Sentidos…

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A casa ainda estava na penumbra quando fechei a porta. Lá fora, o carmim tênue que marcava o horizonte não era capaz de iluminar a trava do portão. Recorri ao tato. O mesmo tato que, durante anos a fio, usei para explorar sua pele, suas curvas, seus picos e vales. Assim, aprendi a diferenciar os arrepios do começo dos calafrios do fim, os espasmos de prazer dos de repulsa, os gemidos espontâneos dos suspiros resignados. Meus dedos foram os primeiros a me dizer. Custei a lhes dar ouvidos.

A relva banhada de orvalho imitava a fragrância da chuva que, há tempos, não caía. O turno do jasmim do campo chegara ao fim. O aroma da manhã me envolvia, mas era o perfume do seu suor que dominava meu olfato. Levei minhas mãos ao nariz, na busca de reconhecer meu próprio cheiro. Eu nada exalava. Apenas minha alma fedia a desilusão.

Os gorjeios matutinos me incomodavam. Estridentes, machucavam meus tímpanos habituados ao seu silêncio. Muito foi falado. Fui incapaz de perceber seus gritos afônicos, suas súplicas taciturnas, suas ofensas emudecidas. As palavras doces que pensei ter saído de sua boca, fui eu quem as disse. Sua voz jamais pronunciou as juras de amor que jurei ter ouvido. Era falso o falsete de sua respiração arfante. O ruído de seus traços me cegara.

O sabor do café amargo disfarçava o fel do rancor. A goiabeira do pomar cedeu o fruto que prometia adoçar meu paladar. Infrutífera tentativa. Minha língua, dormente, só era capaz de reconher o gosto da sua. Justo ela, que um dia desvendara todos os segredos de seu corpo, entre uma e outra pausa para recuperar fôlego e saliva. Minha boca se fechara. Passei a engolir em seco o desprezo.

Os primeiros raios de sol despontaram. Levei a mão ao rosto para me proteger da claridade ofuscante. A luz forte não fazia frente ao brilho do seu sorriso, tão sedutor quanto indecifrável. Voltei meu olhar para as nuvens tingidas de amanhecer. Buscava, em vão, algo a me mostrar que a esperança haveria de renascer. Um pássaro qualquer alçou voo bem ao meu lado. Dei de ombros, segui em frente. Um dia, quem sabe, esse medo de voltar a enxergar também me abandone.

Olhei para trás, uma última vez. Da janela, seu vulto me dizia que grande parte da minha vida jamais fez sentido.

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