Os Natais e a brisa…

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A maioria das minhas noites de Natal foi passada ao lado de muita gente. Tios, primos, cunhados, sobrinhos e amigos insistiam em me mostrar o quanto as famílias podem ser inusitadas, controversas, generosas e divertidas. Outras foram passadas somente com meus pais e irmãos, contrariando nossa vocação de convidar meio mundo a cada momento de celebração. No mais solitário dos meus Natais, eu e dois amigos estávamos bem longe de casa. Ainda assim, a noite gelada foi aquecida por sorrisos e prantos, trivialidades e reflexões, saudades e certezas de que as ausências – assim como os Natais – fazem parte da vida.

Os últimos anos, entretanto, trouxeram novos ingredientes a uma receita já consagrada. Passei a enxergar no Natal a maior oportunidade de me completar. Os enfeites, as árvores e os presentes tornaram-se irrelevantes diante dos toques, dos cheiros, das mãos entrelaçadas, das longas conversas que independem da tecnologia para acontecer. Assim, nossas noites de Natal passaram a ser inestimáveis como aquelas em que Papai Noel transformava sua presença em catarse coletiva. Aquelas em que as palavras de meu pai tocavam tão profundamente o coração das pessoas que até as lágrimas apareciam para ouvi-las também. Aquelas cuja profusão de emoções ajudou a definir meu conceito de família.

Lembramo-nos de muitas delas ontem à noite, quando a brisa do mar foi a única a nos fazer companhia. Cantamos, abraçamo-nos, reconhecemo-nos. Em nossas divagações, perguntamo-nos quando meu irmão terá novamente coragem de usar a roupa vermelha que revela o Papai Noel que ele jamais deixou de ser. Arrisquei – em vão – palavras que guardassem uma fração da sabedoria que testemunhei ao longo de tantos anos. Ao final, ficamos novamente com a certeza de que as ausências – assim como os Natais – fazem mesmo parte da vida.

Tenho a impressão de que a brisa do mar também foi dormir em paz.

Feliz Natal a todos.

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Mensagens claras…

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– Tem certeza de que é uma boa idéia?

– Claro. A gente não pode dar bobeira.

– Mas a mensagem tem que ser clara.

– Não clara demais, senão aqueles canalhas vão derrubar, principalmente o Xan…

– Não fale o nome dele.

– Foi mal.

– Todo cuidado é pouco. Estamos numa ditadura.

– Verdade. Bom, pensei em começar com essa aqui: “caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, no sol de quase dezembro, eu vou”.

– Isso é piada, né? Não tem mensagem nenhuma aí.

– Como não? Caminhar contra o vento é uma metáfora da nossa marcha de resistência.

– Nem eu nem ninguém ali sabe o que é metáfora.

– Tá bom, vou tentar ser mais claro. O que acha dessa? “Pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue”.

– Que diabos o alcoolismo tem a ver com a nossa luta?

– Não tem alcoolismo nenh… ah, deixa pra lá.

– Olha só, vamos simplificar. Os homens gritam “SOS”, e as mulheres gritam “forças armadas”. Não fica bom?

– Pobre e explícito demais. Você acha que o… ops, que ele deixa passar?

– Só sei que a gente precisa mobilizar aqueles patriotas. Nunca vi tantas pessoas de bem reunidas.

– Essa aqui é perfeita. É animada, e a mensagem é mais clara ainda: “apesar de você amanhã há de ser outro dia. Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia. Como vai proibir quando o galo insistir em cantar?”

– Ah, para com isso. Quero lá saber de galo cantando? Quero mais é metralhadora cuspindo fogo e pondo ditador de toga pra correr.

– O galo não é literal. Representa um novo dia, uma nova esperança…

– Quer saber? Acho que a gente devia fazer um jogral só de mulheres. Cada uma fala uma frase curta. Tudo bem direto, sem… como é mesmo a palavra?… metáforas, né?

– Um jogral?

– Isso. E deixa que eu mesmo escrevo. Já vi que você não leva o menor jeito pra comunicação com as massas.

