Mui amigos…

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– Você vai fazer o quê?

– Emprestar dinheiro pro Beto.

– Ficou louco? O cara nem te pagou o último empréstimo.

– Ele me prometeu que vai pagar desta vez.

– Desta vez? E você acreditou? E quanto ao valor que ele ainda tá devendo?

– Fico meio sem graça de cobrar, sabe?

– Mas tô vendo que ele não tem vergonha nenhuma de pedir.

– Fui eu que ofereci.

– Só pode ser piada. Até parece que a gente tá nadando em dinheiro.

– Estamos bem melhores do que ele. Tenho que dar uma força.

– Dar uma força? Nossa casa tá cheia de goteiras, precisa de um monte de reformas, e nossa geladeira tá quase vazia. E você quer emprestar dinheiro pra quem não paga?

– Ele mudou muito, e tá numa situação privilegiada agora.

– O cara não para de gastar, deve a Deus e o mundo, e acha que jogar bola é mais importante que trabalhar. Onde é que tá a “situação privilegiada” que eu não enxerguei?

– Ele precisa do meu apoio.

– Não tô acreditando. O que ele vai fazer com o dinheiro?

– Levar gás pra casa dele.

– Ah, fala sério, outro dia mesmo você tava cheio de moral criticando todo mundo que ajuda a poluir o planeta.

– Tava mesmo. Mas o caso dele é diferente.

– Diferente só porque ele faz parte daquela sua turminha, né?

– Ele, o Huguinho, e o Miguel sempre estiveram ao meu lado, mesmo nos momentos difíceis. É difícil de entender?

– Não. Difícil de entender é você cobrar caráter e honestidade de todo mundo, mas ficar cheio de gracinhas com esses picaretas, autoritários que não admitem ser contrariados.

– Que exagero, eles adoram bater um papo. Sabia que hoje mesmo Huguinho e Miguel vieram conversar sobre um empréstimo?

– Quem poderia imaginar, né?

– Você fica debochando, mas saiba que eles estavam morrendo de saudades de mim.

– Eu também estaria se tivesse alguém que me empresta um dinheiro que eu não preciso pagar.

– Não se preocupe, em breve todos os nossos recursos serão um só.

– Não entendi. Ali, que eu saiba, só tem falta de recurso.

– A gente segura a barra.

– E eles entram com o quê? Não me diga que é charuto, porque o armário ainda tá cheio.

– Pois é, sabe aquela coisa de jogar bola?

– Luiz, Luiz, abre teu olho. Depois te ponho pra fora de casa e você vai reclamar que eu tô dando um golpe…

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Piscina nutela…

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– Não pode custar tudo isso. A gente não queria nada exagerado.

– Sua piscina é das mais simples que projetei nos últimos anos, sr. Teobaldo.

– É verdade, Teozinho. Achei até pequena.

– Eneida, de que lado você está? Não vou gastar o valor de um apartamento só pra você se refrescar uma vez na vida, outra na morte.

– Teozinho, não adianta ficar nervoso. A gente pode tentar simplificar.

– Olha, se eu tirar qualquer coisa do projeto a piscina de vocês vai ficar pobre.

– Sou eu que vou ficar pobre se pagar o que estão me cobrando.

– Hoje tudo está mais sofisticado, sr. Teobaldo. Onde já se viu uma piscina moderna sem prainha?

– É piscina ou é mar?

– Ou sem aquecimento?

– Água fria faz bem pra circulação.

– Ou, pior, sem borda infinita?

– Sabia que meu dinheiro tem fim?

– Teozinho, não seja atrevido. Parece menino mimado.

– Eu? Antigamente toda piscina era um retângulo azulejado que a gente enchia de água. E todo mundo adorava.

– Um retângulo? Que horror!

– Ah, tenha paciência, Eneida. Era mais bonito do que essa ameba que ele desenhou.

– Forma orgânica, por favor.

– Olha, o formato é o que menos me preocupa aqui. São as frescuras que estão encarecendo a obra.

– Que frescuras, Teozinho?

– Ué, cascata, revestimento de pedra vulcânica, sistema de controle de nível, iluminação de fibra ótica… não sei se essa lista é pra uma piscina ou pro show da Ivete Sangalo.

