Tentei escrever uma crônica à altura dos acontecimentos do último fim de semana. Afinal de contas, agora devo zelar pela minha condição de escritor. Busquei metáforas que revelassem as nuances do sorriso insistente, longevo, incansável que se apossou do meu rosto. Não as encontrei. Caminhei por jardins de figuras de linguagem na esperança de colher hipérboles que fizessem jus ao tsunami de afeto que me envolveu. Tampouco as vi. Enveredei-me por outros campos — agora semânticos — na tentativa de encontrar vocábulos que fossem mais enfáticos do que o batido “muito obrigado”. Nada.
Resignei-me.
Talvez as palavras tenham se cansado de me levar pela mão. Talvez essa coisa de cronista não tenha passado de um sonho de verão. Seja como for, aqui estou, outra vez incapaz de descrever sentimentos que não se restringiram às mágicas três horas e meia de uma longa fila de carinhos e abraços emocionados. Meu coração começou a bater mais forte já na noite de sexta, em que as taças usadas nos primeiros brindes eram sustentadas por mãos vindas do Rio, de Cuiabá, de São Paulo, de Sorocaba, de BH. A essas juntaram-se — no sábado — outras mãos cariocas e paulistanas. Mãos de Pirenópolis, de Sertãozinho, de Assis, de Vila Velha. Mãos de um mineiro que há muito mudou-se para o Rio, e há pouco mudou a minha vida. Mãos velhas conhecidas e mãos recém-chegadas. Mãos de afagos tímidos e mãos de contatos efusivos. Mãos tagarelas e mãos silentes. Mãos acostumadas a me a tocar, e que — por alguma razão — estavam ainda mais ternas. Mãos ao meu alcance e mãos que eu daria tudo para poder acariciar novamente. Tamanho êxtase só poderia terminar em comunhão com a natureza, sob as bênçãos da arte. Sempre a arte.
Se tudo não passou de um sonho, que eu continue a sonhar.
Lote ideal: Pedaço de terra com localização privilegiada, insolação adequada, vista definitiva, topografia favorável, e preço de venda fora das possibilidades do curioso (ver cliente);
Insolação adequada: Característica de todo e qualquer imóvel apresentado pelo intermediário (ver corretor) ao possível comprador (ver cliente), independentemente de sua localização (sempre privilegiada) e do ponto cardeal para o qual esteja voltado;
Vista definitiva: Panorama, fração de panorama ou fresta de panorama que se avista do terreno apresentado pelo corretor ao interessado (ver cliente);
Lote adquirido: Pedaço de terra em aclive ou declive acentuado que o corretor insiste em chamar de “mesa de sinuca” nas tratativas com o sonhador (ver cliente);
Corretor: Profissional com formação em ilusionismo, mestrado na supervalorização dos pontos positivos, e pós-graduação na omissão de defeitos evidentes a qualquer leigo (ver cliente);
Projeto arquitetônico: Desenho técnico elaborado por profissional gabaritado (ver arquiteto) que contempla todos os sonhos do proprietário (ver cliente), mesmo que este não tenha condições financeiras de bancar metade deles;
Arquiteto: Profissional que usa todo o seu conhecimento de bruxaria para convencer o futuro morador (ver cliente) a aprovar projetos, especificações e acabamentos diferentes de seu gosto e claramente fora de sua realidade;
Projeto estrutural: Desenho técnico elaborado por profissional gabaritado (ver calculista) que contempla todos os sonhos do arquiteto, e busca convencer o construtor (ver engenheiro) de que o projeto de um caixote não é a única opção viável;
Calculista: Profissional com formação em alquimia, capaz de fazer com que todos os vãos sem pilares, balanços e pórticos previstos no projeto arquitetônico consigam se sustentar. Críticas às dimensões das vigas (por parte do projetista – ver arquiteto) e à quantidade de aço (por parte do dono — ver cliente) são corriqueiras, e até esperadas;
Engenheiro: Profissional com especialização em autopsicanálise, responsável pela execução do projeto elaborado pelo arquiteto, dentro do prazo, da qualidade e dos valores exigidos por deus (ver cliente);
Cliente: Curioso, sonhador, interessado, possível comprador que, ao se tornar proprietário, assume o papel de dono, de futuro morador, e — embora leigo — passa a achar que é deus.
