Deus espera…

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Quem me acompanha sabe que sempre uso o humor e o sarcasmo para denunciar os absurdos que vivenciamos todos os dias no Brasil. É a minha maneira de dizer o que penso, de condenar posturas hipócritas e contraditórias, de alertar para comportamentos que considero inaceitáveis. Nunca tive receio de externar minhas opiniões, de ser voz dissonante. Ao mesmo tempo, jamais tive apreço por verdades absolutas. O debate me motiva, as opiniões contrárias me atentam para outras possibilidades, a visão do outro – com frequência – ajusta a minha.

Mas tudo tem limite.

Vejam a celeuma em torno da proibição de cultos e celebrações, em discussão pelo pleno do STF. Quem, em sã consciência, pode ser favorável à liberação de uma atividade evidentemente não essencial no momento mais grave da pandemia? Bolsonaro enviou sua tropa jurídica ao Supremo, seus “jornalistas” e ex-jornalistas-em-atividade à imprensa, sua claque de fanáticos ao Twitter. Todos incumbidos de defender a “liberdade religiosa do brasileiro”.

Tenham santíssima paciência.

A proibição é temporária e se dá por questões sanitárias. Temos mais de 3 mil mortes diárias, o sistema de saúde está em colapso, há filas nos hospitais de todas as regiões do país. Não é possível que as pessoas continuem se recusando a enxergar isso. Nenhuma religião está sendo censurada e nem há campanhas diabólicas para que Deus seja esquecido. O fato é que concentrações de pessoas devem ser evitadas neste momento. “Ah, mas o baile funk da periferia continua” – denuncie, então, toda aglomeração clandestina. “Ah, mas as igrejas respeitam o distanciamento” – algumas tem estrutura e espaço para isso, mas a maioria não. “Ah, mas os ônibus vivem lotados” – sim, e a solução é aumentar o número de passageiros em circulação? “Ah, o presidente só está defendendo o nosso direito de ir e vir” – não, o objetivo de Bolsonaro é atender aos interesses de seus guetos eleitorais. “Ah, mas os fiéis sentem-se melhor quando vão a cultos e missas” – as celebrações online estão aí exatamente para suprir essa carência.

Estamos vivendo tempos complicados. Vamos focar nossas energias em questões realmente importantes, que mereçam ser debatidas. Saibamos reconhecer e condenar as atitudes populistas e demagógicas, as birrinhas ideológicas, as cortinas de fumaça que nos afastam dos verdadeiros problemas. Como dizia minha avó: “muito ajuda quem pouco atrapalha”. Convenhamos, o que não falta neste país é gente disposta a atrapalhar!

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Via sacra…

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‘Amedrontadas, as mulheres baixaram o rosto para o chão, e os homens lhes disseram: “Por que vocês estão procurando entre os mortos aquele que vive? Ele não está aqui! Ressuscitou! Lembrem-se do que ele disse, quando ainda estava com vocês na Galileia: ‘É necessário que o Filho do homem seja entregue nas mãos de homens pecadores, seja crucificado e ressuscite no terceiro dia’ “. Então se lembraram das palavras de Jesus.’
Lucas 24:5-8

As Semanas Santas da minha infância foram passadas no sítio do meu padrinho. Nossas confraternizações seguiam ritos tão ou mais sagrados que os praticados na igreja. As quintas-feiras começavam com a recepção das diversas famílias, abastecimento das geladeiras e definição dos quartos. Prosseguiam com o desfile de colchões ao sol para as crianças que se amontoariam na sala, e terminavam na ceia – que de santa nada tinha -, sempre regada a cerveja, refrigerante e piadas que fariam os apóstolos corarem antes do primeiro gole de vinho.

As sextas-feiras eram dedicadas à produção do capelete que seria consumido no domingo. Uma verdadeira linha de produção se formava e os responsáveis por cada etapa se repetiam. Preparação, sova e abertura da massa eram tarefas masculinas. Tempero, molhos e recheios cabiam às mulheres. A montagem acabava com o sexismo e contava com a participação valiosa das crianças, especialistas em criar formas diferentes na massa para depois tentar localizá-las nos panelões.

