Os Brasis e os gritos…

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“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante,
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante.”

Faz exatamente dois séculos que a tranquilidade do Ipiranga foi abalada pelo grito que – dizem – determinou a independência do Brasil. Diferentemente do que versa o nosso hino, o brado retumbante não foi proferido por um povo heroico. Coube ao representante do próprio colonizador dar um basta a mais de três séculos de exploração, e inaugurar a malfadada tradição brasileira de buscar um salvador da pátria para chamar de seu. Dom Pedro I – aquele cujo coração é incapaz sequer de desfrutar do descanso eterno – será eternamente lembrado como um dos grandes heróis nacionais, embora seu feito mais notável tenha sido motivado, sobretudo, por interesses particulares. Coincidência ou não, o fato é que abnegação, altruísmo e visão de longo prazo sempre foram características difíceis de ser encontradas em nossos governantes.

Apenas pouco mais da metade dos 200 anos celebrados hoje foi vivida de forma realmente livre. Um fração ainda menor testemunhou períodos de crescimento, de menor turbulência, de avanços significativos em diversas áreas. Aprendemos pouco sobre independência, sobre liberdade, sobre sociedade. Acostumamo-nos às dificuldades impostas pela nossa própria ignorância. Tornamo-nos reféns de nossos erros, cultivando o péssimo hábito de repeti-los à exaustão, ao invés de aprender com eles. Criamos nossas próprias bolhas, e recusamo-nos a enxergar que há muitos Brasis lá fora. Brasis que não reconhecemos. Brasis com os quais não nos identificamos. Brasis que preferimos julgar, rotular, condenar, e, por fim, ignorar.

Todos esses Brasis estão comemorando hoje o bicentenário da nossa independência. Muitos deles têm pouco a celebrar. Os mais otimistas ainda creem que, um dia, conhecerão o amanhã do eterno “país do futuro”. Eu também já cheguei a pensar assim. Hoje percebo que dificilmente deixaremos de ser prisioneiros da nossa própria incapacidade de nos colocar no lugar do outro. Nossa indignação é e continuará sendo seletiva. Fazemos parte de uma sociedade que se revolta – com razão – diante da corrupção perpetrada por um determinado grupo, enquanto finge não ver a roubalheira comandada por aqueles que limitam-se a defender uma ideologia antagônica. Indícios idênticos são chamados de provas irrefutáveis ou perseguições sórdidas, dependendo apenas de seus autores. Atitudes inadmissíveis por parte de membros do judiciário são contrapostas com incentivos a ações que destroem as instituições democráticas que sustentam nossa liberdade. Será que somos mesmo independentes?

Apesar de tudo, comemoremos. Façamos desta data um alerta à hipocrisia, à incoerência, ao retrocesso. Sejamos contraponto aos ataques à democracia, ao culto às ditaduras de todas as vertentes, à exploração da fé, à banalização dos malfeitos. Sejamos eternos inconformados, críticos e atentos às ações daqueles que elegemos, mas, principalmente, às nossas próprias atitudes. São duzentos anos livres do jugo português. Que, em breve, possamos comemorar os aniversários do dia em que nos livramos do messianismo, do fundamentalismo, de todo e qualquer tipo de fanatismo.

Parabéns, Brasil, ó Pátria amada.
Salve-nos, tempo, salve-nos da idolatria.

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Então eu também era pai…

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Escassas são as lembranças da minha infância. A maioria, tal qual paixão, apagou-se com o tempo. Outras, indiferentes, deixaram poucas marcas. Muitas, assim como as mágoas, duraram mais do que deveriam. Apenas algumas guiaram-se pelo amor. Essas jamais se perderam…

“Quando eu era pequenino –
isso mamãe quem me contou –
lá no hospital onde nasci
quando a enfermeira entregou
ao meu papai amado
aquele bebê maravilhoso
ele, todo orgulhoso, e cheio de emoção
quase me deixa cair ao chão.”

