Via sacra…

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‘Amedrontadas, as mulheres baixaram o rosto para o chão, e os homens lhes disseram: “Por que vocês estão procurando entre os mortos aquele que vive? Ele não está aqui! Ressuscitou! Lembrem-se do que ele disse, quando ainda estava com vocês na Galileia: ‘É necessário que o Filho do homem seja entregue nas mãos de homens pecadores, seja crucificado e ressuscite no terceiro dia’ “. Então se lembraram das palavras de Jesus.’
Lucas 24:5-8

As Semanas Santas da minha infância foram passadas no sítio do meu padrinho. Nossas confraternizações seguiam ritos tão ou mais sagrados que os praticados na igreja. As quintas-feiras começavam com a recepção das diversas famílias, abastecimento das geladeiras e definição dos quartos. Prosseguiam com o desfile de colchões ao sol para as crianças que se amontoariam na sala, e terminavam na ceia – que de santa nada tinha -, sempre regada a cerveja, refrigerante e piadas que fariam os apóstolos corarem antes do primeiro gole de vinho.

As sextas-feiras eram dedicadas à produção do capelete que seria consumido no domingo. Uma verdadeira linha de produção se formava e os responsáveis por cada etapa se repetiam. Preparação, sova e abertura da massa eram tarefas masculinas. Tempero, molhos e recheios cabiam às mulheres. A montagem acabava com o sexismo e contava com a participação valiosa das crianças, especialistas em criar formas diferentes na massa para depois tentar localizá-las nos panelões.

Os sábados começavam com a malhação do Judas. O boneco em tamanho natural tinha sido finalizado na véspera, incumbência das avós costureiras (exceção feita àquelas que tinham alergia à palha que servia de enchimento). A grande fogueira era precedida da abertura do testamento de Judas, sempre lido e escrito pelo meu pai. As 30 moedas de prata não faziam parte do inventário. Características, peças de roupa e até partes do corpo do traidor eram os bens cobiçados. O fígado, por exemplo, era destinado aos bêbados, os pulmões, aos fumantes, os olhos, aos míopes e as tias solteiras ficavam com o… bom, vocês captaram a ideia.

Os domingos, claro, eram os dias mais aguardados. Levantávamos cedo, ansiosos pela caça aos ovos de Páscoa. Passávamos a manhã correndo de uma ponta a outra do sítio, seguindo pistas que levavam a mais pistas. No final, os ovos estavam sempre bem perto da casa. Lembro-me até hoje do acréscimo de estima que sentia ao ser capaz de desvendar enigmas tão complexos. O delicioso capelete, servido em duas versões – caldo e bolonhesa -, tinha o gosto amargo da despedida. Ao entrar no carro, começava a contagem regressiva para a Páscoa seguinte.

As Semanas Santas da minha infância nunca tiveram missas, jejuns ou penitências. Mesmo assim, jamais foram pagãs. Uma oração era ouvida a cada brinde. O perdão se esgueirava por entre sorrisos e abraços. As gargalhadas emitiam agradecimentos à vida. O preparo do nosso pão de domingo era pura comunhão.

Eu cresci e acabei me acostumando às mensagens de luto postadas nas Sextas-feiras da Paixão. Homenagens ao calvário de Cristo, o Filho de Deus que morreu por nós e ressuscitou no terceiro dia. Reflexões pesadas, doídas, sem a leveza que meus olhos infantis testemunharam.

Hoje, mais uma vez, as mensagens de luto pipocam na minha TL. Poucas, entretanto, falam de Cristo. Ainda mais doídos, repetem-se os lamentos pela perda de pais, irmãos, filhos e amigos. Pessoas que viviam seu próprio calvário, enquanto tantas outras desdenhavam da gravidade de seu sofrimento. Pessoas que dependiam das máscaras de oxigênio enquanto tantas outras se recusavam a usar aquelas que evitariam que seu veneno se alastrasse. Pessoas que não puderam despedir-se dos seus enquanto tantas outras eram incapazes de conter sua ânsia por encontros desnecessários.

Hoje, de cabeças baixas, procuramos entre os mortos. Choramos pela chance que não tiveram. Choramos por quem deixaram. Na dor, buscamos sinais de ressurreição. Não a das vidas que perdemos. Quase trezentas e trinta mil só no Brasil, desde a última Páscoa. Não, essas jamais retornarão. A ressurreição que buscamos é a que nos resta. É a que nos permitirá viver daqui por diante.

Vão e anunciem que a esperança há de renascer, como Fênix, de suas próprias cinzas. Renascer contra todas as probabilidades, aniquilida que fôra. Renascer apesar da escuridão que domina boa parte do mundo. Apesar dos olhos fechados diante de um sol que insiste em brilhar. Apesar da miopia que distorce as análises, e da vilania que a estimula. Apesar de nossos olhos de criança terem adormecido.

Que a ressurreição comece na palavra…

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