Os sábados começavam com a malhação do Judas. O boneco em tamanho natural tinha sido finalizado na véspera, incumbência das avós costureiras (exceção feita àquelas que tinham alergia à palha que servia de enchimento). A grande fogueira era precedida da abertura do testamento de Judas, sempre lido e escrito pelo meu pai. As 30 moedas de prata não faziam parte do inventário. Características, peças de roupa e até partes do corpo do traidor eram os bens cobiçados. O fígado, por exemplo, era destinado aos bêbados, os pulmões, aos fumantes, os olhos, aos míopes e as tias solteiras ficavam com o… bom, vocês captaram a ideia.

Os domingos, claro, eram os dias mais aguardados. Levantávamos cedo, ansiosos pela caça aos ovos de Páscoa. Passávamos a manhã correndo de uma ponta a outra do sítio, seguindo pistas que levavam a mais pistas. No final, os ovos estavam sempre bem perto da casa. Lembro-me até hoje do acréscimo de estima que sentia ao ser capaz de desvendar enigmas tão complexos. O delicioso capelete, servido em duas versões – caldo e bolonhesa -, tinha o gosto amargo da despedida. Ao entrar no carro, começava a contagem regressiva para a Páscoa seguinte.

As Semanas Santas da minha infância nunca tiveram missas, jejuns ou penitências. Mesmo assim, jamais foram pagãs. Uma oração era ouvida a cada brinde. O perdão se esgueirava por entre sorrisos e abraços. As gargalhadas emitiam agradecimentos à vida. O preparo do nosso pão de domingo era pura comunhão.

Eu cresci e acabei me acostumando às mensagens de luto postadas nas Sextas-feiras da Paixão. Homenagens ao calvário de Cristo, o Filho de Deus que morreu por nós e ressuscitou no terceiro dia. Reflexões pesadas, doídas, sem a leveza que meus olhos infantis testemunharam.

Hoje, mais uma vez, as mensagens de luto pipocam na minha TL. Poucas, entretanto, falam de Cristo. Ainda mais doídos, repetem-se os lamentos pela perda de pais, irmãos, filhos e amigos. Pessoas que viviam seu próprio calvário, enquanto tantas outras desdenhavam da gravidade de seu sofrimento. Pessoas que dependiam das máscaras de oxigênio enquanto tantas outras se recusavam a usar aquelas que evitariam que seu veneno se alastrasse. Pessoas que não puderam despedir-se dos seus enquanto tantas outras eram incapazes de conter sua ânsia por encontros desnecessários.

Hoje, de cabeças baixas, procuramos entre os mortos. Choramos pela chance que não tiveram. Choramos por quem deixaram. Na dor, buscamos sinais de ressurreição. Não a das vidas que perdemos. Quase trezentas e trinta mil só no Brasil, desde a última Páscoa. Não, essas jamais retornarão. A ressurreição que buscamos é a que nos resta. É a que nos permitirá viver daqui por diante.

Vão e anunciem que a esperança há de renascer, como Fênix, de suas próprias cinzas. Renascer contra todas as probabilidades, aniquilida que fôra. Renascer apesar da escuridão que domina boa parte do mundo. Apesar dos olhos fechados diante de um sol que insiste em brilhar. Apesar da miopia que distorce as análises, e da vilania que a estimula. Apesar de nossos olhos de criança terem adormecido.

Que a ressurreição comece na palavra…

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Caixa de Pandora…

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– Tio, meu aniversário tá chegando?

Roberval não aguentava mais responder à mesma pergunta. “Maldita hora em que aquela tonta da Edilene resolveu fazer uma festa”. Não se conformava com a ideia de gastar tanto só para atender aos caprichos de uma menina de seis anos. Ele e Edilene moravam juntos há apenas alguns meses. O pai de Gabi sumira no mundo pouco antes do seu nascimento, deixando uma mãe traumatizada e uma filha carente.

– Já disse que sim, Gabi. Sua festa é no sábado.
– Falta muito pro sábado?
– Só dois dias. Hoje é quinta.
– Então é amanhã?
– Não. É depois de amanhã.
– Nossa, tá muito longe.

Roberval se controlava para demonstrar uma paciência que não tinha. A paternidade jamais lhe atraíra, talvez em razão da relação conflituosa que vivera com seu pai. Olhou para o relógio na parede. Quase oito da noite e nem sinal de Edilene. Ela avisara que se atrasaria, mas aquilo era demais. A menina tinha tomado banho, jantado e agora se distraía com uma boneca tão feia que o lembrou de uma antiga namorada. A mãe sempre lia para ela antes de dormir. Ele não queria assumir também esse fardo. O futebol estava para começar.