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Sentidos…

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A casa ainda estava na penumbra quando fechei a porta. Lá fora, o carmim tênue que marcava o horizonte não era capaz de iluminar a trava do portão. Recorri ao tato. O mesmo tato que, durante anos a fio, usei para explorar sua pele, suas curvas, seus picos e vales. Assim, aprendi a diferenciar os arrepios do começo dos calafrios do fim, os espasmos de prazer dos de repulsa, os gemidos espontâneos dos suspiros resignados. Meus dedos foram os primeiros a me dizer. Custei a lhes dar ouvidos.

A relva banhada de orvalho imitava a fragrância da chuva que, há tempos, não caía. O turno do jasmim do campo chegara ao fim. O aroma da manhã me envolvia, mas era o perfume do seu suor que dominava meu olfato. Levei minhas mãos ao nariz, na busca de reconhecer meu próprio cheiro. Eu nada exalava. Apenas minha alma fedia a desilusão.

Os gorjeios matutinos me incomodavam. Estridentes, machucavam meus tímpanos habituados ao seu silêncio. Muito foi falado. Fui incapaz de perceber seus gritos afônicos, suas súplicas taciturnas, suas ofensas emudecidas. As palavras doces que pensei ter saído de sua boca, fui eu quem as disse. Sua voz jamais pronunciou as juras de amor que jurei ter ouvido. Era falso o falsete de sua respiração arfante. O ruído de seus traços me cegara.

O sabor do café amargo disfarçava o fel do rancor. A goiabeira do pomar cedeu o fruto que prometia adoçar meu paladar. Infrutífera tentativa. Minha língua, dormente, só era capaz de reconher o gosto da sua. Justo ela, que um dia desvendara todos os segredos de seu corpo, entre uma e outra pausa para recuperar fôlego e saliva. Minha boca se fechara. Passei a engolir em seco o desprezo.

Os primeiros raios de sol despontaram. Levei a mão ao rosto para me proteger da claridade ofuscante. A luz forte não fazia frente ao brilho do seu sorriso, tão sedutor quanto indecifrável. Voltei meu olhar para as nuvens tingidas de amanhecer. Buscava, em vão, algo a me mostrar que a esperança haveria de renascer. Um pássaro qualquer alçou voo bem ao meu lado. Dei de ombros, segui em frente. Um dia, quem sabe, esse medo de voltar a enxergar também me abandone.

Olhei para trás, uma última vez. Da janela, seu vulto me dizia que grande parte da minha vida jamais fez sentido.

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O maior dos mitos…

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Você acreditou no mito. No mito da gripezinha, da cloroquina, da vacina que mata. Acreditou que imunizar criança é crime, que máscaras não reduzem o contágio, que a pandemia não passou de uma farsa comunista. Acreditou que o Centrão era inimigo e, depois que virou amigo, passou a acreditar nele também. Acreditou que as eleições de 2014 e 2018 foram fraudadas, mesmo que ninguém tenha apontado qualquer indício de irregularidade. Acreditou que os auxílios não foram tentativa de compra de votos, que as intervenções nas estatais jamais tiveram viés populista, que a blindagem por parte do congresso foi conquistada por razões meramente ideológicas. Acreditou serem falsas todas as pesquisas que sempre apontaram Bolsonaro atrás na corrida presidencial. Acreditou no “datapovo” – prova inconteste de que ele seria eleito no primeiro turno –, nas mensagens do Telegram e do Whatsapp, em toda e qualquer teoria da conspiração compartilhada por sua bolha.

Passada a eleição, você passou a considerar democráticas as paralisações de rodovias. Acreditou no mito das 72 horas de vigília, dos 20 milhões de curtidas no site do exército, do artigo 142. Acreditou na palavra de um argentino que apresentou dados sem qualquer credibilidade. Acreditou que uma revolução estava sempre prestes a acontecer, que a (sua) verdade – mais cedo ou mais tarde – viria à tona, que o tão esperado relatório das forças armadas traria informações que justificassem um golpe militar. Você ainda acredita em tudo isso, mesmo que todas as evidências mostrem o contrário. Você acredita – e continuará acreditando – na ditadura em nome da liberdade, no fechamento das instituições em nome da democracia, no fim dos “esquerdopatas” em nome da família e das “pessoas de bem”.

De tanto acreditar nos mitos, você se tornou o maior deles.

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Democracia seletiva…

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– TRE, bom dia.

