Tristes ficções contemporâneas…

20230105_165034Esta é uma história fictícia. É a história de duas mulheres que se conheceram e passaram a se admirar. Ambas enalteciam as qualidades uma da outra: a inteligência, o caráter, a cultura, o bom-humor, o interesse e a facilidade para o aprendizado de novas línguas, a paixão pelas viagens, pelos vinhos, pelos encontros. Apesar de pertencerem a gerações diferentes, uma amizade fraterna surgiu a ponto da mais velha passar a chamar de filha a mais nova. Não foram poucas as vezes em que uma chorou nos braços da outra. Os sorrisos, entretanto, sempre foram muito mais frequentes. A amizade se estendeu aos demais membros das famílias. Todos passaram a ansiar pelo próximo encontro, no qual – sabiam – as gargalhadas estariam garantidas. A mais velha admirava a sabedoria do sogro da mais nova, e sempre se emocionava com sua presença. O filho de uma foi pajem no casamento da filha da outra, viagens em conjunto foram feitas, serviços foram prestados mutuamente, e a admiração profissional somou-se à pessoal. Assim, laços fortes e aparentemente inabaláveis se formaram.

Passaram-se os anos, a polarização política do país se acirrou, e começaram a marchar juntas – de verde e amarelo – contra um governo corrupto e incompetente. Até o pensamento politico de ambas era coincidente. Mas vieram os anos Bolsonaro. A mais velha via o “mito” como o grande salvador do Brasil. A mais nova, ao contrário, decepcionava-se a cada incoerência, a cada atitude autoritária, a cada desestímulo à vacinação, a cada ameaça à democracia. Durante 4 anos, a mais nova recebeu mensagens frequentes da mais velha, todas enaltecendo os feitos do presidente. Com a proximidade das eleições, as mensagens ficaram mais veementes e ofensivas. Depois do compartilhamento de um texto que classificava como covardes, burros e otários aqueles que se recusavam a apoiar a reeleição de Bolsonaro, a mais nova pediu à mais velha que não mais lhe encaminhasse mensagens de cunho político. Disse que respeitava a posição da amiga, mas estava se sentindo incomodada com a virulência dos vídeos e textos compartilhados. Disse ainda que aquelas mensagens poderiam criar uma antipatia que a amizade de ambas não merecia. Disse, por fim, que continuaria admirando a mulher fantástica que a amiga era, mesmo com visões antagônicas naquele – e somente naquele – assunto. A amiga mais velha disse que não tinha conhecimento das opiniões da mais nova, e nunca mais encaminhou mensagem alguma.

Passada a eleição, a amiga mais nova enviou à mais velha uma carinhosa mensagem de ano novo. A resposta veio em forma de acusação de censura, de rompimento, de adeus. Sim, a amiga mais velha disse que a mais nova não havia respeitado sua liberdade de expressão, e que censura era uma falta de respeito que amizade alguma poderia tolerar. Estupefata, a amiga mais nova ponderou que não a tinha censurado de forma alguma, que ela havia apenas alertado para um comportamento que a incomodava, e que a intimidade que ambas desfrutavam dava a cada uma a liberdade para que fossem sempre honestas uma com a outra. A mais velha, entretanto, disse que voto de boas festas algum seria capaz de apagar um ato de intolerância, que atitudes desse tipo não têm perdão, e que ela não era ioiô para voltar atrás nas suas posições. E, assim, mais uma amizade chegou ao fim.

Como eu disse no começo deste texto, essa é uma história fictícia. Não sei dizer, entretanto, se a ficção está na distorção da realidade a que muitos brasileiros foram submetidos nos últimos anos, ou se está em um sentimento que – se tivesse sido mesmo verdadeiro – não seria páreo para as pequenas rusgas e opiniões divergentes. Espero, sinceramente, que a fábula esteja na primeira opção, porque eu me recuso a acreditar que alguém tão inteligente possa ter interpretado como censura um alerta em nome da amizade, que tanta história possa ter sido jogada no lixo, que tanto amor não tenha passado de ilusão. Que legado, Brasil. Que legado.

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