Biometria…

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Conheci as mãos de minha avó já idosas. Dedos curvados, pele fina e enrugada, unhas por fazer. Nunca foram fortes o bastante para me sustentar. Ao envolverem as minhas, entretanto, suas mãos aqueciam feito cobertor felpudo, mingau de maisena, cantiga de ninar. Não as reconheci ao tocá-las pela última vez. Seu calor se dissipara.

As mãos de minha mãe sempre foram firmes, impetuosas, determinadas. Às vezes, assustavam. Delas vinham as palmadas que findavam travessuras, os movimentos a guiar as primeiras caligrafias, a compressa que me cobria a testa e amainava o ardor da febre. Despedi-me delas muitas vezes, a primeira ainda criança, vendo-as acenar pelo vidro de um portão de embarque. Na derradeira, só as minhas gesticularam um adeus.

“Amigos até nossas mãos empatarem” – repetia meu pai, sempre que chegava em casa. O gesto de sua mão sobreposta à minha estendeu-se pela vida afora. Tornou-se nossa marca registrada, nossa senha secreta de cumplicidade. Suas mãos me instigaram a sonhar, a ousar, a reconhecer texturas e essências. Entrelaçaram-se às minhas no tilintar das taças, nos primeiros choros de criança, nos suspiros quase silentes que musicavam nossos olhares. Guardo – como acalanto – o calor da última vez que se abraçaram.

Descobri que meu coração pulsava no polegar quando, pequenas, suas mãos o envolveram. Redefinia-se meu conceito de amor. Mãos dadas desvendaram os primeiros passos, sossegaram aflições, acalentaram noites em claro. Hoje, sou eu a buscá-las. Cedo, aprenderam a se despedir, também diante de um portão de embarque. Mesmo distantes, nelas repousa meu esteio.

Contemplo minhas próprias mãos. A pele fina – herança de avó – começa a revelar pequenas manchas – heranças de pai. Trazem ainda – herança de mãe – aversão ao desamparo dos ombros. Espero um dia vê-las envelhecidas, engelhadas, cercadas de outras tantas. Que possam contar histórias, ao serem tocadas. Que possam evocar memórias, entre sorrisos e lágrimas. Que possam aquecer novas mãos, mesmo quando uma única centelha de calor lhes restar.

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Legado pra esquecer…

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– Aonde a senhora pensa que vai?

– Ué, ver o ex-presidente, é claro.

– Nome?

– Meu filho, você me conhece. Venho aqui toda semana.

– Seu nome.

– Meu nome? Você deve estar de brincadeira. Fui presidenta disso aqui por quase 6 anos.

– Nunca vi a senhora na vida.

– Ah, já entendi, é pegadinha, né? Pronto, já ri, agora me deixe entrar.

– Só pessoas autorizadas podem passar. O ex-e-próximo-presidente não recebe qualquer uma.

– Olha, você me respeite. Eu não sou qualquer uma. Já fui uma das mulheres mais poderosas do mundo.

– Todo mundo agora vem com esse papinho. Há pouco enxotei daqui um que jurava ter sido o melhor economista de todos os tempos.

– O Guido?

– Não, o Dr. Guido tá lá dentro trabalhando com o chefe. É um gênio das finanças. Tô falando de um que disse ter comprado uma refinaria a preço de banana.

– Nem sei o que é refinaria.

– Claro que não sabe. E já pode ir embora.

– Eu não saio daqui enquanto não for recebida pelo presidente.

– Então serei obrigado a chamar a segurança.

– Não, você vai chamar é a Gleisi, a Maria do Rosário, a Benedita. Elas vão me deixar entrar. Fizemos um pacto de sororidade.

– Essas aí só fazem o que o presidente manda. Sororidade é só da imprensa pra fora.

– Você tá querendo me dizer que foi o próprio presidente quem proibiu a minha entrada?

– A senhora chegou a essa conclusão sozinha? Andou treinando, né?

– Vou ligar pra ele agora mesmo.

– Não adianta, ele não vai atender. Está aguardando o Dr. Geraldo pra uma reunião muito importante.