A estrofe escrita na aula de Português da quarta série jamais foi compartilhada. O autor – então com 9 anos de idade – orgulhava-se de sua capacidade de criar rimas. A timidez, entretanto, o impedia de mostrá-las. Retraía-se, inseguro. Escrever sobre as reações decorrentes de seu nascimento aquecia-lhe o coração. Que fim teriam levado os sorrisos da criança de olhar expressivo que o desafiava nos porta-retratos? Não sabia o que esperar da vida, mas jurou, um dia, experimentar as mesmas sensações vividas por seu pai.

Passaram-se muitos anos desde aquela tarde na escola. O inverno se aproximava e ajudava a ansiedade a gelar minhas mãos. Prestes a viver o êxtase de carregar meu filho nos braços, acreditava que a paternidade me abraçaria primeiro.

Mãos limpas, touca e máscara de proteção, roupas adequadas para o bloco cirúrgico. Estava pronto. Sonhara com aquele momento por toda a vida. Pensei no meu pai na sala de espera, quase tão aflito quanto eu. Se a emoção se repetisse, eu estaria lá para ampará-lo.

Então ele veio. Seu choro alto abafou meu pranto. Na maca, a mais linda das mães sorria lágrimas. Eu chorava gratidão. Tudo acontecia como imaginara. Mas eis que nossos olhares se cruzam no primeiro colo, e me dou conta de que desconheço aquela pessoa. Quem é você, meu filho? Conte-me. Quero amá-lo acima de tudo. Preciso entendê-lo primeiro.

A breve epifania me desnorteou. Onde teria se escondido o amor incondicional que imaginara imediato? Como descrever a obrigação de ter que venerar alguém a quem se é apresentado pela primeira vez?

Um novo choro retirou-me do torpor em que mergulhara. Depois de envolver o bebê em uma manta azul, a enfermeira voltou-se para mim. “Quer levá-lo ao berçário?” – perguntou-me, com um olhar de cumplicidade. Não respondi. Peguei-o firmemente nos braços. Beijei-lhe a testa. Seu pranto cessou.

A imagem do quebra-cabeça se completava. A peça que sobrara não fazia falta alguma. “Seja bem-vindo, Arthur. Tenho o palpite de que vamos nos dar muito bem”.

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Dia de saudades…

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Hoje acordei com saudades de um abraço. O mais aconchegante dos abraços. Aquele capaz de fazer dois corações baterem no mesmo ritmo. Aquele que amainava angústias, que aquietava a alma. Aquele que – ciente de sua finitude – era sempre eterno.

Hoje acordei com saudades de uma gargalhada. A mais contagiante das gargalhadas. Aquela que buscava ensinar aos aprendizes de gargalhadas tudo o que uma verdadeira gargalhada deveria ter. Aquela que me fazia querer gargalhar, mesmo quando lágrimas insistiam em orvalhar meu sorriso. Aquela que eu pedia que continuasse gargalhando.

Hoje acordei com saudades de um olhar. O mais pleno dos olhares. Aquele olhar que – mesmo silente – dizia tudo que eu precisava ouvir. Aquele olhar humilde que só quem sabe muito é capaz de sustentar. Aquele olhar sereno de quem não espera retribuição alguma do olhar que o contempla. Aquele olhar que acalenta.

Hoje acordei com saudades de uma voz. A mais doce das vozes. Aquela que – embora grave e eloquente – jamais se impôs pelo volume. Aquela que sabia o momento de se calar, mas, chegada a hora de se manifestar, calava fundo em quem a ouvia. Aquela cuja brandura harmonizava com a sabedoria das palavras proferidas. Aquela que – como a mais linda das canções – não podia ser esquecida.

Hoje acordei com saudades de mãos entrelaçadas. Saudades de como os dedos conseguiam conciliar força e afago. Saudades da textura que me lembravam o quanto o tempo é implacável, e minhas súplicas, impotentes. Saudades dos pactos feitos, das promessas não cumpridas, da resignação ante ao desenlace.

Hoje acordei com saudades de poder admirar, abraçar, ouvir e gargalhar de mãos dadas com o aniversariante do dia. Uma pessoa tão iluminada, que até hoje prefiro acreditar que o dia dos pais seja apenas uma homenagem a um dia que é só dele.

Feliz aniversário, pai. Você – como sempre – tinha razão: o amor permanece.

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Conceitos básicos…

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– Bom dia. Fui convocado para o curso de reciclagem, mas não tem nenhuma multa lançada na minha habilitação. Deve estar havendo algum engano.

– Bom dia, senhor. A reciclagem não é para motoristas. Serão aulas de revisões conceituais.

– Não entendi.

– Certamente o senhor andou se esquecendo de alguns conceitos fundamentais. O objetivo do curso é relembrá-los.

– Será que você poderia ser um pouco mais clara? Continuo sem entender nada.

– Deixe-me acessar seu processo para poder explicar melhor. Sua identidade, por favor.

– Aqui está.

– Sr. Ernesto, vejo aqui que sua reciclagem será longa. Seus conceitos têm alto grau de deturpação.

– Que absurdo. Vocês querem moldar meu jeito de pensar?

– Imagine, senhor. Cada um é livre para pensar como quiser, desde que o léxico seja respeitado.

– Você deve estar brincando. Tenho dois cursos superiores. Sei muito bem o significado das palavras.

– Não é o que diz seu histórico.

– Meu histórico? Cadê minha privacidade?

– Nossos relatórios levam em conta apenas suas publicações públicas, feitas em redes sociais abertas. Mas o exemplo é válido. O que significa privacidade para o senhor?

– Que nenhuma enxerida como você tem o direito de acessar e divulgar meus dados, especialmente com o objetivo de me constranger.

– Veja só que interessante, Sr. Ernesto. No final do ano passado o senhor fez diversas postagens exigindo que os nomes e endereços dos técnicos da Anvisa que aprovaram a vacinação infantil contra Covid fossem revelados. Eles também não tinham direito à privacidade?

– É diferente. São esquerdistas que queriam colocar a saúde dos meus filhos em risco. Ainda bem que nem eu nem eles nos vacinamos.

– E não se vacinaram por quê?

– Porque toda pessoa de bem sabe que essa pandemia foi uma fraude. Bastava tomar cloroquina toda semana.

– Então o senhor se recusou a tomar vacinas aprovadas pelas agências de saúde do mundo inteiro, enquanto usava um medicamento rejeitado por essas mesmas agências?

– E não me arrependo.

– Bom, não preciso mais questioná-lo sobre o conceito de lógica…

– Chega! Já vi que isso aqui é mais uma vertente da censura que nos cerca. Só não quebro essa espelunca porque sou um democrata.

– Verdade? Ontem mesmo o senhor fez uma convocação para o 7 de setembro pedindo para todos irem às ruas autorizar o presidente a dissolver o STF e o STE, e a impedir que as eleições sejam realizadas com urnas eletrônicas. Esse seria um ato democrático, na sua visão?

– É a nossa única saída pra escapar do comunismo. Por que vocês não vão atrás dos caras que apoiam ditaduras pelo mundo afora?

– Além do senhor, não é? Pois fique tranquilo, nossos professores estão agora mesmo dando aulas para um grupo de petistas que se consideravam pacíficos, mas aplaudiram quando uma pessoa que xingava a Dilma quase foi assassinada; defensores da liberdade, mas não conseguiam entender qual é a diferença entre um governo longo na Alemanha e na Nicarágua; honestos, mas entendiam que somente políticos de direita mereciam ser presos; e sensatos, mas passaram meses acampados em Curitiba chamando Lula de deus. Aqui não escolhemos lados.

– Pois eu já escolhi o lado de fora. Tô indo embora. Não iria me sujeitar a ter aulas a essa altura da vida, mesmo que os professores tivessem doutorado.

– Doutorado? Sr. Ernesto, os conceitos que lhe faltam são muitos básicos. Nossas aulas são ministradas por professores primários…

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Ângulos ultrapassados…

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Gosto de trigonometria desde a época da escola. Muita gente chama isso de transtorno psicótico, mas prefiro creditar meus desvios comportamentais à minha vocação precoce para as ciências exatas. Agudos, obtusos, retos, rasos ou nulos, os ângulos sempre me fascinaram. Jamais escondi, entretanto, minha predileção pelo ângulo reto. Noventa graus são um bálsamo para quem sofre de TOC cartesiano, e, no fundo, todo mundo sabe que Pitágoras nunca teria alcançado o mesmo reconhecimento se tivesse baseado seus estudos em ângulos tão aleatórios quanto as alianças partidárias de um país como o Brasil.

Mas o tempo – e, principalmente, a política – vieram me mostrar que os graus que separam vetores perpendiculares são insuficientes para alterar nossos rumos. Pior ainda é perceber que estamos cada vez mais limitados às possibilidades de um único ângulo, ignorando alternativas evidentes até para aqueles que não mais se lembram de ter usado um transferidor alguma vez na vida. Eleição após eleição, parte significativa da população brasileira se orgulha de seu gesto-símbolo, enquanto desdenham daqueles que fazem – com igual orgulho – o sinal representativo de um suposto antagonista. Embora apresentem-se como opostos, os gestos são idênticos. Os noventa graus que os separam não conseguem esconder sequer as semelhanças daqueles que os ostentam. Gente arrogante a ponto de se considerar detentora de todas as virtudes. Gente que se autonomeia “pessoas de bem” de um lado, “defensores da democracia” do outro, mas que, na verdade, não passam de hipócritas dispostos a referendar qualquer atitude maléfica ou antidemocrática por parte dos bandidos que idolatram. Gente que se esforça para evitar que a política seja vista por novos e auspiciosos ângulos.

Não há nada mais pobre e ineficaz do que continuarmos alternando indefinidamente o “L” de ladrão e larápio, com sua variação torpe em forma de arminha. Trata-se de um ângulo obtuso por definição, mesmo que a geometria insista em chamá-lo de reto. Busquemos o oposto. Busquemos um ângulo que verdadeiramente possa se contrapor à podridão com a qual nos acostumamos nos últimos tempos. Se conseguirmos alcançá-lo um dia, o nome “raso” terá que ser revisto, pois estaremos diante de uma das mais profundas e necessárias mudanças da sociedade brasileira. Tomara que ela aconteça em breve. Ando cansado de – no fim – acabar me identificando com o ângulo nulo.

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Conversa de padaria…

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Uma madrugada qualquer, numa badalada padaria de Brasília…

– ¿Por qué nos llamó aquí, presidente Pão Sovado?

– Tenho uma grave denúncia a fazer, caros representantes das nações. Mas só vou dizer depois que os comunistas Alfajor e Biscoito da Sorte voltarem pras prateleiras. Vocês não foram convidados, talquei?

– Mon dieu, comme c’est grossier.

– Sou grosso com quem merece, Croissant. E não vem com biquinho pro meu lado que não tolero pão fresco.

– How long will it take?

– Não vai demorar, English Muffin. Preparei um power point que vai deixar tudo muito claro pra todos.

– What is “brienfing”?

– Seu inglês anda bem fraquinho, heim American Cookie? É nisso que dá eleger esquerdista.

– Ich verstehe nichts.

– Já vai entender, Pretzel. Chamei todos vocês aqui porque estou sendo boicotado.

– Biscoitado?

– Virou piadista agora, ô Pastel de Nata? Essa gracinha foi só porque eu não quis receber o seu presidente Pão de Azeite na semana passada, né?

– Estamos berdendo tembo. Daqui a bouco abre o nosso loja.

– Tem razão, Pão Árabe. Vamos ao que interessa: o fato é que há um complô pra me tirar da presidência.

– ¿Puede probar eso, presidente Pão Sovado? Es una acusación muy seria.

– Claro que posso, Chivito. Tenho provas contundentes de que as próximas eleições serão fraudadas pra eleger o intragável Pãozinho com Mortadela.

– Ma il Pãozinho com Mortadela è molto popolare qui.

– Popular sou eu, Ciabatta. Vejam as imagens de como sou adorado pelo povo. O Pãozinho com Mortadela não pode nem sair da padaria. Só ganha com fraude.

– ¿Quiénes son los criminales?

– São os homens de preto dos caixas, Tortilha Mexicana. Eles não permitem que ninguém confira a votação e dizem que vão usar leitores eletrônicos de códigos de barra para definir o pleito.

– Mas não foram esses mesmos leitores eletrônicos que o elegeram da última vez, presidente?

– Sim, Cacete Angolano, mas foi só porque a turma do Pãozinho com Mortadela não pagou a segunda parcela dos hackers. Está tudo no power point.

– Pero, ¿dónde está la evidencia de todo esto?

– Vocês querem provas ainda mais claras?

– Sure! All of us.

– Por que vocês não acreditam no que eu digo? Meus adoradores jamais questionam, talquei? Mas podem escrever: com esses leitores eletrônicos não vai ter eleição esse ano.

– ¿Y quién lo apoyará en esta locura, presidente?

– Os únicos que importam: o povo e o meu exército de rosquinhas de leite condensado.

– That’s enough for me. Let’s go, fellows.

– Ei, aonde vocês vão? Vocês têm que me ajudar a espalhar essa mentira pelo mundo… bando de comunistas… ô saudade do tempo em que pão só crescia com uma boa sova…

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Fim de linha…

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Estavam todos reunidos na antessala da casa de repouso dos ex-presidentes (sim, eu sei que não existe casa de repouso para ex-presidentes, mas a crônica é minha e levo os ex-presidentes para onde eu quiser). Ali, todos tinham tempo de sobra para relembrar os momentos de glória, as fases difíceis, as temporadas atrás das grades, a amizade dos poucos colaboradores fiéis, a falsidade dos inúmeros aliados de ocasião (principalmente os de centrão).

Os enfermeiros acostumaram-se a ouvir escabrosos segredos de estado no café da manhã, seguidos de confissões comprometedoras a cada banho de sol. Afinal, ninguém mais tinha motivos para esconder seus malfeitos. Todos os possíveis crimes estavam prescritos e, àquela altura da vida, passar o resto dos dias no asilo ou na cadeia não faria tanta diferença.

As discordâncias ideológicas também perderam o ardor dos tempos áureos. Não era incomum que os interlocutores mais frequentes fossem justamente aqueles que protagonizaram embates acalorados no passado. Exemplo disso era a afinidade entre os dois presidentes que sofreram impeachment, apesar de suas ideologias antagônicas. A improvável amizade solidificou-se ainda mais depois que ambos passaram a ser alvos de chacotas por parte dos campeões de crimes e desvios, orgulhosos por terem mantido seus postos graças a mensalões, nomeações e orçamentos secretos.

Outra conversa recorrente reunia dois famosos na luta contra a inflação. Dono de um comportamento refinado, o único a lograr êxito jamais tripudiou o companheiro, embora – de quando em quando – chamasse sua enfermeira de “fiscala” só para irritar o amigo.

Os hóspedes mais próximos, entretanto, eram os fundadores das duas maiores seitas ainda em atividade naqueles dias. A rivalidade que construíram ao longo dos anos permanecia apenas entre seus milhões de seguidores. Cabia agora aos herdeiros de cada um continuar alimentando as teorias da conspiração que mexiam com as cabecinhas limitadas dos mais incautos. Assim conseguiam manter seus rebanhos motivados, e em constante crescimento. Alheios a tudo isso, ex-mito e ex-homem-mais-honesto passavam as tardes vangloriando-se de suas habilidades em comum. Contavam histórias dos ditadores do passado que tanto admiravam, riam-se dos expedientes usados para driblar as leis eleitorais e de responsabilidade fiscal, relembravam os nomes dos jornalistas e veículos de comunicação que mais odiavam (antes da regulação da imprensa, ainda em vigor), e disputavam qual horda de seguidores era mais fiel em função do número de agressões e assassinatos cometidos ao longo dos anos. Sempre chegavam à conclusão de que tinham sido bem sucedidos em seus intentos, afinal, haviam deixado como herança um país dividido, polarizado, incapaz sequer de cogitar eleger alguém que não pertencesse aos dois clãs.

Do lado de fora dos portões, um pequeno grupo gritava palavras de ordem e empunhava cartazes alertando que políticos deveriam ser cobrados, jamais endeusados. A polícia logo chegou para prendê-los, e a paz voltou a reinar (pelo menos naquela pacata casa de repouso).

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Going to the mattresses…

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O Poderoso Chefão, exatos 50 anos depois de sua estreia no Brasil…

– Agora você vem a mim e diz: “Don Corleone, faça justiça”. Mas você não pede com respeito. Não oferece sua amizade. Nem sequer pensa em me chamar de Padrinho.

– Perdoe-me, Padrinho.

– Assim é melhor. Que justiça você busca, Bonasera?

– Preciso dar uma lição nos ladrões que machucaram minha filha.

– Pode contar conosco.

– Muito obrigado, Padrinho. Fico feliz por saber que eles terão o que merecem.

– Sim, vamos levá-los para um centro de cuidados especiais onde receberão o amor e a compreensão que não tiveram na infância.

– Mas… Padrinho, eu quero que eles sofram.

– E eles sofrem, Bonasera. São vítimas de uma sociedade desigual, elitista, patriarcal, racista e escravocrata.

– Mas eles são italianos.

– Ah, sim… e xenófoba.

– Eles não vão pagar pelo crime que cometeram?

– Claro que vão. Com os salários que irão receber, finalmente eles terão condições de pagar por bens até então restritos às classes opressoras.

– Eles serão remunerados? Padrinho, essas pessoas são um perigo pra nossa comunidade.

– Bonasera, o que é uma comunidade senão um grupo de indivíduos regido por normas arcaicas que – paradoxalmente – não respeitam as individualidades de cada um.

– São bandidos.

– São minorias. E, como minorias, devem ter suas demandas e reivindicações respeitadas prioritariamente a qualquer cidadão.

– Padrinho, não estou reconhecendo o senhor. Sempre foi tão frio e impiedoso.

– Bonasera, só com o tempo percebemos que certos comportamentos e palavras não são mais adequados no mundo diverso e inclusivo em que vivemos.

– Mas… e a minha filha?

– Deixe sua filha livre para ser como ela quiser, quem ela quiser, e até o que ela quiser.

– É meu dever protegê-la.

– Ela não precisa de homem nenhum, e saberá se virar muito bem sem sua superproteção, sem sua masculinidade tóxica.

– O senhor anda muito diferente, Padrinho. Esquece. Pode deixar que eu mesmo dou um jeito nesses caras.

– Bonasera.

– Sim, Padrinho?

– Deixe a arma, leve o cannoli.

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Pesquisa escolar…

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– Pai, mãe, minha professora me pediu uma pesquisa sobre os 28 anos do Plano Real. Vocês podem me ajudar?

– Puxa, tem tanto tempo assim? Eu me lembro como se fosse hoje.

– Você já tinha nascido, pai?

– Há muito tempo, querido. Eu e seu pai vivemos o tempo da hiperinflação. A gente tinha que fazer todas as compras logo que recebesse o salário. No dia seguinte tudo estava mais caro.

– Mas… hoje em dia também não é assim?

– Tô falando que na escola desse menino só tem comunista…

– Ariovaldo, para de falar bobagem. Filho, mesmo a inflação alta como está hoje não chega nem perto da daquele tempo. Era uma loucura.

– Quem era o presidente?

– O Itamar Franco. Mas quem levou a fama foi o comunista do Fernando Henrique.

– Ariovaldo, que mania de chamar todo mundo de comunista.

– Quem era Fernando Henrique, mãe?

– O ministro da economia da época. Foi eleito presidente naquele mesmo ano.

– Ministro igual ao Paulo Guedes?

– Sim, só que o Paulo é o melhor economista do mundo, e o FHC não passa de um esquerdista.

– Ariovaldo, não atrapalha o trabalho do menino.

– Mãe, por que o Plano Real deu certo?

– Nossa, querido, foram muitos fatores. Foi um plano elaborado por muita gente competente, contou com o apoio maciço do congresso e da população, mas acho que o mais importante foi ter conseguido mudar a cultura inflacionária do país.

– Não tinha ninguém contra?

– Só os petistas, como sempre.

– Eles e o Bolsonaro, né, Ariovaldo?

– Por que eles eram contra, pai?

– Os petistas porque são burros. O mito porque ainda era muito jovem.

– Há pouco tempo ele disse que não se arrependia daquele voto, Ariovaldo.

– Dirce, não atrapalha o trabalho do menino.

– Nesses anos todos, o Plano Real correu algum risco de acabar?

– Ah, vários, principalmente com os ladrões do PT no governo.

– Quais riscos, pai?

– O Brasil teve uma presidente muito incompetente, filho. Ela quase destruiu o Real e o país.

– O que ela fez?

– Putz… tanta bobagem… ela interferiu nos preços da Petrobrás…

– Igual ao Bolsonaro?

– Dirce, acho que vou trocar esse garoto de escola…

– Continua respondendo a pergunta dele, homem.

– Bom, o governo dela gastava muito mais do que arrecadava, dava dinheiro pros pobres só pra conseguir votos, achava que era possível reduzir preços por decreto, e jogava as dívidas que podia pra frente pra tentar escapar das leis de responsabilidade fiscal.

– Mas, pai… eu ouvi no rádio que uma lei aprovada ontem tinha tudo isso que você falou. Essa presidente ainda faz parte do governo?

– Chega, moleque. Já te falei que a única rádio de notícias que você pode ouvir é a Jovem Pan. E amanhã eu vou dar um jeito de marcar uma reunião com a sua professora.

– Mas, pai, ainda falta perguntar sobre o crescimento do PIB nos governos que vieram depois do Real.

– Volta aqui, Ariovaldo. Volta aqui.

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Opiniões…

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– Cansei de caminhar.

– Quer se sentar naquele banco?

– Pode ser… tô exausta.

– Que praça é essa?

– Hum… acredita que eu esqueci o nome?

– Também tô cansada. Ainda mais depois que a gente teve que escapar da confusão.

– Pois é. Imagina entrar de gaiato em briga dos outros.

– Ainda não entendi por que eles estavam brigando.

– Eram duas passeatas, uma pró e outra contra o aborto. Quando se encontraram, já viu.

– Não entendo como alguém pode ser a favor do aborto.

– Nem eu. Vida é uma coisa muito séria, né?

– Demais…

– Mas você acha que é crime?

– O quê?

– Fazer um aborto.

– Pela lei dos homens e pela lei de Deus.

– E no caso de estupro, de risco de vida da mãe…

– Aí é diferente.

– Pois é, também acho.

– Mesmo assim deve ser duro. Não sei o que eu faria.

– É difícil julgar.

– Demais…

– Acho que nem cabe julgamento.

– Mesmo pra quem aborta sem motivos?

– Existe aborto sem motivos?

– Quis dizer os previstos em lei.

– Mesmo assim.

– …

– …

– Ainda tô tentando lembrar o nome dessa praça.

– Depois a gente olha.

– …

– …

– Então você acha que não deveria ser crime?

– Acho.

– Mas você tinha acabado de dizer que não era favorável ao aborto.

– E não sou mesmo.

– Não entendi. É contra mas não acha que é crime?

– Sabe, quem quiser vai abortar de qualquer jeito.

– Talvez, mas penso que, se for uma coisa legalizada, fica fácil demais.

– Fácil ou mais segura?

– Os dois. É que a ideia de interromper uma vida me dá arrepios.

– A mim também. Mas a gente nunca esteve numa situação em que essa seria uma hipótese, né?

– Isso é verdade.

– Pois é.

– É difícil julgar.

– Demais…

– …

– …

– Acho que começa com “P”.

– O quê?

– O nome da praça.

– …

– …

– Até quantas semanas?

– Como assim?

– Se você aprovasse a descriminalização, permitiria até quantas semanas?

– Ah, sei lá. Talvez 12. Mas depende de muitos fatores. Viu o caso da menina que descobriu a gravidez com mais de 20?

– Com 12, 20 ou 30 semanas, a criança é a mesma.

– É a mesma. Mais ou menos desenvolvida.

– Viva.

– Sim, viva. Até que a mãe não a queira mais.

– Eu acho isso tão errado.

– Pode ser. Mas é crime?

– É difícil julgar, né?

– Demais…

– …

– …

– Vamos continuar a caminhada?

– Bora.

– Olha só a placa lá na esquina: Praça das Perspectivas.

– Putz, como pude esquecer? Gosto tanto daqui.

– Eu também…

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