Disclaimer: Esta crônica possui viés, partido, ideologia, tendência, bairrismo e parcialidade. Também tem um pouco lugar de fala.
Há tempos não uso mais a expressão “chegamos ao fundo do poço”. A cada dia, os absurdos impensáveis que acontecem em todas as esferas da sociedade me fazem ter certeza de que não há fundo no nosso poço. Não há sequer perspectivas de que possamos encontrar limites para nossas próprias imbecilidades. O ano de 2024 mal começou, mas marchamos firmes rumo aos séculos passados. Preconceitos que pareciam superados, experiências vividas que prometiam ser definitivas, conhecimentos adquiridos às custas de dor e sangue que pensávamos estar incrustados em nosso DNA. De repente, percebemos que tudo isso se perdeu em alguma curva do caminho.
Muitos dizem que são casos isolados, que a maioria da população continua ciente de que não podemos retroceder. Será? Então por que tantos se calam quando uma delinquente acusa uma comerciante de ser “assassina de crianças” exclusivamente em função de sua religião? Por que grande parte da sociedade aplaude quando um dos líderes de um partido retrógrado e corrupto sugere um boicote às empresas de judeus, como nos tempos do nazismo? Por que tantas universidades públicas, que deveriam ser o celeiro de novos pensadores, admitem e até incentivam a disseminação de informações enviesadas, enquanto impedem que o outro lado exponha seus pontos de vista? Por que tanta gente permite que a ideologia se sobreponha aos fatos, e bizarrices tais como o “preconceito do bem”, “a corrupção do bem”, “a ditadura do bem” tornem-se corriqueiras?
Somos uma sociedade doente vivendo em um país doente. Um país onde as vacinas – principais responsáveis pelo aumento da expectativa de vida da humanidade – passaram a ser contestadas. Um país de conceitos fluidos, que servem – simultaneamente – tanto para acusações quanto para justificativas. Um país de justiça parcial, em que sentenças são proferidas e anuladas aos sabores dos interesses mais escusos. Um país de hipócritas que fecham os olhos para qualquer indício de irregularidades no instante em que seu bandido de estimação ascende ao poder. Um país que não aprende com seus erros.
Este é o Lauro, pai da Daniela. Um senhor de 89 anos de idade, forte, lúcido, ativo, independente. Trabalhou até os 81, dirigiu até os 82, bebeu cerveja até os 89. Continuou morando sozinho depois do falecimento de minha sogra, seis anos atrás. A rotina dele começava cedo na academia do Minas Tênis, sua segunda casa. Todos os funcionários do clube o conheciam e o admiravam. Foi dentista da Rede Ferroviária antes de abrir seu consultório. Trabalhou a vida inteira para garantir que suas filhas jamais tivessem de sustentá-lo. Tornar-se dependente era seu maior medo. Ver sua família reunida, sua maior alegria. O último Natal foi o mais feliz, emocionante e harmonioso que passamos em muitos anos. Na última quarta-feira, Lauro pegou sua marmita e foi a pé buscar seu almoço, como fazia com frequência. Ele sempre encontrava desculpas para caminhar. Assim sentia-se livre. No trajeto de volta para casa, entretanto, desequilibrou-se e caiu. A pancada na cabeça provocou fratura no crânio e hemorragia no cérebro. Lauro entrou em coma algumas horas mais tarde. Faleceu há poucos minutos. A marmita não chegou a ser tocada. Assim é a vida: ninguém tem certeza de que estará aqui para desfrutar a próxima refeição.