Edilene chegou poucos minutos depois. Roberval a recebeu com cara de poucos amigos.

– Que demora, heim?
– Nem me fale.
– Onde você estava?
– Contratando o animador da festa.
– Ah, não é possível. Não tenho grana pra bancar mais uma frescura.
– Frescura? Você quer passar a festa toda correndo atrás de um bando de meninos?

Ele não respondeu. Sentou-se no sofá e ligou a TV.

– Gabi, meu amor, sabe quem vai animar a sua festa?
– A Elsa?
– Não, querida.
– Cinderela? Moana? Branca de Neve?
– Não. Nenhuma princesa estava disponível. Vou dar uma dica: ele é fofinho, é amigo e adora rolar no chão com as crianças.
– Um cachorro, mamãe?
– Não, querida. Um panda!
– Um panda?! – espantou-se a menina – o que é um panda?
– Um panda?! – gritou Roberval – você quer que eu pague por um panda?
– Roberval, depois a gente conversa. Gabi, panda é uma espécie de urso.
– Mamãe, eu tenho medo de ursos.
– Querida, não é um urso de verdade. Ele é bonzinho, você vai ver.
– Eu queria uma princesa.
– Amor, era o panda ou um gorila igual ao que a gente viu no zoológico.

Chorando, Gabi correu para o quarto e bateu a porta. Roberval soltou uma gargalhada.

– Essa menina tá mais mimada a cada dia. Abre seu olho.
– Deixa que eu me viro com ela.
– Vai cancelar o panda hoje mesmo ou só amanhã?
– Não vou cancelar nada. Além do mais, já tá pago.
– É claro que isso não vai dar certo. Depois não diga que eu não avisei.

O sábado chegou trazendo mais problemas. Logo cedo, Edilene recebeu mensagem do animador dizendo que havia sofrido um acidente, mas que havia providenciado alguém para substitui-lo. À tarde, a aflição veio por conta do atraso do seu cabelereiro. Edilene ligou para casa e pediu que Roberval levasse a aniversariante para o local da festa. Ela os encontraria depois.

Gabi se encantou ao chegar. Balões multicoloridos formavam seu nome na porta. Bolo e decoração em tons rosa chamavam a atenção. Roberval teve que ser firme para que a menina não começasse a comer os doces antes mesmo da festa começar. Roberval recebeu os garçons, a fotógrafa, o animador, e passou-lhes as instruções meticulosas que recebera de Edilene. Os primeiros convidados começaram a chegar em seguida.

Edilene só chegou meia hora depois do início da festa, irritada por não ter tido tempo de tirar fotos antes que a fantasia da menina – assim como sua maquiagem – se desfizessem. No salão, tudo corria bem. Adultos conversando animadamente, bebidas e salgados bem servidos, e crianças encantadas com o animador. O homem vestido de panda contava histórias, promovia gincanas e até arriscava algumas mágicas. Gabi nunca tinha se divertido tanto. De repente, o panda passou a ser seu animal favorito. Roberval teve que dar o braço a torcer. O panda era um sucesso.

Chegou a hora dos parabéns. Radiante, Gabi veio nos ombros do panda. Edilene abriu os braços para recebê-la. Ao ver a mãe, o panda parou. Acostumadas às brincadeiras, as crianças pensaram se tratar de mais uma cena teatral. Mas o panda se manteve imóvel. Roberval foi até ele e retirou a menina de seus ombros. Todos se reuniram em volta da mesa e cantaram parabéns. Meninos e adultos se digladiavam pelos doces, posavam para fotos, e alguns dos convidados começavam a se despedir. O panda permanecia estático, agora com a cabeça baixa.

Terminado o alvoroço, Edilene caminhou em sua direção. Ele recuou. Ela o segurou pela mão.

– Tá tudo bem? Você tá sentindo alguma coisa?

O panda balançou a cabeça, negativamente.

– Olha, eu queria lhe dizer que ficamos muito felizes com o seu trabalho, viu? Nunca vi a Gabi tão feliz em toda a minha vida.