– Quer dizer que aquele picolé de ch…

– Senhora, aqui não são tolerados insultos aos nossos membros.

– Membros? O cara sempre foi nosso inimigo e tem livre acesso. Eu, que lutei pelo partido, que sofri um golpe, sou barrada.

– Pois é, a vida é injusta mesmo. Agora ponha-se daqui pra fora.

– Isso não vai ficar assim. Vou defender meu legado até o fim.

– Olha, se a senhora ficar quietinha no seu canto, garanto que o presidente saberá reconhecer o seu silêncio mais tarde.

– Ele disse isso?

– Não, é que eu trabalho pra ele desde os tempos do seu Celso. Sei como as coisas funcionam.

– Ah… quando o Geraldo chegar, diga que mandei um beijo, tá bom?

– Pode deixar, senhora. Pode deixar.

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Sem açúcar e sem afeto…

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Chico Buarque afirmou que não vai mais cantar “Com açúcar e com afeto”, música composta a pedido de Nara Leão em 1967. O motivo? A letra fala de uma mulher submissa, permissiva, capaz de perdoar com facilidade as traições e o descaso do companheiro. Assim como a Amélia de Mário Lago (aquela que era mulher de verdade), a personagem imaginada por Chico carece de amor próprio. Sim – pasmem – na década de 60 havia mulheres que viviam relacionamentos abusivos. Ainda bem que elas não existem mais, não é mesmo?

O fato é que a letra – genial e repleta de ironias – levanta uma questão que, infelizmente, nos é corriqueira desde aqueles tempos. Mas não há apologia alguma à submissão feminina. Ao contrário, há críticas. Mesmo assim, Chico Buarque resolveu ceder à pressão do politicamente correto. “As feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas” – afirmou. Dessa forma, Chico mostrou – mais uma vez – que a voz corajosa que ludibriou os censores na ditadura militar não existe mais. Afinal, a mesma voz forte e altiva capaz de desafiar a opressão, o autoritarismo e a censura praticados pela direita é mais submissa que a personagem da canção quando se depara com a opressão, o autoritarismo e a censura oriundos da esquerda. É uma voz seletiva, e vozes seletivas perdem muito – muito mesmo – de sua força, de seu encanto e de sua credibilidade.

Mas eu, que ainda sou fã do artista (não do ser humano), quero me antecipar aos próximos cancelamentos de suas músicas. Se a coitada de “Com açúcar e com afeto” não pode ter vez, o que dizer das “Mulheres de Atenas”? Portanto, aqui vai a minha sugestão para que Chico não deixe de cantar essa obra-prima, agora com a devida correção que os novos tempos merecem:

“Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Livres de todo homem, machismo tóxico de Atenas
Cortejadas, não se conformam
Agridem, xingam, imploram
Por duras penas
Desprezadas, não se assustam
Gargalham, bebem, degustam
Farras terrenas, obscenas”

“Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Alheias a quaisquer homens, burros de carga de Atenas
Quando eles embarcam, aflitos
Elas celebram aos gritos
Sorriem apenas
E quando eles voltam sedentos
Em busca de seus alentos
Recusas plenas, serenas”

“Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Imunes a todo homem, sombras do orgulho de Atenas
São donas de seus narizes
E pintam de quaisquer matizes
Suas melenas
E quem pensa em persuadi-las
A depilar suas axilas
Terá problemas, centenas.”

Caso o autor aprove a minha sugestão – certamente bem mais adequada ao comportamento das pessoas que menstruam de hoje em dia -, segue também uma pequena amostra do que pode ser feito no caso da outra coitadinha que – em pleno século XXI – ainda rasteja por um homem (argh). Tenho certeza de que “Atrás da porta” ficaria também muito mais digna com as seguintes alterações:

“Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei, e duvidei
Me levantei, me afastei
Comemorei, e me encontrei
E arrumei os meus cabelos
Pra te mostrar que já foste tarde
Até provar que já foste tarde”

Sim, sei que é muita pretensão da minha parte dar sugestões a um dos maiores gênios da MPB. Por isso vou ficando por aqui, antes que comece a pensar sobre qual tipo de flor devemos jogar na empoderada da Geni.