Vá em paz, meu sogro. Obrigado por tantos anos de amizade, de carinho, de amor. Obrigado por ter trazido ao mundo a luz da minha vida. Sentirei falta do seu abraço. Sentirei falta do seu sorriso ao receber e beijar seus netos. Sentirei falta de jantar com você, nas nossas sagradas visitas das noites de domingo. Lamento que a de ontem – prevista para ser apenas a primeira do ano – tenha se tornado a derradeira.
A mãe pensa não ter entendido. O garoto mal completara três anos de idade. Jamais seria capaz de proferir uma obscenidade dessas.
— Você disse alguma coisa, amor?
— Fédaputa!
Não há mais dúvidas. Ela encosta o carro, desesperada. Estavam a caminho da creche. Atônita, pensa em virar na primeira esquina e voltar para casa. Certamente algum colega malcriado estava desvirtuando seu anjinho. Começa a elaborar – mentalmente – o discurso que fará para a diretora da escola: “não sabia que vocês admitiam gente desqualificada nessa espelunca. Ninguém faz uma triagem prévia? Um levantamento dos valores familiares? Uma…”
— Fédaputa! — interrompe o anjinho.
— Que horror, menino. Onde foi que você ouviu isso?
— Você falou, mamãe.
O desespero transforma-se em culpa e medo. A almejada passagem direto para o Céu está ameaçada. Que tipo de mãe é capaz de praguejar na presença de seu querubim? Tenta se lembrar do momento em que poderia ter dito aquela indecência. Talvez para o corno que tinha lhe dado uma fechada mais cedo. Ou para o merda do atendente da telefonia celular, incapaz de fazer um simples cancelamento. Quem sabe pensando na porra da funcionária que sempre fica doente nas vésperas de feriados.
— Fédaputa! — repete o querubim.
— Que caralho, moleque. Fica quieto um minuto.
As lágrimas agora brotam, denunciando o arrependimento. Ela já consegue sentir o calor das chamas que a aguardam no inferno. Pede desculpas ao filho, entre um soluço e outro. Daqui por diante, sua missão será impedir que seu bebê siga o caminho pecaminoso da mãe.
— Fédaputa! — responde o bebê.
Ela aquiesce. Entende ser merecedora de todos os xingamentos. Mas promete a Deus jamais desistir de seu pequeno.
— Filhinho, isso é muito feio, principalmente na boca de uma criança. Promete pra mamãe que você nunca mais vai repetir isso?
— E só puta, pode? — retruca o pequeno.
Pronto, o garoto também estava condenado. O remorso a corrói por dentro. Chora pelo mal que causara à criança. Ele merecia uma mãe mais zelosa.
— Não, querido, não pode de jeito nenhum.
— E só fé, mamãe?
Puta que pariu, Deus não a abandonara, afinal. O menino tinha salvação. Ela tinha salvação. Foda-se o fogo do inferno. Pau no cu do chifrudo.
As velas acesas emprestavam austeridade e cerimônia ao ambiente. O aconchego pretendido não se manifestava. Rostos estáticos moviam-se no compasso trêmulo da luz. Ansiosos, aguardavam o momento de contemplá-los. O piso frio não se rendera ao calor das chamas. Ali ela estendeu as vestes, restos de seus pudores. Mãos e boca uniram-se, dedos acariciando a fronte. Com os olhos cerrados, caberia ao corpo o vigor das sensações.
Ajoelhado ao seu lado, incumbiu-se ele das primeiras práticas. Sabia que, por ser pura, pouco haveria de compreender. A voz grave bastaria para fazê-la estremecer, mas foram suas palavras ao pé do ouvido que a deixaram eriçada. O arrepio perpassou seu ventre e alojou-se no peito. Perdera a noção de quem era, de quem fora. Jamais algo a preenchera daquela forma. Atento aos suspiros, ele jurou levá-la primeiro ao êxtase. Superado o assombro, parecia pronta para engolir carne, para sorver líquido.
