eu não, sou forte e sei que os filhos são mesmo do mundo. Mas percebi que chegara o momento de reavaliar uma de minhas mais arraigadas certezas. Foi assim que Val entrou nas nossas vidas.

Ela já não apresentava sinais evidentes de maus tratos quando a vimos pela primeira vez. Tinha sido resgatada há coisa de um mês. Ainda estava magra, e trazia uma inquietante indiferença no olhar. Caberia a nós conquistar sua confiança. Demos a ela o nome da faculdade onde o Arthur iria estudar: Valencia (eu sei, nem é preciso que Freud explique). Quando ele partiu, ela fez do vazio seu novo lar.

Val faz parte da família há mais de 4 anos. É mansa, discreta, mas sabe como ninguém a hora de se aninhar no meu colo. É a primeira a me receber quando abro a porta da sala. Pula, faz festa, sorri (sim, ela sorri). Estar com ela é estar em paz. Já me disseram que pareço ainda mais feliz ao seu lado. Será? Talvez seja só impressão, como aquela vez em que me chamaram de pai de pet. Eu? Eu não, sou forte e acho essa coisa de amar um cão como se fosse gente uma enorme bobagem.

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Quadrilha revisitada…

João amava Teresa. Desamou quando leu uma postagem na qual Teresa defendia as ditaduras de Cuba e Venezuela. Teresa amava Raimundo. Desamou quando viu Raimundo acampado e clamando por uma intervenção militar no Brasil. Raimundo amava Maria. Desamou quando viu Maria comemorando o bombardeio do Hamas a Israel. Maria amava Joaquim. Desamou quando ficou sabendo que Joaquim apoiava o golpe de 64. Joaquim amava Lili. Desamou quando viu Lili culpando a Ucrânia pela invasão russa. Lili só amava político populista.

Lili – defensora da tirania russa – chamou Joaquim de tirano. Joaquim – que tinha saudades do golpe militar – chamou Maria de censora da liberdade. Maria – depois de vibrar com a morte de judeus – chamou Raimundo de nazista. Raimundo – que queria acabar com a democracia – chamou Teresa de antidemocrática. Teresa – fã de ditaduras opressoras – chamou João de opressor imperialista. E João – antes de se mudar para o Tibet – chamou a turma toda de bando de hipócritas.

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Esperança…

A rotina prometia ser a mesma das últimas semanas. O despertador tocou na hora de sempre, acordei meu filho com a dificuldade de sempre, deixei-o na escola com o mau humor de sempre. O trânsito – incomumente fluido – destoava do caos de toda manhã. No escritório, tarefas inacabadas acumulavam-se sobre minha mesa. Pudera, meus horários de trabalho estavam reduzidos à metade desde que ela fora internada pela primeira vez. O que não tivesse sido resolvido até o meio-dia teria de ser protelado. As tardes estavam reservadas às consultas com os diversos especialistas, às visitas ao hospital, à contemplação de um olhar que parecia se esvair a cada instante. Eu e meus irmãos nos revezávamos nas noites assombradas por gemidos que não podíamos exorcizar. A transferência para a UTI fez com que os dias passassem a ser dedicados ao nosso pai, atônito por perceber que a maior de suas certezas não iria se realizar. Portador de uma grave cardiopatia desde os 49 anos de idade, ele nunca teve dúvidas de que seria o primeiro a partir. Aquele era um cenário para o qual ele jamais se preparara.

Liguei o computador mais cedo que o usual. O mostrador no canto direito da tela me lembrou que outubro havia chegado. Era o mês dela. Em anos anteriores, estaríamos planejando o que fazer na comemoração de seu aniversário. Agora, eu quase desejava que ela não estivesse aqui para completar seu 79º ano de vida. Sabia que, de uma forma ou de outra, vela alguma seria soprada dali por diante. Abri a caixa de mensagens. A sequência de e-mails acrescentou preocupações corriqueiras à expectativa que dominava meu cotidiano. A notícia viria através de um telefonema? De uma mensagem? Ou viveria o momento pessoalmente, durante uma das rápidas visitas da tarde? A imagem do desenlace não me trazia lágrimas. Talvez a verdadeira despedida de 10 dias atrás as tivesse exaurido. Talvez meus olhos estivessem se poupando para o turbilhão que se avizinhava. Ou talvez eu apenas soubesse que a exclamação estava bem próxima, enquanto implorava para que o ponto final permanecesse distante.