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Odisseia…

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A primeira semana de viagem transcorrera sem atropelos. O embarque em BH e a chegada aos Estados Unidos – hoje em dia bem mais demorados graças aos inúmeros formulários, comprovantes de vacinação e testes de Covid a serem analisados – foram digeridos com maior facilidade que a “refeição” (também conhecida como pãozinho dormido recheado com meia fatia de queijo) servida pela companhia aérea. Aluguel do carro ágil como nunca, e hotel e ingressos fiéis a seus respectivos vouchers prometiam duas semanas livres de perrengues. Como se isso fosse possível…

“Seu voo sofreu alterações. Clique aqui para aprovar o novo itinerário”, dizia o e-mail recebido naquela manhã. Cliquei, temendo me deparar com novas escalas e consequentes acréscimos de pães da véspera. Fui direcionado para outra página: “Não há como executar esta ação por este canal. Entre em contato com nossos operadores”. Os prognósticos não pareciam bons. Liguei. “Todos os nossos operadores estão ocupados. Ligue mais tarde” foi a mensagem ouvida logo após o primeiro toque. Não deveria haver uma fila de espera? Liguei pela segunda vez, alguns minutos depois. A mesma gravação foi ouvida, assim como na terceira, quarta e décima oitava tentativas (essa última já no final da tarde).

Só me restava ir pessoalmente ao escritório da companhia aérea. “Googuei” em busca do endereço e descobri que não havia escritório no centro (por que haveria em uma cidadezinha minúscula e pouco procurada como Orlando?). Acordei na manhã seguinte e fui direto ao aeroporto. Os atendimentos – quaisquer atendimentos – eram feitos nos guichês do check-in. Perguntei a uma das atendentes se havia uma fila separada para quem não estava embarcando naquele momento. “Claro que não”, ela me respondeu, quase tão educadamente quanto Bolsonaro trata a imprensa. Entrei na fila para descobrir que minha volta havia sido antecipada em um dia. “Mas eu já paguei pelo hotel, pelo carro, e não posso perder um dia sequer da companhia do meu filho que mora aqui”, implorei. Sensibilizada, a atendente revirou os olhos e me disse que precisava dar atenção aos demais passageiros da fila. Resignei-me.

Dois dias antes do embarque, um novo e-mail chegou: “Estimado passageiro” – essa delicadeza inicial não podia ser prenúncio de boa coisa – “infelizmente seu voo teve que ser cancelado devido a casos de Covid em nossa tripulação. Para obter mais detalhes, clique aqui”. Cliquei. “Seus dados não foram encontrados. Verifique o número de sua reserva novamente”. Não pensei duas vezes. Entrei no carro e peguei novamente a estrada para o aeroporto, onde encontrei todos os guichês vazios (eram quase 5 da tarde, eles tinham que descansar). Liguei para meu irmão e lhe pedi que tentasse resolver tudo pelo telefone da companhia no Brasil. Só assim consegui saber que minha volta havia sido adiada em 3 dias. Adivinhe quem iria arcar com as novas diárias de hotel?

Chegou o dia do embarque. Eu e a velha conhecida fila nos reencontrávamos.

– Seus testes de Covid não são válidos. Foram feitos há mais de 24 horas da hora do embarque – informou a atendente, assim que pegou nossos documentos.
– Como assim? Fizemos o teste na véspera, como solicitado no site de vocês. Além do mais, a diferença é de menos de uma hora.
– Já falei com meu supervisor. Não podemos fazer nada.
– E o que a gente faz agora?
– Vocês podem fazer o teste aqui no aeroporto mesmo. Custa 65 dólares por pessoa.

Lá fomos nós, correndo feito loucos, para mais uma fila. Cadastros, pagamentos e testes feitos, recebo a ligação do meu filho que havia ficado cuidando das malas junto ao check-in: “pai, eles agora resolveram aceitar os seus testes”. Sabe aquele momento em que você se dá conta de que jogou mais de mil reais na fogueira? Pois é.