Os fugazes encontros anteriores serviram de ensaio. Ela já havia lhe permitido amostras de textura e consistência. A imagem de suas mãos alternando movimentos bruscos e carícias suaves a arrebatara. Ela tentara disfarçar, mas os bicos intumescidos a inebriaram. Na volúpia do momento, entreolharam-se: ela, cada vez mais enrubescida; ele, esforçando-se para controlar a ânsia de levar tudo aquilo à boca. Ambos escumavam de desejo. Não era chegada a hora.
Poucos dias depois, ele a viu descalça. Fascinado por aqueles pés – pequenos e bem formados –, incitou-os a tocar a pele fina, a percorrer reentrâncias, a curvar-se diante do volume rijo. Ela recusou, a princípio. Seus olhos, entretanto, não conseguiram disfarçar o viço da tentação. Ousada, não tardou a demonstrar destreza. Movimentos ritmados se avolumaram. O sumo jorrava sob seus pés. Não podiam mais postergar. A fusão estava próxima.
As sombras projetadas pelo lume das velas pareciam ganhar vida. Dançavam, libidinosas, como déspotas da liturgia. Depois de sonhos, expectativas e preliminares, o ato estava prestes a se consumar. A espera chegara ao fim. E assim, lado a lado, os dois noviços entregaram-se ao sacerdócio. Pão e vinho – frutos de seus suores mútuos – enfim repartidos e degustados. Suas almas – consagradas pela eucaristia – finalmente em comunhão.
Do altar em frente, seminu e de braços abertos, um homem os abençoava…
“Filho, as três coisas mais perniciosas do mundo são imprensa, deus e pais”. A frase me pegou de surpresa. De onde surgira? Conversávamos sobre assuntos triviais: primeiras impressões da nova universidade, boas lembranças dos tempos de criança, comentários aleatórios sobre os assuntos do dia. Meu pai era mestre na arte de transformar bate-papos banais em momentos inesquecíveis. Pensei em indagar muitos porquês, mas um estranho brilho nos seus olhos insinuava que caberia a mim encontrar as respostas.
As quatro décadas que se seguiram àquela tarde não foram suficientes para que eu deixasse de me indignar com a parcialidade de quem deveria se ater aos eventos. A notícia tem lado (e aqui não me refiro a opiniões, sempre bem-vindas). Conceitos universais tais como democracia, liberdade, justiça e soberania tornam-se fluidos. Há as invasões e depredações do bem, os desmatamentos do bem, a ditadura do bem, a guerra do bem, o ódio do bem. Há até as decapitações do bem. Manchetes que corroboram ideologias são compartilhadas sem qualquer apuração criteriosa. Quando a situação se inverte, fatos aparecem em notas de rodapé, ou transmutam-se em silêncios ainda mais eloquentes. Decisões idênticas vindas dos mais diversos agentes públicos são objetos de elogios ou críticas, dependendo exclusivamente de quem as toma. Mais do que a verdade, importa a narrativa.
Houve um tempo em que hereges eram queimados vivos, condenados pelos autonomeados porta-vozes de divindades. Dizem que esse tempo de barbárie terminou. Será? As 12 pessoas assassinadas na sede do Charlie Hebdo certamente discordariam. O que diriam os milhões de mulheres mutiladas em países da África, se lhes fosse concedido o direito de manifestação? Qual seria a opinião de Mahsa Amin, morta pela “polícia da moral” iraniana devido ao uso “incorreto” de um véu? E como reagiriam as incontáveis vítimas dos conflitos travados por sunitas e xiitas no Iraque? Cristãos, hindus e muçulmanos na Indonésia? Cristãos e muçulmanos na Nigéria? Em nome de um deus, muitos se dispõem a morrer e a matar. Em nome de um deus, povos se mobilizam para exterminar povos que reverenciam outros deuses. Em nome de um deus, brasileiros tentam impedir que duas pessoas do mesmo sexo se unam perante a lei. Em nome de um deus, evidencia-se cada vez mais o vácuo de humanidade em que vivemos.
