Filho de rio…

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Meus pés descalços caminhavam pelo leito de seixos. A água cristalina, aquietada em um pequeno remanso, movimentava-se a cada passo meu. Sentei-me em uma pedra alongada que se oferecia à margem. Foi quando notei a curva que o riacho fazia logo adiante, escondendo-se na mata espessa. O pequeno projeto de rio desaparecia na minha frente e eu sabia que seu destino final era o mar. Então, abundantes como as águas que me banhavam, as lágrimas brotaram…

Era para ser só mais uma caminhada. Trilhas cortando o cerrado, cheiro de mato misturado ao da chuva da véspera, barro que aumentava o peso das botinas a cada passada, árvores de troncos tortuosos e pássaros coloridos em revoada. De tempos em tempos, abriam-se mirantes para os vales entre as montanhas. Em Minas, o horizonte nunca é uma linha reta. Sucedem-se picos e talvegues, aclives e declives, altos e baixos. Quem quiser saber como é a vida, basta vir a Minas e olhar para o horizonte.

A trilha terminava em uma pequena cachoeira. Já ouvi dizer que a cachoeira está para o mineiro assim como o mar está para o praiano. Só quem não é de Minas pode pensar assim. Cachoeiras não são programas de toda e qualquer hora. Há que se respeitar a liturgia. Há que se manter a cerimônia. Banhar-se de pura energia é um prêmio a ser conquistado, uma celebração, quase uma bênção. A água com sal relaxa, mas só as quedas de água doce consagram.

Digressões à parte, havia algo de novo naquela trilha. Não era o destino nem tampouco o caminho a ser percorrido. A novidade estava em mim. Dois meses antes, eu me despedira do meu pai. Dois meses antes, o rio de sua vida se dissipara no mar. E rio e mar, aqui, eram bem mais do que meras metáforas.

Ele ainda era um jovem de quase 60 anos quando escreveu um livro que contava aventuras e aprendizados de um rio evoluindo ao longo do seu percurso. Naquela marcha, estava a sua história de vida. Estavam seus valores, seus princípios, suas crenças, narrados por um curso d’água que, desde a nascente, tinha consciência de que brotara destinado a mergulhar no oceano.

“Caminho para o mar” passou a fazer parte da minha vida. Não sei quantas vezes as experiências daquele rio me guiaram. Não sei quantas vezes reli cada um de seus capítulos. Exceto o último. Esse foi lido somente uma vez.

Mesmo ciente de que evitava a mais bela das passagens, em que a plenitude do encontro com o mar é descrita de forma sublime, não conseguia conceber sequer a ideia de me despedir daquele rio. Não a ler era uma forma de postergar o que não pode ser postergado.

De repente, lá estava eu, com minhas lágrimas a alimentar as águas de um riacho que iniciava ali a formação do próprio leito. Sob as copas das árvores que emprestavam a sombra e a reverência de que precisava. Então retirei o velho exemplar autografado que carregava na mochila e li seu capítulo derradeiro. Li em voz alta para que o rio que me tocava também pudesse ouvi-lo.

E ali, pela primeira vez, eu me percebi rio também.

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