Voltamos aos guichês que, àquela altura, me lembravam alvos de um estande de tiros.

– Alguma bagagem extra? – perguntou a prima de Lúcifer.
– Só uma – respondi, entre xingamentos silenciosos.
– São 45 dólares.
– Você vai ter mesmo coragem de me cobrar, depois de ter me feito gastar 195 dólares à toa?
– São 45 dólares, senhor.
– … (pensamentos impublicáveis).

Paguei.

– Onde está o certificado de vacinação da criança? – perguntou-me uma outra atendente, parecidíssima com a menina de “O Exorcista”.
– Ele tem 12 anos. Ainda não tomou a segunda dose.
– Sem certificado ele não pode embarcar.
– Ah, ele vai embarcar sim. Pode ter certeza de que vai.

A possuída me olhou assustada, percebendo o ódio evidente no meu tom de voz. “De 12 anos pra baixo não precisa”, disse uma de suas colegas. “Então tá”, respondeu a emissária do apocalipse. Ninguém checou nada, ninguém se certificou de nada e, no fundo, ninguém sabia de nada.

Embarcamos.

O pão da volta estava particularmente murcho.

Ah, o nome da companhia aérea? Copa Airlines. Viaje por sua conta e risco.

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Férias…

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Trinta dias de conversas, afagos e mãos entrelaçadas chegaram ao fim. Trinta dias de sorrisos desarmados, de toques, de reencontros. Trinta dias repletos de oportunidades para que dois irmãos voltassem a se reconhecer grandes amigos. Trinta dias para que uma mãe voltasse a ser a voz sensata, a palavra amiga, a força capaz de aliviar os corações dos filhos. Trinta dias em que uma família pôde reviver rotinas ausentes há anos: papos triviais em torno da mesa, baldes de pipoca em filmes vistos em casa ou em salas de cinema, jogos de videogame, encontros de amigos, comemorações de Natal, brindes, confidências e recordações. Trinta dias em que pudemos saborear, juntos, novas emoções e descobertas. Lugares surpreendentes foram visitados, lágrimas de alegria foram compartilhadas, sonhos, promessas e ideais – ainda que individuais – passaram a nos ser comuns.

Para mim, os últimos trinta dias foram particularmente inesquecíveis. Pude voltar a ser o pai que busca e leva o filho a seus compromissos, que o aconselha, que percebe as aflições de seu coração apenas pelo semblante. Fui o pai que programa passeios e se satisfaz com os olhares de aprovação que recebe em troca. Fui, principalmente, o pai que se emociona diante dos grandes seres humanos que meus filhos prometem se tornar. Fui o pai que se aproveita da sabedoria de cada um deles, e que – através desta – dispõe-se a rever conceitos e opiniões. Fui o pai que se permite ser guiado, acalentado, protegido. Fui, pela primeira vez, um pouco filho dos meus próprios filhos.

Hoje, diante de mais um portão de embarque, beijos e abraços acompanharam o pranto pelo final desses trinta dias. São lágrimas conhecidas, gotas de ausência que insistem em irrigar os mesmos rostos a cada novo adeus. Todos sabemos que a dor é efêmera, ao contrário da saudade que se avoluma com o tempo. Todos esperamos, portanto, que as próximas despedidas machuquem menos. Mas a próxima insiste em ser a primeira. Pouco importa. Despedidas são tão especiais quanto cada um dos momentos eternos que vivenciamos juntos. Elas nos recordam de nossa própria finitude. Elas nos incentivam a viver intensamente cada instante e, assim, quem sabe um dia, poder afirmar que intensidade e felicidade estão muito mais próximas do que jamais poderíamos ter imaginado.

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Incoerências…

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– Eu te disse, não foi?

– O quê?

– Que era tudo uma farsa.

– Tudo o quê?

– Tudo, ué. Covid, lockdown, vacinas, tudo mentira. Apenas formas de dominação do povo com base no medo.

– Disse, mas qual foi a “prova cabal” de agora?