De repente, eu também era pai. De repente, minhas ações passaram a influenciar um caráter em formação. De repente, virei exemplo. Justo eu, ainda inexperiente naquilo de ser adulto. Via-me como aluno primário em um cargo destinado a doutorandos. Mesmo assim, não sei dizer quantas demonstrações de impaciência, quantas reprimendas fora de hora, quantos conselhos infelizes foram necessários até que eu percebesse os riscos aos quais meu filho estaria exposto. Errar não me seria permitido. Acertar era impossível. Busquei recordar momentos em que meu pai havia me magoado. Não fui capaz. Eles aconteceram, é evidente. Apenas tinham perdido a importância.
— Para de ficar de olho neste telefone. Nós já estamos na estrada. — Tô esperando uma mensagem importante. — Deixa que eu leio pra você. — Mas… — Não tem mas nem meio mas. Pode ficar tranquilo, leio só as mensagens que você permitir.
Tranquilo? Nenhum homem – por maior que seja sua vocação para aprendiz de imagem sacra – fica tranquilo ao ver seu celular desbloqueado nas mãos da esposa. Eu não tinha nada a esconder, mas – sabem como é – nessas horas a gente nunca se lembra de ter apagado aqueles vídeos animados com imagens de bate-estacas, picolés de morango, orquídeas em floração, e gêiseres em pleno funcionamento recebidos em um (ou dois, ou três) grupo de WhatsApp. Meu estômago gelava a cada sinal sonoro anunciando uma nova mensagem. O asfalto irregular me sobressaltava bem menos.
O tempo passava e nada da tal mensagem importante chegar. Àquela altura, Daniela já descobrira o apelido maledicente que um de meus amigos usava para se referir à sogra, a antipatia que um arquiteto parceiro tinha em relação ao sócio, os planos para um happy-hour da turma assim que voltássemos de viagem. Eu estava prestes a sugerir que o telefone fosse desligado quando um novo bip chamou sua atenção.
— É da sua turma da engenharia. Posso ler?
Aquele era o mais perigoso dos grupos. A chance de que alguém estivesse falando alguma bobagem (ou coisa bem pior) era gigantesca. Ela sabia disso. Se eu negasse, uma legião de pulgas sem teto montaria acampamento atrás de sua orelha. Resolvi correr o risco. Incorporei um ator laureado com o Oscar, e respondi:
— Claro, amor.
Ao abrir a mensagem, seu semblante empalideceu.
— O que está escrito? – perguntei, à beira de um ataque de pânico. — “Fernando, me passa a ficha da Anete”. Foi o Sérgio quem mandou. — Só isso? — Só isso.
O clima no carro pesou de tal forma que até a algazarra que os meninos faziam no banco de trás cessou. Eu não me atrevi a olhar para a Daniela. Tentei manter minha atenção na estrada, mas só conseguia imaginar as torturas que faria se encontrasse o infeliz do Sérgio naquele momento. Coube a ela quebrar o silêncio sepulcral que se instalara.
— Fernando Augusto – na sua boca, meu nome composto sempre adquiriu ares de apocalipse – eu não sou de fazer o tipo ciumenta, mas você há de convir que isso é muito estranho.
Tentei responder que sim, mas a voz não saiu. Acenei com a cabeça. Era evidente que eu precisava de socorro. Resolvi apelar para o corporativismo masculino.
— Arthur, pelo amor de Deus, me ajuda a achar uma Anete. Eu não conheço ninguém com esse nome.
Ele me olhou com um misto de pena e desapontamento. Não sabia se podia ajudar. Não sabia nem se queria. Quase consegui ouvir seu pensamento: “pai, que merda você andou aprontando?”
