Essência…

20230731_163119Não sei dizer que cheiro eu tinha ao nascer. Refiro-me aos momentos seguintes ao parto, antes de ser banhado pelas gotas de suor e lágrimas que marcaram meu primeiro abraço. Antes de ser contaminado pelas fragrâncias genéricas de Johnson’s e Pampers. Antes de começar a envelhecer. Quem poderia descrevê-lo, entretanto, limitou-se a nomeá-lo. Eu tinha cheiro de filho.

Os odores da infância ainda me são caros. Lembro-me dos perfumes de terra batida, de grama orvalhada, de café recém-coado, de gravetos queimando no fogão a lenha, do ovo quente que nunca consegui abrir sem deixar que a gema escorresse. Lembro-me do bálsamo que emanava do mingau de Maizena a borbulhar na panela de barro, dos aromas da torta de abacaxi que findava os almoços de domingo e do capelete à bolonhesa que precedia os ovos de chocolate. Minha infância tinha cheiro de mesa posta.

O calendário trouxe consigo ranços do inverno. O Sono Leve que costumava me aquecer nas noites frias mal conseguia barrar o Minuano, cada vez mais hábil em encontrar frestas na alma. Meu olfato perdeu-se entre as geadas, e fedor era só o que eu sentia ao abrir a porta que dava para a rua. Fechei a janela em busca dos olores que me aquietavam, mas – àquela altura – a panela de barro jazia no fundo do armário. Minha adolescência tinha cheiro de saudade.

Dizem que não há mau cheiro que dure para sempre. Ou talvez o faro seja apenas reflexo do que cada um é capaz de exalar. Fato é que acabei me apaixonando por novos aromas, alguns tão característicos quanto o perfume de uma rosa, tão nítidos quanto o quase sabor do alecrim, tão singulares quanto o ambiente de uma loja de chás. Outros, bem mais complexos, só eu seria capaz de decifrar: o odor único de uma casa em Londres, a olência de suores e salivas que se misturam madrugada adentro, a fragrância (sim, ela existe) de uma obra concluída. Minha juventude tinha cheiro de descoberta.

Há quem meça o tempo pelos aromas experimentados ao longo dos anos. Meu olfato jamais foi apurado a tal ponto. Além do mais, meu roteiro não teria sido o mesmo sem o auxílio da visão, da audição, do paladar, do tato. Ah, o tato… Mas os cheiros continuam marcantes no meu dia a dia. Alguns são gatilhos para lágrimas – de alegria, tristeza, saudade. Outros são apenas ponteiros a me mostrar que o relógio da vida realmente não para. Há, por fim, os que sempre serão eternos: o bouquet de um Brunello repartido em 4 taças, o perfume de um caldeirão de estrogonofe, a efluência de um rio prestes a se encontrar com o mar, o cheiro de filho que – assim como minha mãe – não me atrevo a tentar descrever.

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