– Como assim? Todo mundo tá sendo infectado pela nova cepa. Mesmo os trouxas que tomaram vacina.

– Os trouxas que tomaram vacina estão tendo sintomas leves ou nem isso. A imensa maioria das internações e mortes tem acontecido entre não-vacinados.

– Você ainda acredita nisso?

– São dados. Não há o que questionar.

– Você é bobo mesmo. Disseram que lockdown funcionava, que as máscaras protegiam, que vacina era a salvação, tudo mentira. Bolsonaro estava certo o tempo todo.

– Mais de 620 mil pessoas morreram só no Brasil, e você continua achando que tudo é parte de um plano de dominação em escala mundial?

– É evidente. Não fico lendo a foice de São Paulo. Eu tenho um mínimo de coerência.

– Ah, tem?

– Claro.

– Coerência pra não criticar mais o Centrão?

– Olha, ele teve que fazer isso pra poder governar.

– Coerência pra não condenar mais as pedaladas fiscais?

– É diferente desta v…

– Coerência pra passar a aplaudir compra de votos com um bolsa-família turbinado?

– Agora a miséria aument…

– Coerência pra deixar de gritar que filho bandido de presidente tinha que estar na cadeia?

– O cara do PT roubou muito m…

– Coerência pra não reclamar mais da irresponsabilidade fiscal, do corporativismo, da ausência de reformas?

– O congresso é que não deixa ele trab…

– Coerência pra criticar as ditaduras de esquerda enquanto vai pra rua pedir intervenção militar?

– Só assim pra acabar com o comunism…

– Coerência pra dizer que vacina é experimental, mas sair fazendo propaganda de um remédio rejeitado no mundo inteiro?

– A prova de que funciona é que o mito tomou e se cur…

– Coerência pra posar de cristão temente a Deus enquanto apoia tortura em quem pensa diferente?

– Bandido bom é bandido m…

– Coerência pra chamar petista de fanático mas fazer vigília em hospital quando seu messias entala com camarão?

– Foi Deus quem o salvou mais uma v…

– Coerência pra apoiar o presidente tanto em suas ameaças às instituições quanto em seus recuos com o rabinho entre as pernas?

– É tudo estratég…

– Pois é, enquanto seu conceito de coerência for tão pobre quanto suas noções de democracia e liberdade, enquanto você continuar aplaudindo um governante capaz de ameaçar os membros da agência sanitária de seu próprio país, e ainda chamá-los de “tarados por vacina”, enquanto você insistir em julgar os atos unicamente em função de seus autores, o seu “eu te disse” é tão insignificante quanto o cérebro do seu mito.

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Desembarque…

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Portas automáticas comandam o desfile de semblantes e expectativas. Corpos e feições tornam-se irrelevantes, à medida em que se aproximam. A cada abertura, meu olhar se fixa no vazio mais distante, em uma esquina que me lembra o horizonte prestes a permitir a aurora. O sol reluta em nascer.

“Tem quanto tempo que ele não passa por aqui? Uma? Duas horas? Vou chamá-lo. Está quase na hora do parque fechar.”

O casal de idosos retém o fluxo de passos apressados. Ansiosa pela linha de chegada, uma senhora vestida de impaciência os ultrapassa. A jovem de mochila nas costas decide acompanhá-los. A empatia agradece. Os sorrisos são nítidos, apesar das máscaras. Quero sorrir também.

“Não o achei em lugar algum. A piscina de ondas está vazia, e os toboáguas estão fechados. Não, ainda não procurei nos banheiros. Os salva-vidas disseram alguma coisa? Calma, eu prometo que vou encontrá-lo.”

A ansiedade aumenta. Foram-se os primeiros 30 minutos desde o pouso do avião. Há outro a caminho, vindo do mesmo aeroporto. Talvez ele ainda esteja no ar. O ano inteiro de espera aumenta a aflição das últimas horas. Malditos cancelamentos. Vazios, os corredores aguardam os olhares inquietos que – em breve – farão companhia aos meus.