– Só falta você querer tirar a filtragem com ionização também.

– E o que tem de errado com o cloro, criatura?

– O mundo evoluiu, Teozinho. Será que você não é capaz de pensar com a cabeça do século XXI?

– Não, porque a minha cabeça do século XX não conseguiu entender nem como se limpa essa piscina “simples”.

– Sr. Teobaldo, D. Eneida, estou vendo que esta obra não vai sair do papel.

– Podia até sair, mas sem metade desses penduricalhos.

– O senhor está me ofendendo. Meu projeto pensou apenas no seu conforto.

– Pois saiba que estou muito desconfortável com o custo dele.

– Fiquem à vontade pra construir a piscina que quiserem. Só não contem comigo. Tenham um bom dia.

– Viu o que você fez, Teozinho? Que vergonha, meu Deus. E ainda vamos passar mais um verão sem piscina.

– Não vamos não. Comprei uma de fibra pela internet, sem borda, sem praia, sem luz e sem cascata. Simples e bonita como toda piscina deve ser. Chega em uma semana.

– E onde foi que você comprou isso?

– Na Americanas.com…

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Presos às drogas…

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– Velho amigo, há quanto tempo.

– Puxa, tempo demais. Que coisa boa te encontrar.

– Pena que seja em uma circunstância como esta.

– Nem me fale. O que você está fazendo aqui? Não me diga que é por causa da Tati.

– É por causa dela sim. Estou arrasado. A gente avisa, avisa, mas parece que as pessoas não ouvem.

– Sei bem como é isso. Estou vivendo problema igual.

– Você não está falando do Pedrinho, está?

– Dele mesmo.

– Não é possível. O Pedrinho sempre foi sensato, pé no chão, preparado… Como é que ele entrou nessa?

– Não sei dizer. No início, tudo parecia tranquilo. Mas, mesmo naquela época, eu falava pra ele ter cuidado com o vício.

– Eu dizia a mesma coisa, meu amigo. Eles nunca acham que vão chegar nesse ponto. Não sei mais o que fazer.

– Você tentou convencê-la a buscar algum tipo de ajuda?

– E quem disse que ela aceitou? Nessa fase as pessoas não fazem ideia do quanto estão alucinadas. O Pedrinho buscou?

– De jeito nenhum. E ainda fugiu de casa pra morar na rua.

– Que tristeza. O caso dele parece até mais grave.

– Não sei se existe essa coisa de mais ou menos grave, sabe? Todos estão desnorteados. Meu medo é que não tenha volta.

– Vira essa boca pra lá. Os valores familiares que a gente ajudou a passar pra eles não podem ter se perdido.

– Tomara que você esteja certo.

– Tenha fé. A gente aprendeu com a idade, não foi?

– Bom, vamos entrar. Parece que estão abrindo os portões.

– Pai!

– Mãe!

– Filho, você não vai acreditar. Os patriotas que estão na minha cela estão por dentro de tudo. A guerra tá pra começar, filho. Não conta pra ninguém, ok? As paredes têm ouvidos. Mas Deus tá no comando, e o Brasil vai se livrar do comunismo!

– …

– Boa sorte, velho amigo.

– Pra nós. Vamos precisar…

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Prova de atitude…

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A questão acima é de uma das provas do sétimo ano do ensino fundamental de uma escola particular de Belo Horizonte. As perguntas baseavam-se nos desenhos dos quadrinhos, e as respostas deveriam estar inseridas em um pequeno texto. Esta foi a dissertação de um dos alunos:

“Eu acho que os quadrinhos estão defendendo o feminismo. Sinceramente, eu não sei. Por favor, não me entenda de forma errada, eu jamais trataria mal uma mulher apenas pelo fato de ela ser uma mulher. Mas eu também não acho que elas sejam iguais. Veja, este é um assunto muito arriscado, e estou me esforçando ao máximo para não dizer algo que possa parecer ofensivo porque, na verdade, eu não sei exatamente o que é ou não é ofensivo. Então eu direi apenas o que eu penso: ninguém é melhor do que ninguém, mas as pessoas são diferentes.”