Ele não respondeu. Voltou-se para a menina, ainda na mesa de doces. A máscara não impediu que seus olhares se cruzassem. Ela veio correndo e agarrou-lhe as pernas. Ele se ajoelhou e a envolveu em um longo abraço. Soluçava. O panda então tomou as mãos de Gabi nas suas e lhe disse algo ao pé do ouvido. Em seguida, sem olhar para trás, fugiu em disparada do salão.

Assustada, Edilene perguntou à filha o que o panda havia lhe dito.

– Ele disse: perdão.

A mãe baixou os olhos marejados para que a filha não os notasse.

– O que é perdão, mamãe?
– Não sei, meu amor. Não aprendi.

Naquela noite, bebendo em um bar do centro da cidade, o homem vestido de panda foi visto pela última vez…

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História repetida…

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Salve, companheiro da estrela vermelha. Como vai?

Sim, eu sei, há muito não me dirijo a você. Sabe como é, né? Você deu uma sumida e a vida anda tão atribulada, tantos problemas, essa pandemia que só piora. O afastamento era inevitável, você há de convir. Sejamos francos, a verdade é que você perdeu protagonismo e nossa relação já estava pra lá de desgastada. Foi bom dar um tempo.

Não, não estou buscando nenhum tipo de aproximação, se bem que uma bandeira branca, sem nenhum detalhe de cor, cairia muito bem neste momento do país. Mas você nunca foi de dar o braço a torcer. Só queria lhe dizer que tenho pensado em você ultimamente. E não foi devido à libertação daquele criminoso que você chama de deus.

Pensei em você porque me lembrei de quando passou meses acampado ao lado da Polícia Federal em Curitiba. Me lembrei daquela vez que você participou de uma missa a céu aberto, para que os Ministros do Supremo soltassem o seu ídolo. Me lembrei daquelas aglomerações gigantescas de que você participava só pra conseguir chegar perto dele, como se buscasse a bênção de uma entidade. Coisa louca. Nunca entendi aquilo.

Não me esqueço daquela menina, como é o nome dela, gente? Aquela que é tão insuportável quanto a Bia Kicis. Isso, Gleisi Hoffmann. Pois é, lembra quando ela falava frases e você as repetia que nem um pateta? E os ataques aos repórteres de TV, o apelido de Globolixo que você deu para aquela emissora de televisão, a produção de falsos mártires de acordo com a sua conveniência?

Lembra de como você passava pano para qualquer denúncia de corrupção, qualquer crítica que faziam ao seu presidente? Lembra da turminha que era paga pra defender qualquer merda que ele fizesse? Você chamava aquilo de jornalismo imparcial. Eu ria.

Quando o Centrão tomou conta dos cargos e dos ministérios, você defendeu o que chamou de governabilidade, lembra? Lembra de como você afirmava que o Brasil vivia seu melhor momento? Que a culpa dos problemas era sempre do governo anterior, ou da oposição que não tinha aceitado a derrota, ou do judiciário que não deixava o presidente agir? Lembra?

Pois é, companheiro, quem diria que, poucos anos depois, tanta gente que o criticava estaria copiando cada movimento seu. Sim, concordo, o tempo é o senhor da razão, e o tempo aqui mostrou bem quem estava certo.

Você? Hahaha, não, companheiro. Você continua sendo o mesmo imbecil limitado de sempre. A diferença agora, caro petista, é que você tem companhia…

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Insetos…

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– Então, menina, conta tudo!
– Ai, amiga, tô nas nuvens. Ele é tudo de bom.
– E que gato, heim? Só achei estranho ele não estar de máscara no elevador.
– Não usa. É contra os princípios dele.
– Mas ele não tem medo de pegar Covid?
– Menina, esse vírus é uma bobagem, baixíssima letalidade, a imprensa é que fica fazendo tempestade em copo d’água só pra prejudicar o presidente. Além do mais, máscara pode matar, sabia?
– Sério?
– Claro, o oxigênio não entra. A prima dele ficou com a boca tortinha porque respirou aquele veneno por mais de duas horas. Ele já tinha avisado, mas ela não acreditou. Deu nisso.
– Ele é médico, é?
– Professor de tiro. Mas de uma cultura. Depois visita a página dele no Telegram. Acho que é “Cloroquinando a verdade”, ou coisa parecida.
– Ai, amiga, tão feliz por você.
– Sabia que ontem ele chegou a ser preso porque desobedeceu o toque de recolher?
– Não diga.
– Tô falando. Liberdade é sagrada pra ele. Não obedece prefeito e governador comunista de jeito nenhum.
– Confesso que ainda fico com medo. Tanta notícia de gente morrendo.
– E você acha que ficar em casa resolve?
– Ué, se não me encontrar com ninguém…
– E as pulgas?
– Que pulgas?
– Pulga, barata, formiga, joaninha, louva-deus, tudo isso passa Covid pra quem fica trancado dentro de casa.
– Jesus, que perigo.
– Por isso que lockdown não funciona.
– Gente, por que ninguém divulga isso?
– O governo divulga. Mas a imprensa não quer que a verdade apareça.
– Amiga, mas isso é uma ditadura.
– É o que ele sempre fala.
– E quando vai ser o próximo encontro?
– Amanhã. Vamos de hospital em hospital pra acabar com a farsa.
– Que farsa?
– Ué, se tem 3 mil morrendo por dia, cadê os leitos que ficam vagos?
– Gente, não tinha pensado nisso.
– É assim que eles te enganam.
– Ai, promete que me conta todas as novidades?
– Claro, amiga, prepara o zap aí porque lá vem bomba…