“Nada? Ele não voltou pro hotel. Ninguém o viu? Não é possível que um parque deste tamanho não tenha câmeras espalhadas. Sim, eu sei que estão procurando, mas eu preciso abraçá-lo. Respira, vai dar tudo certo.”

O som ritmado das rodinhas sobre as juntas do piso volta a dominar o ambiente. O abre-e-fecha das portas também recomeça, assim como o bailar dos meus olhos, em uma frenética troca de alvos. Outros 20 minutos do segundo pouso se foram, e nada do sol despontar. Ao meu lado, outros olhos padecem de angústia semelhante, inconformados com o breu.

“O parque fechou há quase uma hora. Não é possível que ninguém o tenha visto. Meu Deus, não permita que nada de mal tenha acontecido a ele. Vou voltar naquele tobogã mais distante. Ele tem que estar em algum lugar.”

O terceiro voo aterrissa. Há de ser o certo desta vez. As portas automáticas seguem trabalhando, ainda sem os indícios da luz. O reencontro de um neto com seus avós me toca. Quero me emocionar em outro abraço. De repente, a porta se abre e sou ofuscado por um clarão. Lá vem ele, sorridente, mais lindo do que nunca. O short de banho, ainda úmido, deixa o piso respingado. Fecho os olhos e, finalmente, um homem de terno me envolve em seus braços.

“Papai, eu fui o último a descer desta vez. Não tinha mais ninguém. Você precisava ver como foi legal. Que foi, papai? Por que você tá chorando?”

– É de alegria, meu filho. É só de alegria.

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Um Natal clichê…

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Eu quero um Natal clichê. Um daqueles natais melosos, encantados, cheios de paz e reflexões. Um Natal de propaganda de telefonia celular, em que as chamadas virtuais transmutam-se em flashes de encontros verdadeiros. Um Natal dos filmes da sessão da tarde, em que o bom velhinho realmente existe, e os desejos sempre se realizam. Um Natal iluminado pelas luzes das árvores e, principalmente, pelos sorrisos que resplandecem em torno delas.

Eu quero um Natal clichê. Um Natal em que as pessoas se unem e, como numa epifania, descobrem como é amplo e fundamental o papel da família. Um Natal em que cada segundo conta mais do que todas as horas da rotina diária, em que o tilintar das taças reverberam como sinos a anunciar o nascimento de um menino que, para tantos, é sinônimo de amor.

Eu quero um Natal clichê. Quero me emocionar ao ver dois irmãos abraçados, depois de um ano inteiro de saudades. Quero poder chorar diante da alegria de uma mãe que já se conformara com a primeira ausência de um filho na mais emblemática das noites. Quero trocar as lágrimas provocadas pela distância por um pranto carregado de toques, cheiros e texturas, guiado pela plenitude de um abraço.

Eu quero um Natal clichê a me mostrar que nada poderia ser mais clichê do que beijos tocando a pele, mãos finalmente se entrelaçando, olhares que se bastam.

Eu quero um Natal clichê porque não há nada mais clichê do que ver um pai contemplando seu filho sem conseguir disfarçar orgulho e gratidão. Não há nada mais clichê do que o reencontro de um jovem com o ninho do qual se despedira há mais de 2 anos. Não há nada mais clichê do que a imagem de uma família reunida, findando uma longa espera.

Eu quero um Natal clichê porque, afinal de contas, nada é mais clichê para mim do que uma boa e inesquecível surpresa.

Feliz Natal a todos! E que o mais clichê dos votos se multiplique.

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Chuchu na janta…

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– Guido, nosso cardápio vai mudar de novo.

– Sabia. Sempre que o chefe começa a viajar isso acontece. O que vai ser desta vez?

– Vamos acrescentar chuchu em tudo quanto é receita.

– Chuchu? O velho enlouqueceu? Ele sempre meteu o pau em chuchu, quente ou gelado.

– Pois é, eu sei. Mas agora ele diz que dá um sabor especial, tem uma certa elegância e, principalmente, traz freguesia nova.

– Sei não. Acho que o chefe esqueceu da história do filé com mandioca.

– Ah, o prato até que fez sucesso, fala a verdade.