— Seu amigo te pediu uma informação, Fernando, e eu também exijo uma resposta. Quem é Anete? – inquiriu Odete Roitman, reencarnada na mulher ao meu lado. — Dani, eu não conheço nenhuma Anete. Pergunta pro Sérgio. Ele não sabe que você está digitando. — Posso mesmo? — Deve – afirmei, fazendo pose de macho, enquanto tentava esconder minhas mãos trêmulas. — Digitei. E mal posso esperar pela resposta. — Somos dois, então – reforcei, cada vez mais macho e mais trêmulo.
O sinal sonoro veio, logo em seguida. Desacelerei porque minhas pernas travaram. Minha boca secou, e meu coração parecia seguir o ritmo de um daqueles funks de periferia. Ela leu a resposta, e o ódio em seu olhar deu lugar à incredulidade: “Ué, é amiga da Dani no Facebook. Achei que você conhecesse.”
O carro, de repente, tornou-se minúsculo. Eu não cabia mais ali. Nem nos meus melhores sonhos teria imaginado um desfecho tão perfeito. Estufei o peito, abri um sorriso irônico, e virei-me para a encabulada Maria von Trapp sentada ao meu lado.
— Pois é, Dani, acho que eu também tenho o direito de saber: quem é Anete?
Arthur gargalhou, eufórico. O casamento de seus pais estava salvo. A viagem estava salva. O corporativismo masculino estava salvo.
— É isso mesmo, pai! – aplaudiu, aos berros – Mãe, fala aí: quem é Anete?
Muitos dão importância apenas ao autor, ao assunto, ao conteúdo. Outros tantos consideram tato e olfato tão importantes quanto a visão. Estou entre os que acreditam que o livro é o templo onde as palavras se reúnem para contar sua história. Ela pode ser divulgada em qualquer lugar, mas apenas o livro é capaz de consagrá-la.
Assim como os templos, há os livros simples e rebuscados, leves e densos, despretensiosos e sofisticados. O que importa é estar sempre atento aos afrescos que adornam as paredes, abrir as portinholas que dão acesso a pequenos cômodos e pátios, ouvir o silêncio que ecoa pela nave. O que importa é sentir a textura das capas e lombadas, encontrar o elo entre gravuras e sentenças, desvendar os segredos por detrás das dedicatórias. O que importa é a cerimônia.
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.”
A dedicatória de Brás Cubas talvez tenha sido a primeira a me chamar a atenção. Àquela altura, o autodeclarado defunto ainda não havia se unido a Capitu e Helena no hall de meus personagens inesquecíveis de Machado de Assis. Descobri, logo em seguida, que muitos de meus autores favoritos haviam usado as dedicatórias de seus livros para prestar as mais diversas homenagens. Victor Hugo ofertou um de seus romances ao povo da pequena ilha de Guernsey, onde se exilara. Guimarães Rosa, por sua vez, homenageou sua companheira Aracy em “Grande Sertão: Veredas”. “Cem Anos de Solidão” foi oferecido a um casal de amigos de Gabriel Garcia Márquez. E Saramago dedicou à sua esposa quase a totalidade de suas obras. Pilar eternizou-se como a casa, a que tardou a chegar, a que não permitiu que ele morresse, a que está presente todos os dias. Há sempre uma história pedindo para ser contada em cada uma dessas homenagens.
Meu fascínio pelas dedicatórias, entretanto, somente alcançou seu ápice muito tempo depois, quando entendi a importância de ser reconhecido por alguém que tanto tem a dizer. Tornei-me protagonista de duas delas. A primeira, de pai para filho:
“A quatro bênçãos, frutos de um amor sublime, que ao tempo de iniciarem sua formação como homens já sabiam ensinar e construir – Fernando, Sílvio, Flávio e Cris”.
A segunda, de filho para pai:
“Às pessoas que me guiaram e me amaram apesar de minhas imperfeições, e fazem da minha vida, para sempre, a melhor – Mamãe, Papai e Gui”.