– Ótimo dia. Você pode me informar quando será a eleição? Tenho umas viagens programadas e não quero correr o risco de estar fora do Brasil. Cada voto será muito importante.

– Minha senhora, a eleição foi no domingo passado.

– Não tô falando daquela fraude, filhinho. Quero saber da eleição pra valer.

– A eleição de domingo foi pra valer.

– Nossa, como é difícil falar com gente desqualificada. Rapazinho, passa a ligação pra alguém melhor informado, passa.

– Senhora, tenho pleno conhecimento de todo o processo eleitoral.

– Ah, tem? Pois fique sabendo que já se passaram 72 horas e nós, pessoas de bem, continuamos nas ruas.

– E?

– E é claro que o artigo 142 já está valendo. Então, filhote, vou te dar mais uma chance: quando será a eleição?

– A próxima eleição pra presidente está marcada pra outubro de 2026.

– Olha aqui, garoto. Não ando com paciência pra esse tipo de brincadeira. As 72 horas já se passaram, paramos o país democraticamente, o site do exército tem mais de 20 milhões de curtidas, entregamos flores nos quartéis em nome da liberdade, o relatório das forças armadas apontando os roubos nas urnas já está pronto, e acabei de saber que o canalha do Xandão será preso a qualquer instante. Fizemos tudo dentro das 4 linhas da constituição.

– Senhora, não tem nada disso na constituição. E essas informações não procedem. Lamento dizer que vocês foram enganados.

– Não, guri, enganado está você se acha que aquele criminoso vai assumir.

– Senhora, o vencedor tomará posse no dia primeiro de janeiro, porque é isso que está determinado na nossa constituição.

– Aposto que você votou no condenado. Viu que ele vai pagar só 400 reais de bolsa-família? Tá na LDO de 2023. Acabei de saber pelo Telegram. Faz um “L” agora, faz.

– Senhora, meu voto não vem ao caso, não sou seu garoto, filhote ou filhinho, e quem mandou a LDO para o congresso foi o governo atual. É realmente digno de nota que a senhora não tenha percebido isso até agora. Mais alguma informação?

– De você? Nunca. Bem que me avisaram que só iria receber fake news se ligasse pro TRE. Eu e minha mania de querer ser democrata. Mas pode ter certeza de que não fiquei na chuva ontem à toa.

– Certamente que não, senhora. Uma última gripezinha de lembrança sempre vale a pena. Vai tomar cloroquina? Ou prefere fazer arminha?

– …

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Desânimo e empolgação…

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Ele abriu os olhos, torcendo para que a escuridão do quarto fosse prenúncio de mais algumas horas de sono. Tateou o criado-mudo em busca do celular, e assustou-se ao perceber que o dia nascera há muito. Lá fora, nuvens carregadas brincavam de esconder o sol. Arrastou-se até o banheiro, torcendo para que o reflexo do espelho não o chamasse para o bate-papo de toda manhã. Não estava a fim de conversa, nem com ele mesmo. As lembranças da noite anterior se misturavam às imagens do pesadelo que atormentou sua madrugada. Mesmo no torpor dos acontecimentos, sabia que aquele abatimento lhe faria companhia pelos próximos 4 anos. Optou por não acessar suas redes sociais, como fazia sempre que tomava seu café. Não teria como filtrar as cenas das comemorações que se sucederam noite adentro, a maioria patrocinada por gente arrogante e hipócrita. Os que celebravam a vitória do “mal menor” não o incomodariam. Mas recusava-se a ser testemunha das provocações torpes e medíocres, vindas de quem sempre foi incapaz de analisar os fatos com um mínimo de isenção. Os fanáticos festejavam como se o bem houvesse triunfado sobre o mal, como se fizessem parte de um grupo de iluminados, únicos e verdadeiros detentores de todos os méritos e virtudes. Preparavam-se para mais um tempo de louvor a quem deveria ser alvo de constante vigilância, de cobranças de postura e coerência, de atenção a quaisquer desvios de conduta. O compromisso de que os aplausos abafariam as críticas estava novamente selado. Cabisbaixo, ele pegou a chave do carro e saiu para outro dia de trabalho.

Ele abriu os olhos quando o sol que entrava pela fresta da cortina aqueceu seu rosto. O céu azul era prenúncio de um dia produtivo. Levantou-se e dirigiu-se ao banheiro, disposto a dialogar com o reflexo no espelho. Havia muito a ser dito. A cumplicidade do momento crescia com as lembranças da noite anterior. Parecia ter sido um sonho. Por mais difíceis que fossem os próximos 4 anos, ele sabia que poderia resgatar aquela sensação como lenitivo. Acessou suas redes sociais, como fazia sempre que tomava seu café. Deparou-se com lamúrias e reclamações que se repetiram noite adentro, boa parte feita por gente arrogante e hipócrita. As queixas de quem preferia a derrota do “mal maior” não o alegraram. Mas não conseguiu deixar de sorrir ante a revolta daqueles que se acostumaram a avaliar os fatos apenas em função de seus autores. Daqueles que optaram deliberadamente por não enxergar a deterioração da figura que insistiam em venerar. Os fanáticos soluçavam como se o mal tivesse triunfado sobre o bem. Justo eles, adestrados a ignorar as evidências da perversidade que alimentaram. Justo eles, que julgavam-se parte de um grupo de iluminados, únicos e verdadeiros detentores de todos os méritos e virtudes. Findava-se o tempo de louvor a quem deveria ser alvo de constante vigilância, de cobranças de postura e coerência, de atenção a quaisquer desvios de conduta. As críticas estavam – finalmente – liberadas. Animado, ele pegou a chave do carro e saiu para um novo dia de trabalho.

Abro os olhos, levanto-me, vou à janela. Como eu previra, o sol nasceu entre nuvens…

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Leve…

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No sonho mais recorrente que tive na infância, eu era capaz de voar. Às vezes sozinho, como os super-heróis que admirava, outras com o auxílio de uma prancha que sustentava meu corpo. Já não me recordo dos contextos, mas, mesmo depois de tanto tempo, ainda consigo sentir o vento a tocar meu rosto e impulsionar meu voo. Perceber-me menos denso que o ar representava meu desejo de estar acima dos medos, das angústias, dos problemas. Mirava o horizonte entre as nuvens, e pedia por uma vida mais leve ao acordar.

Não saberia dizer o que o assustava mais a cada manhã: o som alto da válvula que liberava o gás, ou o clarão das labaredas que inflavam a imensa lona que dava forma ao seu corpo. Ciente de sua missão, aguardava por aqueles que vinham em busca de um pouco mais de levidão.

Cresci. Diferentemente do que imaginara, os desafios que encontrei pela frente me pareciam cada vez mais pesados. Superá-los, por consequência, tornava-se sucessivamente mais difícil. Muitas vezes sonhava acordado, e esforçava-me para relembrar as sensações dos voos da infância. Tinha saudades de uma suavidade que jamais chegara a experimentar.

A grande lâmpada multicolorida estava formada. O momento de zarpar se aproximava. Como de praxe, uma pequena fila de ansiedade formou-se à sua frente. Os sorrisos não eram capazes de esconder os fardos que pesavam em cada um dos ombros. Ele os sentia.

Foi em uma sala de aula que a vi pela primeira vez. Seus olhos fitaram os meus, e me senti levitar. Afastei-me, receoso. O medo de altura dizia que apenas nos sonhos eu poderia alçar voo. Lançara muitas âncoras pelo caminho. Curiosa por saber que altitude alcançaríamos juntos, pôs-se a me ensinar os segredos da levitação. Bastaria que eu rompesse as amarras que me prendiam ao solo. Acomodado, não tive coragem de fazer o pouco que me cabia.

Os primeiros instantes de cada subida são sempre os mais desafiadores. É quando percebem que lhes falta o chão, e nada os impede de mergulhar no vazio. Seguram-se nas bordas da cesta, como se estas fossem capazes de suportar o peso que carregam. Apenas ao atingirem o ápice é que entendem que grandes voos só se tornam possíveis com as mãos soltas e os braços abertos.

Sua levidade me fazia falta. A vontade de voar aumentava a cada amarra cortada. Corri ao seu alcance, disposto a ser um bom aluno. Sua condição foi de que aprendêssemos juntos. E assim fizemos. Voamos bem alto muitas vezes, caímos outras tantas. Erguemo-nos dispostos a manter uma boa altura de cruzeiro. Já são 25 anos de um voo a dois. Há 25 anos, experimento uma leveza que nem os meus melhores sonhos conseguiram proporcionar. Quero voar bem mais. Quero voar eternamente. Com ela, sempre com ela.