As obras não estavam paralisadas, tampouco as demandas dos clientes eram menores naquela manhã. Minhas mãos digitavam com firmeza as respostas às pendências mais urgentes do dia. Nem pareciam as mãos trêmulas que se entrelaçaram às dele na noite em que percebemos que um grande ciclo de nossas vidas estava prestes a findar. Pedia-lhe, em prantos, que não se apressasse em acompanhá-la. Rogava-lhe que ficasse, acreditando que ele realmente fosse capaz de postergar sua hora de dizer adeus. Abraçava-o como o garoto inseguro que – ansioso – sempre aguardara a chegada de seu ídolo ao cair da noite. Dizem que só amadurecemos quando percebemos que nossos pais não são super-heróis. Talvez eu jamais tenha crescido…

Os demais funcionários da empresa chegaram. Conversamos amenidades enquanto tomávamos a primeira xícara de café. Falamos das perspectivas de novos projetos, analisamos relatórios de resistência, programamos contratações e pagamentos. E cada um foi cuidar de seus afazeres.

Então o telefone tocou.

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Cotidiano…

20230918_165745

O manto de estrelas ainda escondia o céu quando ela despertou. Foi até a cozinha, acendeu o fogão, pôs a água do café para ferver. Entrou no quarto do filho para iniciar o ritual de impropérios de toda manhã. No caminho de volta, renovou a ração do gato, trancou a porta de entrada que passara a noite entreaberta, recolheu os pratos em pedaços espalhados pelo chão da sala. Não tivera forças para cuidar de nada disso na véspera. A janela da área de serviço mostrou-lhe os primeiros sussurros do dia. Deu de ombros, enquanto despejava seus cacos na lixeira.

O adolescente saiu sem lhe dirigir a palavra. Talvez ainda a culpasse. Talvez preferisse que ela os tivesse deixado, antes que o pai o fizesse. Talvez estivesse se preparando para os novos embates que certamente aconteceriam no fim do dia. “Garoto insolente” – murmurou entre os dentes. Lembrou-se dos pés descalços na areia e do semblante admirado com a sequência de tapetes brancos que se desenrolavam em sua direção. Ele não passava de um rascunho de gente. O café esfriara na xícara quando o lampejo de ternura abandonou a retina de sua memória. Foi até a pia e pôs-se a lavar a louça, no afã de que a água também pudesse tocar sua alma.

O relógio marcava 7h30 quando a porta automática fechou atrás de si. O movimento em direção ao térreo despertou as náuseas, velhas damas de companhia de sua rotina. Fingiu não notar o olhar de desdém que a acompanhava por detrás do vidro da guarita. Quisera ter tempo e ânimo para acabar com a arrogância de gente incapaz de reconhecer seu devido lugar. O motorista do Uber a recebeu com a impaciência de quem esperara por quase 10 minutos. Atravessaram em silêncio a sucessão de maus motoristas, buzinas inconvenientes, e hordas de pedestres sem a mínima noção de hierarquia. Mesmo assim, o atraso na chegada ao escritório foi prontamente reportada no aplicativo.

Só notou que a hora do almoço tinha chegado ao não mais se incomodar com o alarido daqueles que só aparentavam trabalhar. Experimentou uma certa inquietação ao notar o eco que reverberava pela sala. “Nem estava mesmo com fome” – suspirou aliviada. Houve um tempo em que era convidada a se juntar às mesas dos colegas de repartição. Mas o atendimento pouco cordial dos garçons somado à péssima qualidade da comida sempre a irritava. Certamente todos sentiam sua falta. Para ela, entretanto, era um bálsamo poder ficar alguns minutos distante de tanta gente dissimulada.

Saiu do trabalho a tempo de assistir à missa das 18h. Ajoelhou-se depois da comunhão, e – com o coração mais leve – prometeu que um dia perdoaria a todos os pobres infelizes que a cercavam. Contente diante de sua própria indulgência, percorreu cantarolando o caminho de volta para casa. Como era bom sentir-se amada.

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Papo recorrente…

FB_IMG_1694625625886– Finalmente, hein?

– Vim assim que pude. Me atrasei tanto assim?

– Um pouco. Esta ansiedade é que faz tudo parecer maior.

– Eu sempre venho, você sabe.

– Fico sem lugar quando você demora.

– Nossos encontros não têm hora pra acontecer. Decidimos isso lá atrás, lembra?

– Eu sei, eu sei. É que… deixa pra lá, bobagem.

– Começou, agora fala.

– Tenho medo de você se cansar, de não aparecer mais.

– Sério? Depois de todo esse tempo?

– Pra mim é como se fosse sempre a primeira vez. Não me permito errar.

– Quem disse que você já acertou?

– Nossa, por que você está tão crítico hoje?

– Nunca deixei de ser.

– Não sei se isso me motiva.

– Pois deveria. Ninguém evolui só com elogios.

– Acho que preciso de um, agora.

– Já lhe disse que gosto da sua criatividade, de acompanhar seu crescimento. Vivemos muita coisa juntos.

– O passado pouco importa. Aposto que você não me perdoaria se eu me acomodasse.