Disclaimers:
1) Esse diálogo é ficcional. Qualquer semelhança com ministros, chefes de estado e seguidores enrolados na bandeira do Brasil não passa de mera coincidência;
2) Matar pulgas e joaninhas é tão eficaz quanto nebulização de cloroquina ou aplicação de ozônio no onyx alheio. Preserve a natureza;
3) Os únicos animais comprovadamente transmissores da Covid-19 são aqueles que chamam máscaras de focinheiras e vacinas de placebos. Recomenda-se manter distância, mesmo depois da pandemia.

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Que praga…

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– O Senhor mandou me chamar, Altíssimo?
– Sim, Moisés. Queria me aconselhar com você.
– Comigo, Todo-poderoso? Não sou digno de lhe dar conselhos, Pai.
– Moisés, deixa de frescura. A gente já se conhece há milênios.
– Perdoe-me, Deus. Como posso ajudá-lo?
– Tô muito preocupado com a Terra. Aquilo ali tá fora de controle. Nem Eu dou conta mais.
– É verdade, Senhor. Tenho acompanhado a transformação do planeta no “Mundo Visto de Cima”. O Senhor já assistiu?
– Não preciso de TV para saber o que acontece no universo, Moisés.
– Claro, Senhor. Perdão. O que pretende fazer?
– Tô pensando em mandar uma nova praga. Você tava lá quando fiz isso pela primeira vez e deu certo. O que acha da ideia?
– Deus do céu!
– Sim?
– Ah, desculpe. Força de expressão. Quis dizer que acho a medida extrema. Tem certeza, Senhor?
– Não vejo outra saída, Moisés. Preciso dar um jeito de parar com as guerras, a poluição, o desmatamento, as raves de baile funk…
– Alguma coisa que obrigasse as pessoas a ficar em casa?
– Sim.
– O que acha de gafanhotos?
– Poderia afetar todas as plantações. Não quero matar a humanidade de fome. É mais pra dar um susto, sabe?
– Entendi. Então acho que tem que ser alguma doença contagiosa mesmo.
– Ah, sempre a mesma coisa. Não tem nada mais moderno não?
– Não sou muito ligado em tecnologia, Senhor. Quer que eu chame o Steve Jobs?
– Não, deixa. Vírus de computador ia ter efeito contrário. Vamos de pandemia, mais uma vez.
– Boa decisão, Senhor.
– Minha dúvida é se vai dar resultado.
– Como assim?
– Lembra o que tinha de gente chamando a Gripe Espanhola de resfriadinho, de guerra biológica, de cerceamento às liberdades?
– Como me lembro. Morriam milhões e as pessoas continuavam dizendo que tudo não passava de uma farsa.
– Meu medo é esse.
– Mas a humanidade hoje é bem mais instruída, Senhor. A ciência não é mais questionada.
– Você é um humanista, Moisés.
– Obrigado, Senhor.
– Não foi um elogio.
– Bem… o Senhor vai começar por onde?
– Algum país bem populoso, pra espalhar rápido.
– Que tal o Brasil?
– Ah, não. Tem que ser o mais distante possível do Brasil.
– Bem que eles dizem que o Senhor é brasileiro.
– Brasileiro? Não, Moisés. É que mando pragas pra lá já faz muito tempo.
– Ué, e por que está tão preocupado agora?
– É que em 2018 eu errei a mão…

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Outono…

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Claridade se faz de rogada. Esgueira-se – manhosa – madrugada adentro. Corteja as estrelas, seduz o luar. Espreguiça-se, sem pressa, prestes a amanhecer. A Terra aguarda, ansiosa, que a manhã desperte. Trata-se de uma aurora rara. Eufóricos, os primeiros raios apostam corrida com o outono. Juntos, anunciam a chegada do mais justo dos dias. Aquele em que o sol não faz escolhas. Aquele em que brilho e calor são bens comuns. Aquele em que a luz é plena.

Ela desperta. Levanta-se, abre a janela, saúda e respira o frescor que inaugura a nova estação. Seus olhos irrequietos vislumbram a chegada de noites amenas, taças de vinhos encorpados, trajes elegantes, olhares ousados. O sol pleno a reconhece. São velhos companheiros de alvorecer, quase alma gêmeas. Encontram-se a cada ano neste mesmo dia. O clarão não ofusca, o ardor não transpira. Abraçam-se.

Ela herdou a elegância e o enlevo do outono. Seu olhar intenso pode assustar quem não percebe a gentileza tímida. A boca hipnotiza, o semblante – feito fascinação – entontece. Um sorriso, e a rendição se completa.

Do sol, roubou-lhe o fulgor. Sua presença resplandece. Não há como escapar da chama que arde em faíscas de argúcia, em coriscos de ternura. Não há como não se encantar. É ela quem brilha.

A estrela que me guia vive ao meu lado. Jamais me perco. Acostumei-me ao seu calor. Não sinto frio. Íntegra como o mais justo dos sóis, leve como o frescor do outono, vislumbro o universo em seu olhar. Sua expressão me acalma, sua voz me revigora, seu colo me assanha. Ela é meu sol pleno, meu equinócio de vida. Sua luz é o amor.

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Um ano para ser lembrado…

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As fotos acima foram tiradas há exatamente um ano. Assim como todo o terminal, os guichês das locadoras de veículos do aeroporto de Orlando estavam às moscas, reflexo do fechamento das fronteiras aéreas. Nosso voo foi dos últimos a deixar os Estados Unidos em direção ao Brasil. A volta foi antecipada, o ansiado reencontro com nosso filho, abreviado. As máscaras – peças que se tornariam corriqueiras dali por diante – foram usadas pela primeira vez. O mundo não era mais o mesmo.

Um ano depois e o medo que vivenciávamos é ainda maior. Tínhamos então, no Brasil, 529 casos confirmados e 4 óbitos. Hoje são quase 12 milhões de casos e 285 mil mortes. Uma tragédia sem precedentes. O sistema de saúde do país está em colapso. Mesmo nos grandes centros, há gente morrendo sem atendimento. Mais de 3 mil pessoas perderam a vida somente ontem. Como chegamos a esse ponto?

O caos em que vivemos tem várias causas. Enfrentamos graves e históricos problemas de infraestrutura, moradia e saneamento básico. Grande parte de nossa mão de obra é informal e autônoma, e depende de seus esforços diários para sobreviver. Nossas empresas sangram para conseguir pagar todos os impostos e encargos a que são submetidas, e raramente conseguem ter reservas financeiras para emergências. Tudo isso dificulta – e muito – a implantação de quaisquer medidas sanitárias e de isolamento.

Mas também somos um povo relapso, egoísta e sem qualquer senso de coletividade. Não por acaso, a maioria de nossos governantes é também relapsa e egoísta. Enquanto a população sofre com o desemprego e a redução de receitas, membros do executivo, legislativo e judiciário de todas as esferas continuam incapazes de reduzir seus salários, verbas e gastos. Vivem – como sempre – em suas bolhas intocáveis.

Para completar a tempestade perfeita, comanda o país a pessoa errada, no lugar errado, na hora errada. Nenhum líder mundial foi tão irresponsável, tão negligente, tão criminoso na gestão da pandemia quanto Jair Bolsonaro. Desde o primeiro dia – através de palavras e ações – o presidente desestimulou todos os protocolos sanitários de combate à Covid. Provocou e incentivou aglomerações, recusou-se a usar máscaras, desmereceu a importância das vacinas, divulgou informações falsas, incitou a população a usar um medicamento ineficaz, colocou um pau-mandado incompetente e submisso para cuidar da saúde, tratou com deboche e escárnio as mortes que se avolumavam, postergou o quanto pôde o início da vacinação, e jamais demonstrou um único momento de empatia e solidariedade para com os familiares dos mortos. Até o auxílio emergencial – razão de seu apoio popular até o ano passado – foi feito sem as contrapartidas necessárias para se evitar o descontrole total das contas públicas. Jair Bolsonaro é um desastre que o Brasil levará décadas para superar.

Mas ainda há esperanças. A vacinação – de uma forma ou de outra – há de avançar. Vacinados, os brasileiros retornarão aos poucos à sua rotina. Lutemos para que isso aconteça o mais rapidamente possível. Que, daqui a um ano, possamos falar da pandemia como coisa do passado. Mas sem esquecer tudo que ela tem nos mostrado. Esquecer, não. Esquecer, jamais!

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Colapso…

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Tenho amigos que moram em Portugal. Diante do aumento dos casos de Covid, o governo decretou um lockdown severo. A circulação de pessoas é limitada e compras em supermercados e padarias devem ser agendadas. Os desobedientes estão sujeitos a multas e detenções.

Tenho amigos que moram no Canadá. Eles têm liberdade de sair de casa apenas para compras essenciais e exercícios ao ar livre. Encontros com famílias vizinhas podem lhes render multas de até 10 mil dólares.

Tenho amigos que moram na Austrália. Mesmo em um país com um terço do número de mortes registradas no município de Belo Horizonte, quaisquer pequenos novos surtos da doença provocam fechamento total das atividades. As pessoas não podem se afastar mais do que uma determinada distância de suas casas, sob pena de multa e prisão.

Situações semelhantes se repetem na Alemanha, na Nova Zelândia, na Espanha. A lista é longa. A verdade é que os líderes de praticamente todos os países do mundo recorrem ao lockdown ainda hoje, mesmo depois do início da vacinação. É uma questão sanitária.

No Brasil, entretanto, isso não acontece. Jamais tivemos um lockdown de verdade. Nosso isolamento contou apenas com o fechamento de setores específicos. Somos hoje o epicentro da pandemia no mundo. O sistema de saúde do país está em colapso. Mesmo assim, os nossos prêmios Nobel do Whatsapp insistem em dizer que vivemos uma ditadura, a pandemia é uma farsa, o isolamento não funciona, máscaras só fazem mal, vacinas feitas às pressas são placebo, e prefeitos e governadores querem destruir a economia do país para prejudicar o governo federal. Como se um presidente que endossa todos esses absurdos precisasse de ajuda para se desmoralizar perante a opinião pública.

Aguardemos agora as novas carreatas dos brasileiros patriotas contrários ao isolamento social e favoráveis ao mito. O show de horrores que presenciamos nos hospitais a cada dia parecem não ser suficientes para minar de vez as nossas esperanças.

Disclaimers:
1) Não, não estou comparando o Brasil com Portugal, Canadá, Austrália ou nenhum outro país. São realidades diferentes. Mas a seriedade com que encaramos a pandemia deveria ser a mesma.
2) Sei o quanto o fechamento tem destruído empresas e empregos. Também dependo do funcionamento da cidade para pagar as contas. Mas estamos vivendo uma guerra. Quanto mais nos cuidarmos, mais rápido tudo isso vai passar. O importante agora é sobreviver.
3) Recomendações de tratamentos precoces só serão aceitas se vierem também nas versões em inglês, francês e espanhol. O sucesso de uma descoberta desta magnitude não pode ficar restrito aos rincões do Brasil. Tem que ser partilhado com o mundo.
4) Menções à cloroquina, por sua vez, deverão vir acompanhadas de receitas de chá de quebra-pedra e simpatias da Tia Marianinha, infalíveis também para calo e mau-olhado.

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Centelha…

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Ele aguardava na sala de espera há quase meia hora quando ela chegou. Vestia um tailleur pérola que delineava seu corpo esbelto. A maquiagem que realçava seus olhos verdes não era capaz de esconder o olhar vacilante. Conseguia, no entanto, se equilibrar com elegância sobre os saltos agulha recém-adquiridos. Ele tentou não sorrir ao vê-la. Não conseguiu. Ela respondeu com um aceno de cabeça quase imperceptível e endureceu o semblante. Sentou-se na poltrona em frente à dele, cruzou as pernas bem torneadas e abriu a bolsa em busca do celular.