O sol desponta no horizonte, e os balões – convidados para o baile das bodas – percebem que ainda têm muito a aprender sobre a arte da flutuação…

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Quem vai perder…

Eu era um jovem de 22 anos quando votei para presidente pela primeira vez. Tive sorte. Muitos eleitores de primeira viagem tinham 45 anos ou mais naquele mesmo pleito. A sensação que compartilhávamos também era inédita. Havia uma textura quase palpável no ar. Sons eram saboreados, como se a língua fosse capaz de identificar o amargor das palavras, o sal dos brados, o doce das promessas. Ainda consigo sentir o cheiro das ruas, incrédulas diante de tantos rostos fantasiados de esperança. As sacadas – acostumadas a contemplar outro tipo de marcha – ecoavam vozes que, um dia, tinham sido condenadas ao silêncio.

Dei àquela sensação o nome de liberdade. Nela mergulhei. Meu primeiro voto foi uma prece, e a imagem da democracia passou a adornar o meu altar. Nem a difícil escolha feita naquele segundo turno conseguiu atenuar a minha nova fé.

Escolhas difíceis repetiram-se na maioria das eleições seguintes, cada vez mais contaminadas pela cegueira e pelo populismo. Com o tempo, os cheiros, as texturas e os sabores que me arrebatavam foram substituídos pelo desânimo de ter que – no fim – escolher o “mal menor”.

Daqui a pouco o Brasil acorda para a mais desoladora eleição de sua história. Pela primeira vez, a disputa não acontece entre candidatos, partidos ou propostas. Vamos eleger um dos líderes de uma seita de fanáticos. Nos próximos quatro anos – independentemente de quem vença -, chamaremos de presidente um político corrupto, retrógrado, corporativista, populista e desagregador, que trará consigo o apoio irrestrito e incondicional de uma massa incapaz de pensar por si própria.

Sozinhas, entretanto, as seitas seriam incapazes de eleger alguém. Ambas recorrem ao medo para conseguir arregimentar os votos que lhes faltam. O mesmo medo que impede que outras candidaturas – muito melhor preparadas – tornem-se viáveis. O mesmo medo que se disfarça de “voto útil”, que se esconde no fundamentalismo rasteiro, que rotula a sagrada liberdade de escolha como divina ou diabólica. O medo é, sem dúvida alguma, o grande vencedor deste pleito.

Também pela primeira vez, estou longe do Brasil em uma eleição presidencial. Estaria distante, mesmo que lá estivesse. Distante das boas sensações que ajudaram a moldar minha fé na democracia. Distante dos 90% dos brasileiros que já decidiram fazer do primeiro, o segundo turno. Sim, a eleição pode terminar hoje, com a volta daquele que permitiu o maior assalto aos cofres públicos de que se tem notícia. Fiéis aos devaneios do presidente, os bolsonaristas mais radicais afirmam que o único resultado aceitável é a reeleição de seu mito. É o que se espera de quem acredita em cloroquina e mamadeira de piroca.

Bom domingo de eleição a todos. Não preciso aguardar o resultado para afirmar que o grande perdedor será o Brasil.

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Leitura de ocasião…

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– Menina, há quanto tempo.

– Amiga, tô em falta com você. Vivo numa correria maluca. Essa vida de coach literária não é fácil.

– Coach literária? Achei que você trabalhasse com venda de cosméticos.

– Larguei. Queria algo que me completasse, sabe? Quero deixar minha marca na sociedade.

– Que bacana. Mas não deve ser fácil. Qualquer trabalho relacionado à leitura no Brasil é uma tarefa inglória.

– Que nada. Você não imagina como meu negócio anda bombando.

– Gente, tô surpresa. Nossa população compra tão poucos livros…

– Isso tá mudando, viu?

– Que coisa boa de se ouvir. Educação e cultura são base pra qualquer sociedade.

– Meu lema, amiga.

– Olha, tô muito orgulhosa de você.

– Ai, brigada. Você não quer participar?

– Claro que quero. Como funciona? Você sugere livros?

– Isso mesmo. Como é bom falar com gente letrada.