– Nenhuma acomodação é boa. Mas jamais te abandonaria assim, de uma hora pra outra.

– Jura?

– Pra que jurar? Sempre fui sincero contigo. Estamos juntos porque você me faz sorrir e chorar com a mesma facilidade.

– Queria ter feito você pensar.

– Puxa, quanta insegurança. Você me faz pensar também. Satisfeito agora?

– Desculpa. Não falei pra te irritar.

– Conta outra. Você adora me irritar.

– Gosto de te provocar.

– Já parou pra pensar que somos diferentes?

– Como assim?

– O que não é ofensivo pra você, pode ser pra mim.

– Quando foi que te ofendi?

– Foi só um exemplo. Quero dizer que uma mesma ação pode ser interpretada de diversas formas.

– E como faço pra não ser mal interpretado?

– É inevitável, não se preocupe. O que não significa que não precise ter filtros.

– Que tipo de filtros?

– Depende do quanto estiver disposto a se mostrar.

– …

– Te fiz pensar agora?

– Mais do que imagina.

– Tô até me sentindo importante.

– E é… bem mais do que imagina.

– …

– O que você quis dizer com “de uma hora pra outra”?

– Quando?

– Quando falávamos sobre acomodação.

– Ah, que eu tentaria te alertar caso percebesse que você estava se afastando.

– De você?

– De si mesmo.

– …

– …

– Nos vemos na próxima crônica?

– Faz mesmo questão da minha presença?

– É pra você que eu escrevo.

– Conheço esse papo. Eu nem existia quando começou.

– E mudou tudo quando apareceu. Posso contar com você?

– Te dou minha palavra.

– Não, meu querido. Quem te dá a palavra sou eu.

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

GOAT

20230911_095304Minhas aventuras dentro de uma quadra de tênis nunca foram dignas de nota. A verdade é que eu e a bola amarela carecíamos de maior intimidade – também conhecida como talento. Quando jovem, cheguei até a jogar com certa frequência, para alegria (ou desespero, nunca soube ao certo) de meus adversários. Apesar da patente inaptidão, sempre fui fã do esporte. Acompanhar pela TV as partidas de grandes tenistas passou a ser mais do que um prazer: era quase obrigação. Desde Borg e McEnroe, até as batalhas épicas protagonizadas pelo Big Three nas duas últimas décadas, minha admiração por uma partida bem jogada só cresceu. Gustavo Kuerten, claro, deu sua inestimável contribuição ao transformar encanto em paixão verde-amarela.

Até há relativamente pouco tempo, não havia tido a oportunidade de assistir, presencialmente, a um jogo profissional de alto nível. Tudo mudou no ano de 2016, quando as Olimpíadas do Rio me aproximaram de nomes como Serena Williams e Andy Murray. A cereja do bolo, entretanto, estava reservada para o mês seguinte.

A final do US Open daquele ano aconteceu no emblemático dia 11 de setembro, exatos 15 anos depois da queda das torres gêmeas. Além da americana, a bandeira brasileira aparecia em destaque fora do estádio, com Bruno Soares campeão de duplas (João Fonseca, como campeão juvenil, repetiria a façanha 7 anos depois). Na quadra central, o então número 1 do mundo, Novak Djokovic, acabou sendo vencido pelo suíço Stan Wawrinka. O sérvio perdia, assim, a chance de conquistar seu terceiro título no Arthur Ashe Stadium.

Novamente líder do ranking mundial, Djokovic acaba de conquistar seu quarto título em Nova York. Derrotou, em quadra, um Medvedev em sua melhor forma. Fora dela, na maior de suas vitórias, derrotou o tempo, para confirmar que – aos 36 anos de idade – é mesmo o maior monstro sagrado da história do tênis. Que bom que pude vê-lo jogar.

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Gente brasileira…

20230907_122239

“Já podeis, da Pátria filhos, ver contente a mãe gentil”.

Raiava, há pouco mais de dois séculos, a liberdade no horizonte do Brasil. A brava gente brasileira despedia-se do temor servil, da subserviência colonial, do jugo português. Grilhões foram rompidos, e nossos peitos e braços pareciam fortes o bastante para nos proteger de qualquer inimigo externo. Estávamos, enfim, livres para construir nosso próprio destino.

Hoje, 201 anos depois de nossa independência, outras falanges – ainda mais ímpias – ameaçam nossa soberania. Agora, entretanto, o jugo que nos oprime não está mais lá fora. Foi, ao contrário, gestado no âmago de nossa sociedade. É o resultado de uma cultura que sempre aplaudiu a malandragem, o jeitinho, a gambiarra. Que jamais deu o devido valor à ética, à competência, ao conhecimento. Que nunca aprendeu a verdadeiramente se indignar.