Algumas observações:

1. A resposta precisa (e bem apontada pela professora), era de que os quadrinhos defendiam direitos iguais para homens e mulheres.

2. É notável como – mesmo em um garoto de 12 anos de idade – já está incutido o receio de ser mal interpretado. Reflexos de uma sociedade acostumada a deturpar o que se diz, e a condenar quaisquer opiniões que não se encaixem no politicamente correto dominante.

3. Também foram notáveis o cuidado do menino ao abordar o tema, bem como sua coragem ao dar sua opinião sincera.

4. Palmas para a professora que valorizou sua resposta com um encorajador “eu respeito sua honestidade”.

5. Os pais desse menino devem ter ficado felizes ao perceberem o bom caráter que está sendo formado. Ah, e como ficaram…

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Revelações…

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Nasci na época em que o pai só descobria o sexo de seu bebê quando a primeira enfermeira era convidada a deixar a sala de parto. Àquela altura, a emocionada e exaurida mãe tinha encontrado forças para – tão logo tivesse dado à luz – afirmar em alto e bom som: eu sabia! Não tenho lugar de fala para avaliar intuições maternas, mas sei que muitas lançaram mão de métodos de detecção cujos índices de acerto alcançavam impressionantes 50% (com margem de erro de 50 pontos para mais ou para menos). Minha mãe, por exemplo, sempre consultou um pêndulo feito com sua aliança e um fio de cabelo. Meninos provocariam oscilações laterais, enquanto meninas fariam o conjunto girar. Os bebês que decidissem não se manifestar provavelmente são os que hoje gostam de ser chamados de “todes”. Mesmo amparados pelo sexto sentido e pela ciência, meus pais decidiram manter o azul e o rosa distantes de meu enxoval.

Os tempos eram outros quando minha esposa engravidou. Soubemos o sexo de nosso primeiro filho com 15 semanas de gestação, o que nos permitiu planejar decorações e enxovais que teriam deixado Damares orgulhosa. O segundo – também homem – herdou quase tudo do mais velho e, pelo menos até hoje, nunca se queixou de ser estepe do primogênito. Ainda bem, já temos problemas reais o bastante.

Como o mundo continua evoluind… quero dizer, girando, os casais do século XXI resolveram criar um ritual público para que fossem informados sobre o sexo de seus bebês. Quando ouvi falar pela primeira vez dessa, digamos, modernidade, pensei que o primeiro convidado de um chá de revelação teria que ser o ultrassonografista. Recusava-me a imaginar a mãe em uma consulta de rotina com os olhos vendados e música nos ouvidos, enquanto médico e cúmplice sussurravam como dois amantes que planejam um crime passional. Mas a nova realidade se impôs, e os cerimoniais passaram a cobrar rios de dinheiro para que desaguassem em cascatas rosas ou azuis.

O novo calendário de eventos gestacionais tem desagradado a muita gente, não pela exposição de um momento que sempre foi de intimidade, mas sim pela ditadura da cor imposta ao indefeso bebê. “O coitadinho vai crescer traumatizado, carregando o fardo de se tornar aquilo que a sociedade determinou”, afirmam os sempre atentos fiscais do comportamento alheio. Como qualquer argumentação de que o “fardo” tinha sido imposto pela Natureza não costuma ser bem recebida, prevejo que os chás de revelação estejam com seus dias contados. Afinal, não fará sentido algum tanto trabalho se serão permitidos apenas balões, fogos, bolos e cascatas que contemplem toda a paleta Pantone. Pelo menos assim os pais poderão afirmar com certeza no final: “eu sabia”.

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As mãos e os agoras…

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Não sei quantas vezes repetimos o mesmo ritual: com o quarto na penumbra, ele se esforçava para capturar o misterioso feixe de luz que ziguezagueava sobre o piso de madeira. Num piscar de olhos, o ponto iluminado pulava de um extremo a outro, e um sorriso denunciava o prazer do desafio. Seu olhar matreiro fingia não notar a pequena lanterna que eu escondia entre os dedos. Buscava, assim, prolongar a magia daquela improvisada caça ao tesouro. Chegada a hora de dormir, apagava-se o foco sob suas mãozinhas unidas em forma de concha.

“Consegui, papai. Eu segurei a luz.”

Dois meses passam rápido. Mas não rápido a ponto de evitar que o convívio se torne rotina, que o quarto vazio há quase quatro anos volte a ter proprietário, não apenas hóspede. De repente, as saudades passam a ser descritas no tempo passado, e as conversas do presente reavivam as trivialidades do dia a dia. É fácil nos acostumar aos “bom dia, papai”, “que filme vamos ver hoje?”, “topa uma pizza?”, “obrigado pelo papo”. A brevidade dos raros encontros dos últimos tempos, entretanto, insiste em nos lembrar de que, às horas, não foi apresentado o descanso. O amanhã parece distante até que o sol desponte no horizonte. Um dia – ante os primeiros sinais da aurora – ele se aproxima. Seu olhar encontra o meu, enquanto suas mãos se unem em forma de concha.

“Queria conseguir segurar o tempo, papai, mas ele escapa pelos meus dedos.”

Caminho pelo saguão repleto de sombras indecifráveis. O painel do aeroporto me lembra que – assim como meu filho jamais foi capaz de segurar a luz – ainda não aprendemos a parar o tempo. No turbilhão de emoções, torço para que um dia esse segredo tão bem guardado possa vir a ser desvendado. Bobagem. Os momentos perderiam seu propósito se pudéssemos escolher ficar presos a apenas um deles, por mais especial que fosse. A vida é feita de agoras tão breves quanto um suspiro, e o que a torna mágica é justamente sua constante renovação. Os agoras de encontros só são especiais porque os agoras de despedidas lhe servem de contraponto.

“É hora de partir novamente, meu filho. Obrigado pelos novos e inesquecíveis agoras. Não ligue para minhas lágrimas. Elas mostram que o agora está sendo bem vivido. E, por favor, perdoe minhas mãos unidas em forma de concha. Um dia elas hão de deixar de tentar…”

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Tristes ficções contemporâneas…

20230105_165034Esta é uma história fictícia. É a história de duas mulheres que se conheceram e passaram a se admirar. Ambas enalteciam as qualidades uma da outra: a inteligência, o caráter, a cultura, o bom-humor, o interesse e a facilidade para o aprendizado de novas línguas, a paixão pelas viagens, pelos vinhos, pelos encontros. Apesar de pertencerem a gerações diferentes, uma amizade fraterna surgiu a ponto da mais velha passar a chamar de filha a mais nova. Não foram poucas as vezes em que uma chorou nos braços da outra. Os sorrisos, entretanto, sempre foram muito mais frequentes. A amizade se estendeu aos demais membros das famílias. Todos passaram a ansiar pelo próximo encontro, no qual – sabiam – as gargalhadas estariam garantidas. A mais velha admirava a sabedoria do sogro da mais nova, e sempre se emocionava com sua presença. O filho de uma foi pajem no casamento da filha da outra, viagens em conjunto foram feitas, serviços foram prestados mutuamente, e a admiração profissional somou-se à pessoal. Assim, laços fortes e aparentemente inabaláveis se formaram.

Passaram-se os anos, a polarização política do país se acirrou, e começaram a marchar juntas – de verde e amarelo – contra um governo corrupto e incompetente. Até o pensamento politico de ambas era coincidente. Mas vieram os anos Bolsonaro. A mais velha via o “mito” como o grande salvador do Brasil. A mais nova, ao contrário, decepcionava-se a cada incoerência, a cada atitude autoritária, a cada desestímulo à vacinação, a cada ameaça à democracia. Durante 4 anos, a mais nova recebeu mensagens frequentes da mais velha, todas enaltecendo os feitos do presidente. Com a proximidade das eleições, as mensagens ficaram mais veementes e ofensivas. Depois do compartilhamento de um texto que classificava como covardes, burros e otários aqueles que se recusavam a apoiar a reeleição de Bolsonaro, a mais nova pediu à mais velha que não mais lhe encaminhasse mensagens de cunho político. Disse que respeitava a posição da amiga, mas estava se sentindo incomodada com a virulência dos vídeos e textos compartilhados. Disse ainda que aquelas mensagens poderiam criar uma antipatia que a amizade de ambas não merecia. Disse, por fim, que continuaria admirando a mulher fantástica que a amiga era, mesmo com visões antagônicas naquele – e somente naquele – assunto. A amiga mais velha disse que não tinha conhecimento das opiniões da mais nova, e nunca mais encaminhou mensagem alguma.

Passada a eleição, a amiga mais nova enviou à mais velha uma carinhosa mensagem de ano novo. A resposta veio em forma de acusação de censura, de rompimento, de adeus. Sim, a amiga mais velha disse que a mais nova não havia respeitado sua liberdade de expressão, e que censura era uma falta de respeito que amizade alguma poderia tolerar. Estupefata, a amiga mais nova ponderou que não a tinha censurado de forma alguma, que ela havia apenas alertado para um comportamento que a incomodava, e que a intimidade que ambas desfrutavam dava a cada uma a liberdade para que fossem sempre honestas uma com a outra. A mais velha, entretanto, disse que voto de boas festas algum seria capaz de apagar um ato de intolerância, que atitudes desse tipo não têm perdão, e que ela não era ioiô para voltar atrás nas suas posições. E, assim, mais uma amizade chegou ao fim.

Como eu disse no começo deste texto, essa é uma história fictícia. Não sei dizer, entretanto, se a ficção está na distorção da realidade a que muitos brasileiros foram submetidos nos últimos anos, ou se está em um sentimento que – se tivesse sido mesmo verdadeiro – não seria páreo para as pequenas rusgas e opiniões divergentes. Espero, sinceramente, que a fábula esteja na primeira opção, porque eu me recuso a acreditar que alguém tão inteligente possa ter interpretado como censura um alerta em nome da amizade, que tanta história possa ter sido jogada no lixo, que tanto amor não tenha passado de ilusão. Que legado, Brasil. Que legado.

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Meu Pelé…

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Dormia tranquilamente em meu berço quando fui acordado aos berros por meu pai. Eufórico, ele queria comemorar com seu primeiro filho – então com menos de um mês de idade – a conquista da Taça Brasil de 1966. Com uma virada épica sobre o Santos, o Cruzeiro ganhava no Pacaembu seu primeiro título brasileiro. Naquela noite, coube à minha mãe a inglória tarefa de me fazer dormir novamente. Na semana anterior, meu pai estivera no Mineirão para assistir a uma das maiores atuações do esquadrão celeste: a goleada de 6×2 no primeiro jogo da final. Cresci ouvindo as histórias dos jogos que colocaram o Cruzeiro como um dos gigantes do futebol brasileiro. Tostão, Piazza, Raul e Dirceu tornaram-se palavras recorrentes no meu limitado vocabulário. Pelé também.

Desde muito cedo, o Mineirão passou a ser minha segunda casa. Não, meus pais não eram (tão) irresponsáveis a ponto de levar um bebê de colo a todas as partidas. Naquela época, a maioria das minhas visitas ao estádio foi feita em dias comuns. Minha mãe trabalhava na Diretoria de Esportes do Estado de Minas Gerais, cujos escritórios ficavam no subsolo, abaixo das arquibancadas. Lembro-me com nitidez dos corredores em curva que levavam às diversas salas. Lembro-me das pequenas janelas que davam para o fosso do gramado e, por isso, permitiam que apenas nesgas de claridade iluminassem os ambientes. Lembro-me dos colegas de trabalho de minha mãe, quase todos homens, e da forma como ela se impunha junto a eles. Era nítida a couraça adquirida a partir dos 13 anos de idade, quando teve que largar os estudos e os embrulhos de pão que lhe serviam de caderno, para ajudar a sustentar a própria casa. Entretanto, também era nítido o orgulho por ter conseguido superar tantos desafios. Por seus méritos, minha mãe tem até hoje seu nome gravado em uma placa no hall principal do Mineirão. Pelé também.

