Concreto…

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“Antes cair das nuvens que de um terceiro andar.” (Machado de Assis)

Não era tarefa fácil subir aquelas escadas. Os degraus – incompatíveis com minhas pernas curtas – insistiam em me empurrar de volta. Agarrava-me ao corrimão de minha mãe. “Só mais dois lances e estaremos lá em cima”. A subida nos levou a um chão ainda úmido. Laje nova que se estendia feito planície diante dos meus olhos. O horizonte era, pela primeira vez, uma reta. Meus passos vacilantes notaram a dureza do pavimento, disposto a tolerar todos os fardos. Do alto do colo que me servia de guarda-corpo, pude acompanhar o desfile de formas geométricas nos telhados das casas vizinhas. Encantei-me por aquele piso que flutuava.

Não precisei de auxílio para subir as escadas seguintes. Cresci, mas o maciço projetado sobre o vazio continuava a me fascinar. Aproximei-me, ainda tímido. Cerimônia tentava – em vão – disfarçar o flerte. Buscava a intimidade que me permitisse descobrir essências, conjurar balanços, desvendar fissuras. A densidade de sua leveza me intrigava. Jurei um dia também ser capaz de aprisioná-lo ao solo e libertar seu voo.

Tocou meu coração perceber sua alma frágil, encarnada em aço. Dali vinha sua força. Deixei-me seduzir pelas possibilidades das formas, impossíveis de serem domadas. Passamos a permear entendimentos, confidenciar patologias, dividir esforços. Moldados na inflexibilidade do mundo, reconhecemo-nos esqueletos em construção. Ainda não conhecia suas minudências e individualidades. Receava não ter medo de descobri-las. Os altos e baixos acabaram por me retrair. Aprendi na marra a respeitar seus momentos.

Pedi ajuda aos livros, na tentativa de desvendar os segredos da levitação. Encontrei apenas rascunhos. Ávido pelo conhecimento, desviei os olhos das mais elementares lições. O grande aprendizado veio quando retirei as escoras que me sustentavam. Deformei-me. Longe de atribuir autoridade, o capacete parecia me distanciar da promessa feita. Juntei-me à matéria bruta. Indaguei polímeros, ouvi silicatos, provei a consistência das misturas. Aprumei-me. O tempo da cura se aproximava.

Subi os degraus mais uma vez. Despido de certezas, toquei a forma nua. A madeira me desafiava a acompanhar desníveis e reentrâncias. Confrontei-a. Cético, testemunhei a alma invadir um corpo em formação. Uma tela de esperança surgiu sob meus pés. Jatos viscosos logo a esconderam. O milagre havia se consumado. Contemplei o horizonte, outra vez plano. Enxuguei o suor dos olhos. Meu sonho era concreto.

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