Há pouco a comemorar quando a pátria idolatrada é mãe gentil apenas para os membros de algumas castas. Há pouco a comemorar quando somos reféns de uma classe política podre, imoral, corrupta. Há pouco a comemorar quando a justiça é ignorada justamente por aqueles que juraram defendê-la. Há pouco a comemorar quando boa parte de nosso povo ainda insiste em acreditar em deuses e mitos.

O Brasil inicia seu terceiro século como nação livre preso à mentalidade tacanha e hipócrita de um líder populista. Um líder com noções retrógradas de economia, transparência e democracia. Um líder que não mede esforços e recursos para ceder à chantagem explícita de um legislativo igualmente atrasado e corporativista. Um líder marcado por escândalos que juiz amigo algum será capaz de apagar. Um líder que só voltou à cena graças ao projeto de ditador que o antecedeu.

O país descansa no feriado depois de uma decisão monocrática do STF fazer de conta que incontáveis e incontestáveis provas de corrupção jamais existiram. Depois de uma profusão de sentenças inocentar políticos de todas as vertentes. Depois de indícios de irregularidades obtidos de forma criminosa servirem de base para que provas de crimes obtidas de forma irregular fossem anuladas. Depois do brasileiro sepultar qualquer esperança no fim da impunidade.

A pátria celebra sua independência com parte de seu povo dividida entre duas seitas que têm como premissa endeusar seu bandido de estimação. Gente que abriu mão de tal forma da própria consciência, que não mais consegue avaliar os fatos, apenas seus autores. Gente que tem a audácia de clamar por ditadura em nome da democracia, de justificar guerras e invasões em nome da paz, de incentivar agressões em nome da união da sociedade. Gente tão pobre e tosca quanto as castas que idolatram.

Por tudo isso – e muito mais -, o 7 de Setembro é uma data menos significativa a cada ano. Quem sabe um dia – por um desses acasos da vida – o brasileiro volte a ter orgulho de seu país. Quem sabe um dia – por um desses milagres da vida -, possamos acordar cientes de que nosso futuro não depende de um novo messias. Assim, quem sabe um dia – pelas nossas próprias ações -, a pátria mãe possa também nos ser gentil.

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Entre laços…

20230904_162907

“Quando a vida enfim me quiser levar pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar no derradeiro beijo seu”

……………………………………………………

O quarto de hospital – envolto na penumbra de um dia afônico – parecia solidário aos calafrios que me descompassavam. O visor de um dos aparelhos ligados na cabeceira da cama tingia o ambiente de ceticismo. Voltei minha atenção para o semblante dela, na busca de alguma centelha que – como grão de fé – pudesse ser confundida com esperança. Seus olhos fechados gemiam. Passeei meus dedos pelos cabelos em desalinho, na tentativa de reproduzir o ritmo das carícias que sempre conseguiam me apaziguar. Não era capaz de retribuir o que recebera.

Da porta do quarto, meu pai – com o olhar banhado de incredulidade – também a observava. Não a reconhecia. Sentei-me ao seu lado e – como de praxe – nossas mãos se entrelaçaram. Não sei por quanto tempo permanecemos assim, numa comunhão em que os prantos eram compartilhados como hóstias. Hesitei antes de romper o mais cinza dos silêncios. “Pai, posso te pedir uma coisa?” Ele baixou a fronte, antevendo a súplica que não poderia atender. “Se realmente tiver chegado a hora dela, não vá embora logo em seguida não. Fica mais um pouco, por favor”.

……………………………………………………

“E ao sentir, também, sua mão vedar meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar num acalanto de adeus”

……………………………………………………

Ansiedade e deslumbramento revezavam-se nas telas líquidas de seus olhos. Depois de meses de sacrifícios, planejamentos e preparativos, ele via o sonho de estudar fora ser concretizado. Lágrimas já haviam sido derramadas. Despedira-se da mãe, do irmão, do ninho que o embalou e protegeu ao longo de seus 18 anos de vida. Embarquei ao seu lado naquele avião, certo de estar testemunhando o primeiro de muitos voos. Embarquei para auxiliá-lo nos prelúdios de suas descobertas. Embarquei para postergar o instante de dizer adeus.

A semana passou com a urgência de um suspiro. A cada obstáculo superado, ele se mostrava mais confiante. A cada dia vivenciado, um cheiro turvo fustigava minha visão. Fizemos um brinde ao futuro, na noite que antecedeu minha volta. Entramos abraçados na casa em que me hospedara. Jurei guardar para sempre os sons daquele toque. Fechei um banho, tomei a mala. Ele já estava deitado quando entrei no quarto. Virou-se para mim, com a voz em gotas: “papai, eu não quero que você vá embora. Fica mais um pouco, por favor”.

……………………………………………………

“Dorme, meu pai, sem cuidado, dorme que ao entardecer
Seu filho sonha acordado, com o filho que ele quer ter”

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário