O jovem e o tempo…

20201226_172254

Olho para o relógio apenas para me certificar de que os ponteiros continuam a se mover de forma frenética. Cansei de lhes pedir que descansassem um pouco, que reduzissem o ritmo. Jamais me deram ouvidos. Tolos, pensam que me enganam. A rotina é a mesma: passam meses fingindo trabalhar mas basta nos ver juntos para que se ponham a correr feito loucos. Sempre que lhes pergunto a razão da pressa, limitam-se a dizer que são ordens do tempo. Por vezes lhes pedi que chamassem seu patrão para que eu pudesse dizer umas poucas e boas a ele, mas o pedido é invariavelmente inútil. Aquele que se julga onipotente se recusa a dar as caras.

Tudo isso, entretanto, deixou de ser relevante. Depois de sofrer com tantos encontros abreviados, o jovem finalmente desvendou os segredos para se driblar o tempo. Cabe a este, agora, fazer bom proveito dos relógios e seus tique-taques irritantes. Contar nossos segundos é uma tarefa que não mais lhes pertence.

Ele começou ensinando o irmão mais novo a desafiar o tempo através do entrelaçamento das mãos. Basta que um minuto mais apressado se faça de engraçadinho para que elas se unam. É o suficiente para que um instante perdure por horas. As mãos entrelaçadas têm o poder de narrar histórias de chegadas ansiadas, de idolatrias recíprocas, de olhos que aprenderam a se reconhecer assim que se viram de longe, pelo vidro de uma sala de parto.

À mãe ele preferiu indicar artifícios mais ostensivos: abraços. Ah, os abraços dele. Não há nada que o tempo abomine mais. Ali ele sabe que não é bem-vindo. Um simples abraço é capaz de durar toda uma vida. É guarida das imagens de uma criança assustada em busca de colo, dos sons dos conselhos de mãe repetidos à exaustão, das lembranças de bênçãos silentes, de lágrimas reprimidas, do cheiro de filho que hoje emana do próprio peito.

Ao pai pragmático que sou, ele deu várias dicas para manter o tempo distante. Doses de “White Russian” irrigando conversas noite adentro, partidas de vôlei de praia seguidas de aplausos de incentivo, olhares diretos capazes de perpassar a retina e enxergar a alma, a segurança de um homem feito ao chamar o outro de papai. Toques, beijos, afagos, sorrisos e lágrimas, todos eternos e imunes ao tempo.

Mesmo com o tempo deixado de fora, é chegado o momento de uma nova despedida. Quanto tempo passamos juntos? Os relógios não fazem ideia. Atônito, o tempo exige das horas uma resposta que o satisfaça. Sem saber o que dizer, elas apontam para o jovem de olhar altivo que caminha sozinho rumo a mais um portão de embarque. O jovem que aprendeu a enganar o tempo. Há lágrimas em seus olhos, mas ele sabe o quanto são efêmeras. A maturidade e a confiança que o consolam, ao contrário, estão cada vez mais presentes. O amor que o guia não tem fim.

E assim, finalmente, o tempo sorri ao perceber que parou para admirá-lo…

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

À espera da minha estrela…

20201219_073044

Os primeiros raios de sol finalmente acordam para brincar de aquarela no horizonte. Dormiram pouco, mesmo com a noite mais longa. Travessos, perderam a noção do tempo no pique-esconde com as estrelas, enquanto a madrugada os buscava. Por onde teriam andado? O céu estava saudoso daquele manto azul de bordas douradas que sempre lhe empresta uma aura de boas novas. Todos preparam a entrada triunfal do sol dia adentro.

Eu acompanhei de perto toda a saga. Acordei para ouvir o chamado da noite à procura de luz. Vi as primeiras tintas serem derramadas sobre as nuvens, o bocejo das estrelas, o despertar preguiçoso da manhã. Agora sou eu a clamar pelo meu sol. Vim para vê-lo brilhar depois de uma madrugada bem mais longa do que previra. Pouco importa agora. Seu sorriso, seu calor, sua energia iluminaram o outro lado do mundo na minha ausência. O encontro será breve, mas o suficiente para fazer com que as estrelas da minha madrugada brilhem intensamente por mais algum tempo. Elas vêm em busca de combustível. Eu venho em busca de ar.

A estrela do meu Natal está prestes a me iluminar…

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Ansiedade e angústia…

20201216_204652

– É aqui a fila?
– Que fila, menina?
– Ué, a fila pro show. Ouvi no rádio que seria aqui.
– Mas o show ainda não foi marcado.
– Será que deram a notícia errada?
– Não, o lugar é esse. Só não tem data definida ainda.
– Então eu não posso ficar na fila?
– Claro que não. Pra que essa ansiedade, essa angústia?
– É que, sabe? Eu tô muito a fim de ir nesse show. Sou muito fã da Lady Gaga.
– E quem disse que o show vai ser da Lady Gaga?
– Como assim? Não é dela?
– Pode ser. Mas também pode ser da Adele…
– Jura? Adoro a Adele.
– … ou da Elena Temnikova ou da Zhang Xinyu.
– Nunca ouvi falar dessas duas.
– Eu não gosto de nenhuma. Dessa última, então.
– E por que não contrata outra?
– Tinha rato faturando em cima dela. Fui obrigado a engolir. Além do mais, é a única que tem pré-contrato assinado.
– As outras não? Nem a Lady Gaga?
– Só depois que forem aprovadas.
– Aprovadas?
– Claro. Ninguém pode se apresentar aqui sem ser aprovado.
– E quem aprova?
– A ANVISA.
– Agência Nacional de Vigilância Sanitária?
– Não. Agência Nacional de Vigilância de Sanidade. A gente quer ter certeza de que nenhuma delas é louca.
– E isso demora?
– Também não sei. De qualquer forma o risco é seu.
– Risco de quê?
– Ué, delas fazerem alguma loucura durante o show. Você tem que assinar um documento assumindo a responsabilidade.
– Mas você não acabou de dizer que não vão deixar as loucas se apresentarem?
– É que a gente não confia muito no povo que faz a análise.
– Peraí, você anunciou o show, não foi?
– Sim.
– Mas você não sabe quando vai rolar, nem de quem, nem se pode e eu ainda tenho que me responsabilizar por querer assistir?
– Exatamente. Você pega as coisas rápido, né?
– Nunca vi uma zona tão grande. Mas eu quero muito ir. Me dá o papel aí que eu assino.
– Tem certeza? Pensa bem.
– Cara, você tá querendo que eu desista? Que tipo de organizador de eventos é você?
– Do tipo que cumpre ordens…

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Eu, crônica…

FB_IMG_1608234703191

O ritual se repete há quase cinco meses. Texto da semana impresso, caneta e papel à mão, fones de ouvido conectados. O pessoal do escritório se despede de mim com antecedência. Todos já sabem do meu compromisso e da minha indisponibilidade momentânea para clientes, fornecedores e problemas. Fecho a porta da minha sala e lá permaneço por duas horas ou mais. Serão horas de meditação. Acesso o link da aula dez minutos antes, corto a conexão meia hora depois. Nesse intervalo, sou deleite, sou acalanto, sou lágrima, sou ombro. Ouço mais do que falo, sorrio mais do que choro, aplaudo bem mais do que sou aplaudido. Sou discípulo.

Preparo-me agora para o último ritual deste ano. Para um descanso que não anseio, afinal, desde o dia 28 de julho, as noites das terças-feiras têm sido minhas férias. É quando viajo para terras distantes que agora me parecem íntimas. Embarco munido de malas vermelhas repletas de caixas cor do mar, de queijos em forma de bola, de sabores e de perfumes. Levo de tudo: fotografias, vasos trincados, memórias. Formigas e elefantes me acompanham, seguidos por cães e borboletas amarelas. Tamanha bagagem não me pesa. Meu roteiro passa por pequenos lugarejos e grandes metrópoles. Tem cheiro de mar, de asfalto, de montanha. Tem cheiro de vida. A cada viagem, ricas e inesquecíveis histórias.

Nas minhas andanças, conheci gente que namorou no portão e foi da geração que inaugurou a pílula anticoncepcional. Gente doce e espevitada. Saboreei iguarias preparadas no fogão a lenha: o corte da carne em bisel e em lâminas bem finas, a fritura na panela de ferro até ficar dourada, o perfume do arroz de carreteiro, receita da mãe. Visitei antigos armazéns com estantes até o teto e caixas de madeira que guardavam arroz. Não resisti e lá mergulhei meus braços. Presenciei o diálogo definitivo em que criatura se despede do criador e aprendi que o maior dos deuses é o das grandes perguntas. Fui apresentado ao senhor Caramujo e percebi que eles – os caramujos – são exímios poetas quando bem acompanhados. Vi uma mãe passear de mãos dadas com suas filhas. Escolas azuis, lanchonetes, cachorros-quentes e saudades fizeram parte daquela caminhada. Ali entendi que somos como carretel e bobina, nessa grande costura que é a vida: duas linhas que, mesmo em planos diferentes, seguem entrelaçadas. Na minha frente, palavras ébrias de uma boca silente se verteram em afluente, torrente, enchente. Ouvi aquela voz no firmamento de anil e me encantei por ela. Conheci modelos com roupas de festa feitas de timidez e trajes de nada bordados de pressa. Disfarces e ilusões desfilaram diante dos meus olhos. Testemunhei a palavra dar forma aos fatos intangíveis, se transformar em esperança para a moça triste e sozinha na praça, emitir luz como um flash perene, que a tudo ilumina. Entrei em uma sala de cinema e acompanhei as projeções de um passado de entrega e um futuro de fé, que me envolveram num turbilhão de sentimentos liderados pelo amor. Vi, por fim, um gênio destruir Buenos Aires por engano, ser Tostão por um segundo, saudar as proparoxítonas de forma mágica e, com um simples “boa noite”, ganhar a atenção de todos.

Fiz amigos. Fiz muitos amigos. Amigos que pareço conhecer há várias vidas. Daqueles que você começa a bater papo e não quer que as horas passem. Daqueles que você precisa dividir textos, experiências, lágrimas, sorrisos e vinhos. Daqueles que você pode zoar sem melindres, discordar sem ressalvas, mostrar-se sem camuflagens. Daqueles que você já admirava de longe mas, quando se aproxima, percebe que são ainda mais especiais do que imaginara. Daqueles que você realmente ama. Não deveriam ser todos assim?

Minha viagem parecia simples mas, assim como o deus das pequenas coisas, se tornou sublime. Desentranhei memórias que julgava perdidas, dialoguei comigo mesmo, proseei com muita gente, sentado em um banco frente a um horizonte sempre belo. Compus imagens e canções que me fizeram filosofar sobre as razões de se estar vivo e de querer contá-las. A intertextualidade me inspirou a continuar minha busca. Ao final da caminhada, eu e as palavras estávamos entrelaçados. A hora da chegada se aproxima e já vislumbro novamente a minha sala, onde tudo começou. As normas da circularidade foram seguidas: o local é o mesmo, o personagem não mais. Aquele que partiu retorna outro, mais leve, mais pleno. Despiu-se aos poucos de suas máscaras e as largou nos parágrafos, nas frases, nas metáforas em que mergulhou nos últimos meses. A viagem pela escrita o ensinou a se ler melhor.

Suspiro.

Fecho os olhos.

Agradeço.

Hoje, finalmente, a crônica sou eu.

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

AD10S…

20201125_180830

O tango é passional, dramático, visceral. Seu ritmo ardente pede letras que falem de amores e desencontros, paixões e revoltas, vigor e morte. Assim também é o argentino. Efêmero apaixonado infindo, rebelde em sua própria euforia, beato de ídolos e crenças. Eterno órfão em busca de seus guias. Simples, em quatro linhas cabem seus anseios. Caótico, devoto de quem lhe fez sorrir, mesmo que ainda chore. Altivo, máculas abstratas não abalam ícones incontestes.

Seus heróis já tiveram muitos nomes: Carlos, Eva, Jorge, Diego. Um deles ainda há de virar santo. Apenas um se tornou deus.

“Basta de carreras, se acabo la timba
Un final reñido ya no vuelvo a ver
Pero si algún pingo llega a ser fija el domingo
Yo me juego entero
Qué le voy a hacer”

“Volver con la frente marchita
Las nieves del tiempo platearon mi sien
Sentir que es un soplo la vida
Que veinte años no es nada
Que febril la mirada, errante en las sombras
Te busca y te nombra
Vivir con el alma aferrada
A un dulce recuerdo
Que lloro otra vez”

E o brasileiro, tão afeito a idolatrias trôpegas quanto o argentino, deixa hoje a rivalidade de lado e conclama o poeta a falar por ele:

“Pelo prazer de chorar e pelo “estamos aí”
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague.”

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Revelação traumática…

20201123_184220

– Filho, venha aqui. Precisamos ter uma conversa séria.
– O que foi, pai?
– Eu e sua mãe não temos sido totalmente honestos com você.
– Pai, tô ficando assustado.
– A gente não podia te contar a verdade. Você ainda era muito novo pra entender.
– Pai, pelo amor de Deus, fala logo.
– Antes eu quero que você entenda que nós dois te amamos muito. Nada vai mudar isso.
– Eu juro que entendo, mas eu tô quase em pânico aqui.
– Paula, pega um copo de água com açúcar pra ele.
– Gente, eu não quero beber nada. Só quero saber o que está acontecendo.
– Tá bom, querido. Olha só… Sabe?…
– Pai, desembucha de uma vez.
– Você é fruto de uma reprodução heterossexual.
– Ah, meu Deus. Não acredito.
– Calma, filho.
– Como você quer que eu fique calmo?
– Eu sei que é um choque. Senta aqui, respira. Paula, pega um saco de papel. É mais uma daquelas crises de ansiedade.
– Não quero saco de papel nenhum. Quero saber toda a verdade agora.
– A gente vai te contar, filho.
– Reprodução heterossexual entre quem?
– Bem… é… entre mim e sua mãe.
– Ah, vocês querem acabar com a minha vida.
– Filho, não diga isso. Nós éramos muito jovens.
– Juventude nenhuma justifica isso.
– Eu sei, querido. Não foi fácil pra gente esconder essa mácula de todo mundo.
– Quantas vezes me disseram que eu era a sua cara, lembra? Você dizia que isso era impossível.
– Perdão, filho. Nós não queríamos mentir pra você.
– Mas mentiram! Tantas opções, pai. Tantas opções.
– Sabemos disso, filho.
– Eu podia ter nascido de barriga de aluguel, de fertilização de todos os tipos, de bancos de óvulos e de sêmen. Podia até ter sido adotado.
– A gente queria que tivesse sido algo assim, mas não foi.
– Como é que eu vou olhar pros meus amigos agora? Eu sou uma aberração.
– Não, claro que não. Você é lindo.
– Acho que não sei mais quem eu sou.
– Calma, tudo vai passar.
– Só falta você me dizer agora que não é gay e que o casamento de vocês não é de fachada.
– Paula, o saco de papel e a água com açúcar. Rápido!

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Sussurros à meia-luz…

6

As imagens me vêm em preto e branco: os guetos, os cômodos acanhados, os ambientes lúgubres, os sons difusos, os rostos acostumados a driblar os olhares alheios. As vozes vagam no escuro, como se temessem ser vistas. Sussurros. Sussurros de desesperança.
– Não, não quero. Não era pra acontecer.
– Mas aconteceu.
– Não vou levar adiante. O ventre é meu.
– Não diga isso.
– Digo sim. Olhe pra nós. Isso é vida?
– Não vai ser sempre assim.
– Quem garante?
– Não há garantias. Quem vier precisa apenas de uma chance.

Vejo o sol nascer entre muitas nuvens. De um quarto à meia-luz, ouço seu primeiro choro. Cessa a dor, a aflição não sara. A porta se abre e, ainda na penumbra, ele a encontra dormindo. Beija-lhe a testa, suspira e fecha os olhos em oração. É uma bênção. O lume pálido da manhã dá lugar à névoa da tarde.
– Ela é linda, não é?
– Tão linda quanto o entardecer.
– …
– Não chore.
– Promete de novo.
– Prometo.

Ouço a algazarra que ecoa por entre as sombras do pátio. Noto os desenhos em grafite que adornam as paredes desbotadas. Não fossem pelos quadros-negros e as mochilas penduradas, as salas sem carteiras passariam por depósitos abandonados. A luz não se atreve a romper o bloqueio de tábuas desalinhadas que cobrem as janelas em pedaços. A escuridão predomina.
– Era esse o seu plano?
– Claro que não.
– Eu bem que avisei.
– Se arrependeu?
– Tenho medo de pensar que sim.
– Ela não vai ficar aqui por muito tempo.
– Estou cansada dos seus sonhos.
– Eu não me esqueço do que prometi.
– Você e suas promessas.
– Dê uma chance.
– A você?
– A ela…

A brisa da manhã sopra mansa. Acompanho a movimentação das pessoas que chegam pouco a pouco. Tímidas, sussurram entre si sem saber o que esperar e como agir. Acuadas pelo próprio protagonismo, ressentem-se da presença de uma pequena multidão postada no outro lado da rua. Trajes brancos, cartazes brancos, mentes em branco. Gritos de guerra são repetidos. Gritos sombrios proferidos por bocas alvas. Gritos de quem jamais teve motivos para gritar. Os gritos cessam quando o alvoroço em frente ao grande edifício branco se inicia. Agora é a vez dos sussurros se avolumarem. Sussurram os brados sufocados, os choros contidos, as lágrimas guardadas. Sussurra a esperança.
– Não consigo ver.
– Por que não?
– Está tudo tão claro.
– O sol está forte.
– Ah, lá está ela.
– Sim. Linda como o amanhecer.
– Por que está toda cercada?
– Ela não está cercada. Ela é o centro.
– Centro das atenções?
– Não, hoje ela é o centro do mundo.

As cenas em preto e branco se apagam. Ainda me resta a fotografia. E a consciência.

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Home office…

20201118_165444

Toc, toc, toc, toc…

– Regineide, assim não é possível! O Hardisson não para de bater na nossa porta. Já falei que você tem que distrair o menino enquanto a gente trabalha.
– Mas, dona Shânia, Hardinho tava comigo o tempo todo. Olha ele aqui, com o fone pra não ouvir nada. Tem certeza de que não era a senhora batendo a cabeça na parede de novo?
– Claro que não, Regineide. Bato a cabeça na parede há um tempão, vê se eu ia confundir os sons. Cadê a Annette?
– Tá apagada. Ela sempre dorme quando o seu Bimba começa a gritar. Deve ser o ritmo, né?
– Já te falei mil vezes pra não chamar o Carlão de Bimba. Nome artístico é só do quarto pra dentro.
– Por falar nisso, dona Shânia, será que não tá na hora da senhora e o seu Carlão voltarem a trabalhar num estúdio? Os meninos estão crescendo. Annettinha ainda é quase um bebê mas o Hardinho tá cada vez mais desconfiado que vocês não são dubladores de animes.
– Tá louca, Regineide? Você não sabe que o setor artístico foi o mais afetado nesta pandemia? Cadê a verba? Além do mais, nos desenhos que o Hardinho assiste tem muito mais gritaria.
– Dona Shânia, o menino ouve a barulhada e depois vem me pedir pra contar a história que vocês estão dublando. Já inventei um monte de personagens pra tentar disfarçar. Tem anime Cadete, anime Baqueta, anime Cocota. O anime Pirralho é o que mais aparece na trama.
– Tô gostando de ver.
– Mas ele não é bobo. E minha criatividade tem limite. Isso não vai terminar bem.
– Aqui em casa tudo sempre termina bem. Vamos tentar ser mais contidos, Regineide. Mas é difícil. A arte toma conta da gente quando a câmera começa a gravar.
– Ah, eu sei. Sou eu que tenho que limpar toda aquela arte depois.
– Você não entende nada de cinema. Seu trabalho é continuar enrolando as crianças.
– Quando estão só vocês dois no quarto ainda vai. O duro – desculpe o trocadilho – é quando aparece um monte de gente. Semana passada tava um entra-e-sai danado.
– Regineide, o entra-e-sai ali não vai parar nunca.
– Mas eu não sei o que dizer pro Hardinho.
– Improvisa. Fala que é reunião de condomínio.
– E eu já não disse? Outro dia ele viu uma moça pelada aqui na sala e eu falei que o síndico agora manda tirar a roupa de quem faz barulho. É por isso que agora ele só anda de meia.
– Depois a gente fala sobre isso, Regineide. Tenho que me concentrar pra conseguir voltar pro personagem.
– A senhora é uma ótima atriz, dona Shânia. Fico impressionada com a sua dedicação e a sua entrega.
– Eu sei que poucos nascem com esse dom artístico. Deixa eu ir que o Carlão já tá me gritando.

Toc, toc, toc…

– Olha o barulho aí de novo. Quem será que tá fazendo isso?
– Ah, é o seu Eduardo, vizinho aqui de cima, reclamando. Mas os gritos de vocês só incomodam quando não estão tocando “Evidências” lá em baixo.
– Me avisa se ele bater no piso de novo. Vou abrir uma reclamação no livro do condomínio. Se tem uma coisa que me tira do sério é gente sem noção.

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

O lago…

20201114_103335

Ainda estávamos na estrada quando ele avistou o lago pela primeira vez. Não disse uma palavra. Seguimos em silêncio até um platô no alto da colina. O sol brilhava forte mas não era capaz de amainar o frio do inverno. Descemos do carro e ele caminhou até a mureta de pedra que servia de guarda-corpo. Lá parou para admirar aquela superfície azul cercada de montanhas e pequenas vilas. Eu estava ao seu lado e notei quando uma lágrima correu pelo seu rosto. Seu pensamento o sequestrara. Ele não estava mais ali…

Era uma cidade como tantas outras espalhadas pelo interior de Minas. Apenas as ruas e avenidas principais recebiam calçamento. As demais, com sorte, tinham mais terra que buracos. A rua de terra batida que ele percorria tinha sido danificada pelas recentes chuvas. Caminhava em ziguezague, na tentativa de se desviar das poças de lama. Não tinha mais do que quatorze anos de idade e estava prestes a deixar aquele lugar para sempre.

O salário que seu pai recebia como operário de fábrica mal dava para abastecer a casa. Sua mãe, sisuda como sempre, reclamava da labuta diária com a mesma frequência com que rezava o terço. Ainda assim, ele se afligia diante da perspectiva de ter que se virar sozinho. A capital seria a oportunidade de ampliar seus horizontes.

Com os sapatos encharcados, ele parou em frente ao portão de sua madrinha, a quem visitava todas as semanas. Era um sobrado quase tão simples quanto o dele, mas lá ele recebia um pouco do carinho maternal que lhe faltava em casa. Além do mais, sua madrinha tinha um rádio e, desde cedo, ele percebera que a música era capaz de deixar qualquer ambiente bem mais acolhedor.

Bateu palmas anunciando sua chegada e foi recebido com o sorriso de sempre. Deixou os sapatos na soleira da porta e entrou. Como de costume, o rádio estava ligado e o perfume da broa de fubá ainda quente se espalhava pela casa. Ele se sentia bem ali.

Sentaram-se junto ao fogão a lenha e dividiram alegrias e aflições. Entre uma conversa e outra, sua atenção se voltou para o som que vinha da sala. Era um solo de piano. Como ele amava aquele instrumento. A madrinha percebeu seu enlevo e permaneceu em silêncio até que a melodia terminasse.

– Essa música é linda, não é? – disse-lhe ao final.
– Nunca ouvi nada parecido. Qual é o nome?
– Se chama “Le Lac de Come”.
– O que é isso?
– É um lago que fica muito longe, fora do Brasil. Não sei direito onde.
– Se a música inspirada nele é tão bonita assim, como será esse lago?
– Não sei, querido. Um dia você vai descobrir.

“Le Lac de Come” tocava alto em suas lembranças. Eu quase podia ouvir seus acordes, envolto no silêncio daquele lugar. Nossas mãos se buscaram e se entrelaçaram. Não sei quanto tempo permanecemos assim. Provavelmente até que as notas finais ressoassem. Então ele se voltou para mim, me deu um beijo cheio de gratidão e disse num sorriso:

– Filho, o lago é tão lindo quanto a música!

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário

Abraços…

20201110_000417

Mais um ano se passou. É o segundo aniversário em que parte dos parabéns vem de muito longe. Parece bobagem mas a saudade bate ainda mais forte em dias festivos como os de hoje. Bate aqui, bate acolá.

O amor transborda de tal forma que as palavras lhe faltam e as frases me escapam. Restam apenas dois olhares que se sustentam. Olhares que só existem por se perceberem reflexos da mesma veneração. Dois rostos que acompanham o sorriso refletido ser banhado. Pai e filho cientes do que representam um para o outro.

Quem dera o “até amanhã” viesse em forma de um beijo. O “eu te amo” fosse dito envolto em abraços. Meu reino por um abraço. Aquele abraço, ar que me falta há quase oito meses. Aquele beijo, nicotina para a minha face viciada. A lágrima que escorre aqui molha a tela do lado de lá. O sorriso que vem de lá provoca o riso que eclode aqui. O amor é como uma onda que não se espalha. Apenas vem e vai indefinidamente, aumentando em frequência e intensidade a cada volta.

A ligação termina. A conexão não se desfaz. A família está completa.

É hora de dormir. Boa noite, filho. Obrigado pelo abraço!

Publicado em Sem categoria | Deixar um comentário