– Fez sucesso até todo mundo descobrir que era carne de anta. O restaurante quase faliu.

– Guido, este restaurante tem público cativo. Pode até passar por maus bocados, mas não acaba de jeito nenhum.

– Nosso cardápio era bem mais variado. Tinha umas 10 páginas, lembra? Agora é só capa e contracapa.

– É só questão de tempo pros pratos que ocupavam o centro voltarem, pode apostar.

– Tomara. Não fosse a nossa famosa mariscada, acho que a gente já tinha fechado as portas.

– Isso é verdade. Não sei como sobrevivemos quando nossa matéria-prima ficou presa no porto. Tivemos que servir dobradinha disfarçada de estrogonofe. Quase ninguém engoliu.

– Nossa sorte é que o restaurante ao lado vai de mal a pior. Também, com um dono burro daqueles e um chef que não consegue acertar uma receita, nem por milagre.

– Só não fechou porque ainda tem muitos clientes fiéis. Ano que vem a gente acaba com eles, se Deus quiser.

– Tá falando do chefe?

– Também. Mas ainda não engoli essa história do chuchu.

– Acho melhor você não contrariar o homem.

– Nem pensar. Quem sabe não é esse ingrediente que vai fazer esses novatos desistirem de abrir a nova doceria aí em frente.

– Concorrente novo? A gente não precisa disso não. O que eles pretendem vender?

– Sonhos…

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Mais do mesmo…

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Pela enésima vez – e para a surpresa de ninguém – o presidente do Brasil voltou a desestimular a vacinação contra a Covid. A mesma vacinação que tem reduzido enormemente os números de casos, mortes e internações. A mesma vacinação que tem proporcionado aos brasileiros a retomada de uma vida próxima do normal.

Há muito desisti de tentar entender qual é a lógica (?) desse raciocínio (??) cruel e doentio. Seria mais um caso simples de pura burrice, ou uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia? Seja o que for, o fato indiscutível é que tal comportamento é criminoso.

“Criminoso?” – diria um indignado militante adorador de político. “Opinião agora é crime?”

E eu responderia: “não, caro lambe-botas portador de severas alterações cognitivas, opinião não é crime. O energúmeno que governa (??!) o país pode pensar o que quiser da vacina, da cloroquina ou da alfafa que consome no café da manhã. Mas, na condição de presidente, ele não pode fazer acusações ou ilações sem provas. Ele não pode mentir, principalmente quando suas mentiras estimulam ações contrárias às políticas públicas e sanitárias de seu próprio governo.”

Ainda não convencido, o fã de ditaduras “do bem” retrucaria: “você não vê que estão acabando com nossa liberdade? Agora querem implantar um passaporte que divide seres humanos em classes. A humanidade já viu isso acontecer antes. Proteger os vacinados não deveria ser obrigação dos não-vacinados. Deveria ser da vacina.”

“O problema, Zé-gotinha-que-fugiu-da-escola, é que toda campanha de vacinação torna-se eficaz apenas quando alcança um percentual bastante significativo da população. Numa pandemia, essa premissa é ainda mais importante. Sendo assim, na prática, quem se recusa a vacinar está sim prejudicando todos os que querem ser imunizados. Quando tal comportamento parte do líder (??!!) máximo da nação, o estrago é incalculável.”

“Bolsonaro e o ministro da saúde já disseram: é melhor perder a vida que a liberdade. Concordo com eles” – insistiria o atordoado fantoche de ventríloquo.

“Essa patética e imprópria releitura do grito do Ipiranga vale também para todas as limitações que a vida em sociedade lhe impõe? Seu direito de não usar o castrador cinto de segurança, de não pagar os injustos impostos e taxas cobrados pelo poder público, de desrespeitar os opressivos sinais vermelhos também não é cerceado diariamente? Ou será que o seu conceito de liberdade varia de acordo com as suas conveniências e ideologias?”

No fim, como sempre acontece, o zumbi de D. Pedro iria embora certo de que seu mito, como sempre, está coberto de razão. E eu continuaria tentando entender onde foi que Darwin errou…

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