Estava prestes a completar 5 anos quando fui à minha segunda casa, desta vez para assistir a uma partida de futebol. Era uma tarde de domingo, e meu pai me guiava pelos iluminados acessos em curva do estádio. O silêncio do subsolo contrastava com o alarido vindo das arquibancadas. Não me assustei. Os corredores vazios, esses sim me amedrontavam. O uivo do vento seguido do estrondo de portas batendo me sobressaltavam bem mais do que os gritos da torcida em festa. Eu não entendia o que acontecia no gramado, mas achei fascinante aquela concha de concreto repleta de gente. No campo, metade vestia azul. A outra metade, branco. Na tentativa de me manter entretido, meu pai começou a narrar os lances como se estivesse em uma cabine de rádio. Reconheci os nomes já gravados no meu inconsciente. Todos vestiam azul. Lembro-me, entretanto, que meu pai adotou um tom solene para se referir a um jogador de branco. Ao ouvir seu nome, meus olhos brilharam. No final do jogo, ficamos para ver de perto os jogadores que desciam para os vestiários. Meu pai sorria. Pelé também.

Voltei ao Mineirão com meu pai muitas outras vezes depois daquela tarde de outubro. Lembro-me de vibrar em seus ombros no quinto gol do Cruzeiro sobre o Internacional, na mágica primeira partida da Libertadores de 1976. Lembro-me de ver – da mesma posição – a chegada dos jogadores campeões daquele ano. Após o nascimento de meu terceiro irmão, minha mãe deixou seu trabalho para dedicar-se aos quatro filhos. E foi justamente o caçula – aquele que jamais conheceu os corredores escuros do subsolo do estádio – quem substituiu meu pai ao meu lado nas arquibancadas. Não saberia afirmar com certeza o que o afastou das partidas. Ele dizia que apenas preferia o conforto do sofá e o silêncio da televisão (sim, meu pai abaixava o volume para não escutar os comentaristas. “Se é pra ouvir bobagens, prefiro ficar com as minhas”). Mas, no fundo, acho que quem presenciou tanto talento, tanta entrega, tanto amor às camisas, e tanta paixão pelo esporte, dificilmente iria se contentar com o grande negócio que o futebol se tornou com o passar dos anos. De qualquer forma, gosto de pensar que meu pai está agora em um estádio de futebol, vibrando e cantando com minha mãe ao seu lado. Eles não iriam deixar de assistir a tanta gente boa jogando por lá. Ali só tem craque. E tem Pelé também.

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Saída à francesa…

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Ao longo da história, muitos líderes ficaram marcados pelos epítetos que lhes foram atribuídos. Margareth Thatcher será sempre lembrada como a “dama de ferro”; Gandhi, como a “grande alma”; Churchill, como o “velho leão”. Aqui pelas nossas bandas, o nome Rui Barbosa estará eternamente associado à “águia de Haia”, Juscelino continuará sendo chamado de “presidente bossa nova”, e Dilma jamais se livrará do apelido de… bem, desse todo mundo se lembra.

Hoje, mais um governante deixou o poder. Mais um governante que ficará marcado pela alcunha que ele mesmo fomentou: “mito”. O mito que Bolsonaro almejava representar era o do super-herói, do sobre-humano, daquele cujas ações estão acima de qualquer limitação. Longe disso. No final, o mito que lhe coube é o da farsa, da fábula, do engodo. Era farsa sua postura liberal e antissistema. Suas competência e honestidade não passaram de fábulas. E sua autoproclamada coragem acabou se mostrando o maior dos engodos. Bolsonaro foi responsável por um governo ideológico, corporativista, demagógico, autoritário e populista. Mas nada disso supera sua atuação criminosa no enfrentamento da pandemia. Não fosse seu descaso com a saúde da população, Bolsonaro estaria agora se preparando para o início de seu segundo mandato. Foi o primeiro presidente brasileiro a não conseguir se reeleger. Foi o primeiro presidente a perder para si mesmo.