A secretária lhes serviu café e informou que a reunião começaria em breve. Ambos haviam concordado em procurar um único advogado para a abertura do processo de divórcio. Sempre se deram bem, não existiriam motivos para disputas ou litígios. Entre um gole e outro, ele perguntou pelas meninas. Ela, pela sogra, a quem tinha como mãe. Seguiram-se longos minutos de um silêncio constrangedor que ela, por fim, decidiu quebrar:

– Li o seu conto.
– Qual deles?
– “Subindo pelas paredes”, ou coisa parecida.
– Gostou?
– Sim.
– Que bom.
– Literal, né?
– Achou?
– Sim, bem diferente dos outros.
– Diferente como?
– Sei lá, as imagens são tão palpáveis.
– Palpáveis? Se passa num sonho.
– E a descrição das imagens de um sonho não podem ser palpáveis? – perguntou, revirando os olhos.

Ela detestava quando ele dizia o óbvio para sustentar seus pontos de vista. Ele, por sua vez, não tinha paciência com sua dificuldade em ir direto ao assunto. Ela continuou:

– A personagem parece bem apaixonada.
– Deu essa impressão?
– Por quê? Não está?
– Não pensei nisso quando escrevi.
– Pensou em quê?
– Ué, numa mulher decidida, que quer se libertar, viver novas experiências, essas coisas.
– Principalmente na cama, né?
– Também. Algum problema?
– Nenhum. Mas quando estávamos juntos você escrevia sobre esses assuntos com mais cerimônia.

Agora quem revirou os olhos foi ele.

– Não tem nem duas semanas que eu saí de casa. Quando comecei a escrever ainda estava lá.
– Pior ainda.
– Pior ainda por quê?
– Porque claramente não foi em mim que você se inspirou.
– Não me inspirei em ninguém.
– Ah, conta outra.
– Eu sempre escrevi sobre relacionamentos, você sabe.
– Mas muito pouco sobre sexo.
– Várias e várias vezes. Você está sendo seletiva por conveniência.
– Não estou não. Comigo era no máximo um “papai e mamãe” velado e olhe lá.
– Que bobagem é essa? A gente nunca teve pudores na cama.

Ela engasgou. Tinha que admitir que aquilo era verdade.

– Não estou falando da gente. Falo de mim como personagem dos seus textos.
– E quem disse que era você?
– Ah, não? Quem era, então?
– Eu sou escritor. Eu invento personagens.
– Não me venha com essa. Você sempre me disse que se inspirava nas pessoas.
– Me inspiro nas características que observo. Só isso.
– Pois é, que tipo de piranha você anda comendo que gosta de se lambuzar de mel?

Ele ameaçou se levantar, mas recuou.

– Nem vou responder. Você sabe que eu não gosto de mel.
– Mas essa última sirigaita parece que conseguiu mudar seus gostos.
– Já disse que aquilo é um personagem.
– Garanto que era chantilly e você trocou por mel só pra disfarçar.
– A única vez que usei chantilly numa transa foi com você e há uns dez anos.

Ela suspirou. Olhou em volta para se certificar de que ninguém os ouvia.

– Pois é. E nunca escreveu uma linha a respeito.
– Trabalho com contos e crônicas. Não tenho blog de dicas sexuais.
– Mas parece que vai começar um. Fiquei horrorizada com aquela descrição.
– Que descrição?
– Você sabe.
– Não faço ideia.
– Da língua. Não parece seu estilo.
– A língua lambe? Intertextualidade pura. Mérito do Drummond.
– Carlos Drummond de Andrade?
– Ele mesmo.
– Não conhecia.
– Pesquisa aí. É curtinho.

Ela pegou o celular e leu o pequeno poema. Tentou se conter, mas seus olhos brilharam.

– Nossa. Forte, né? Então o mel…
– É só uma metáfora. Criei um paralelo com as pétalas.
– Puxa, ficou muito bom.
– Obrigado.
– Então… não se inspirou em ninguém mesmo?
– Já disse que não.
– E você continua não gostando de mel?
– Detesto.

Ela hesitou por um momento, levantou os olhos e disse:

– E de chantilly, ainda gosta?
– Cada dia mais – respondeu, num sorriso.

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