– Imagina. É que eu já participei de alguns grupos desse tipo. A gente lia um livro por semana, e conversava sobre ele no encontro seguinte.

– Eu prefiro fazer por tópicos. Um por mês.

– Gostei da ideia. Qual é o tema desse mês? Clássicos? Lançamentos? Algum autor específico?

– Não. Esse mês é camurça.

– Camurça? Nunca ouvi falar nesse romance. Quem escreveu?

– Amiga, camurça é uma cor. Escolhi porque traz harmonia, leveza e elegância. Tudo que a gente anda precisando.

– Não entendi. E daí se é uma cor?

– Daí que você tem que comprar livros da cor camurça pra poder participar.

– Você tá falando da cor da capa?

– Também, mas principalmente da lombada.

– Mas… qualquer um?

– Claro. O que importa é a tonalidade.

– E se os livros forem ruins?

– Quem disse que você vai ler?

– Se não for pra ler, por que eu iria comprar?

– Ué, pra empilhar e postar nas redes, claro.

– Você enlouqueceu? Não vou comprar livros só pra postar no Instagram.

– Nossa, que decepção. Pensei que você quisesse mudar o país.

– E você acha que uma bobagem dessas pode ajudar a mudar o país?

– Amiga, não sou só eu não…

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À beira do abismo…

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Muita gente tem estranhado a minha baixa produção literária em um período tão próximo às eleições. A escassez de crônicas de cunho político parece ser mesmo atípica. Diariamente, o Face me lembra de um grande número de textos escritos nesta mesma época, durante as campanhas de 2014 e 2018. Tempos em que meu desânimo com os protagonistas da política brasileira ainda não havia dizimado minhas esperanças de que – um dia – poderia vir a testemunhar períodos de tolerância, competência, prosperidade e justiça social. Hoje, diante do inevitável e desastroso desfecho para o qual caminhamos – independentemente de qual dos dois criminosos venha a ser eleito –, é cada vez mais difícil encontrar palavras que expressem meu desalento. Afinal, esta é mais uma eleição em que repetimos os mesmos erros. Quantas vezes já escrevi sobre isso… Tem hora que cansa.

Também cansa a ofensiva que ambos os lados agora fazem pelo tal do (argh) “voto útil” no primeiro turno. Querem que eu vote em Lula para que Bolsonaro seja defenestrado o mais rapidamente possível. Querem que eu vote em Bolsonaro para que a chance de que Lula desapareça de uma vez por todas da vida pública brasileira permaneça viva. E eu aqui, lamentando a oportunidade que estamos perdendo de acabar com os dois bandidos de uma só vez.

“Quem não se posicionar agora não vai poder reclamar depois”, ameaçam os adoradores de políticos. Como se o direito de criticar fosse exclusivo àqueles que votam em A ou B. E como se eu – que vou de C – estivesse fadado a escrever somente sobre flores, mares e montanhas pelos próximos 4 anos.

Não, não vou votar no seu deus, caro militante petista. Não acho que sua possível eleição já no primeiro turno traga algum benefício ao país. Lula jamais conseguiu ser eleito dessa forma, mesmo quando sua popularidade era incontestável. Foi preciso uma figura lamentável como Bolsonaro para que, pela primeira vez, essa possibilidade se tornasse concreta.

Não, não vou votar no seu mito, caro bolsominion. E, no seu caso, acho que você deveria ficar satisfeito com minha escolha. Pense: quanto menor a quantidade de votos recebidos por Ciro Gomes e Simone Tebet, maiores serão as chances de que essa eleição termine no próximo dia 02 de outubro. E isso não é opinião da globolixo, é pura matemática. Claro, sei que você acha que as pesquisas são falsas e que o messias vai ganhar de lavada. Cada um tem o direito de acreditar na terra plana que quiser. No mundo real, entretanto, os votos de Ciro e boa parte dos votos de Simone têm muito mais chances de ir para Lula do que para Bolsonaro. Portanto, se eu fosse você, começava a fazer campanha para a chamada terceira via. É o que lhe resta.

Quanto a mim, aguardo apenas a eleição do homem mais honesto ou do mais imbrochável, para continuar cobrando dele um mínimo de coerência, de responsabilidade, de compromisso com o futuro do país. Pelo histórico de ambos, inspiração não vai faltar.

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