Jair Bolsonaro deixou o país hoje, dois dias antes da posse do novo governo eleito. Será, desde a redemocratização, o primeiro presidente a não passar a faixa a seu sucessor. Seus dois grandes legados, entretanto, ficaram no Brasil. O primeiro é uma massa de seguidores fanáticos capazes de protagonizar as cenas mais patéticas e constrangedoras em frente aos quartéis de todo o país. Trata-se de um momento histórico. Não é todo dia que podemos ver parte da elite brasileira clamando a plenos pulmões por uma ditadura militar. Muitos ainda estão lá, certos de que as Forças Armadas irão impedir a posse de Lula. Enquanto os tolos, loucos e alucinados marcham, tomam chuva, e se animam a cada troca da guarda, o “mito” – depois de dois meses de um silêncio irresponsável – pegou seu banquinho e saiu de mansinho. Saiu à francesa, sem sequer se despedir de sua claque. Fugiu como o covarde que sempre foi.

Espero, do fundo do coração, que este tenha sido o último texto que escrevo sobre essa figura lamentável da história brasileira. Daqui para frente, pretendo me dedicar a crônicas motivadas pelo governo ideológico, corporativista, demagógico, corrupto e populista que está para assumir. Tenho certeza de que – infelizmente – inspiração não vai faltar.

Ah, querem saber qual é o segundo legado do governo Bolsonaro? Fiquem de olho nas transmissões da tarde de domingo. O legado estará subindo a rampa do Palácio do Planalto.

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Negócio garantido…

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– Boa noite. Bem-vindos ao “Gente de Sucesso”, o programa que valoriza o empreendedor brasileiro. Nosso convidado de hoje é o Geraldinho Bandeira.

– Ô moço, é Geraldinho das bandeiras.

– Bandeira não é seu sobrenome?

– Não, o pessoal confunde por causa do meu trabalho.

– Você trabalha com bandeiras?

– Fabrico e vendo, moço.

– Você está entre os maiores empreendedores do ano fabricando e vendendo bandeiras?

– Não só do ano. Tô entre os maiores desde 2018.

– Que coisa fantástica, senhoras e senhores. Geraldinho, você vai ter que contar o segredo desse sucesso pra gente.

– Conto sim, moço.

– Diz como tudo começou.

– Bom, eu tava procurando emprego em Curitiba quando passei por um acampamento enorme perto da Polícia Federal.

– Isso foi em 2018?

– Foi. Comecei a conversar com aquele povo e vi que eles não eram muito certos das ideias, sabe?

– Como assim?

– Ah, todo dia eles davam bom dia e boa noite pro prédio, e viviam reclamando de golpe, de falta de liberdade, de ditadura do judiciário, essas coisas.

– E como as bandeiras entraram na história?

– Ué, fui anotando as coisas que eles falavam e comecei a fazer bandeiras com mensagens do tipo “Lula livre”, “Justiça parcial não é justiça”, “Fascistas não passarão”, e mais um montão de frases do tipo.

– E foi um sucesso de vendas?

– Moço, foi uma loucura. Acabei com o estoque de pano vermelho da cidade. Um ano depois tava fazendo mais de mil bandeiras por dia.

– Mil bandeiras vermelhas por dia?

– Não. A procura por bandeira vermelha caiu muito. Do final de 2018 pra cá só trabalhei com bandeira verde e amarela.

– E as vendas continuaram altas?

– Oxi, só aumentaram.

– Mesmo na pandemia?

– A pandemia foi um dos períodos em que mais vendi, moço.

– Sério? Como você conseguiu isso?

– A gente tem que perceber quais são as demandas do momento. Minhas bandeiras tinham xingamento a prefeitos e governadores, protestos contra máscaras, e críticas à “vachina”. Nosso maior sucesso da época foi uma bandeira do Brasil com a foto de um comprimido de cloroquina no centro.

– Que história inspiradora, Geraldinho.

– E não parou por aí. Ano passado batemos recordes com nossa bandeira “Eu autorizo”, e acabamos de atingir nosso pico histórico de vendas.

– Alguma frase especial desta vez?

– Todas pedindo anulação das eleições, fechamento do STF, e intervenção militar.

– Parabéns, Geraldinho. Sua trajetória é um exemplo pra todos os nossos assinantes.

– Brigado.

– Antes de encerrar, me responda: o que você espera de 2023 para que seu negócio continue prosperando?

– Ah, moço, enquanto existir gente tapada no Brasil eu tô feliz.

– Geraldinho, acho que o sucesso da sua empresa tá garantido.

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