A felicidade é um legado…

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Dizem que, para que o coração e a alma possam superar um evento doloroso, é importante que os ciclos se fechem. É importante que sejam vencidos todos os traumas, que sejam revistas todas as questões que ainda provocam angústias, que sejam revisitados os lugares que atiçam memórias e lembranças intencionalmente deixadas de lado.

No meu caso, todos os muitos lugares marcantes pela constante presença das minhas maiores referências de vida haviam sido devidamente enfrentados, com maior ou menor dificuldade. Entretanto, a ideia de voltar em alguns dos nossos destinos de viagens sempre me causou um certo frio no estômago. Seja pela emoção que um determinado local tenha lhes causado, seja pela intensidade dos momentos vividos junto a eles, seja pelo fato de que muitas dessas viagens foram feitas recentemente e estão ainda muito vivas na minha lembrança. Por isso, sei que os lugares que conhecemos juntos nunca mais poderão ser vistos da mesma forma. Jamais serei capaz de voltar ao Lago di Como sem deixar de ouvir o som de uma melodia inesquecível. Os pratos daquele restaurante em Lisboa, sobre o qual já escrevi, jamais terão o mesmo sabor. Um novo espetáculo do Natal Luz de Gramado jamais poderá repetir o mesmo brilho. E o Grande Hotel de Araxá, onde nos hospedamos poucos meses antes da rápida partida deles, jamais será considerado simplesmente uma boa opção não muito longe de casa. E é aqui, revisitando o local da nossa última viagem, que me encontro agora.

Na verdade, não foi com a intenção de fechar ciclos que voltei. Voltei porque não dispunha de muitas opções de vagas, de datas e, naturalmente, de pré-requisitos que atendessem às demandas de uma família com filhos em idades tão distintas. Para ser sincero, mesmo diante de pouquíssimas opções, relutei bastante antes de fechar a reserva e dizer aos meninos para onde iríamos no início do ano. Acabei cedendo porque, afinal, se me dispusesse a evitar lugares que ficaram marcados pelos momentos inesquecíveis que passei junto a meus pais, não teria sequer como me sentir feliz em minha própria casa. Definido o destino, acabei adotando – dissimulada e convenientemente – a desculpa da conclusão de ciclos, sem dúvida uma razão muito mais nobre e corajosa do que uma mera questão de logística.

Independente da motivação que tenha me guiado, aqui estou disposto a começar mais uma sessão de autocatarse. E a inicio repetindo a mesma trilha feita há dois anos e meio em torno do lago. O reflexo da fachada do hotel, o silêncio da mata que margeia a vereda, o aspecto dos bancos e do pergolado em frente à Fonte Dona Beja, nada parece ter mudado. As cores, os perfumes, os sons são exatamente os mesmos. As sensações, entretanto, são completamente diferentes. Uma das inúmeras árvores do parque debruça seus galhos frondosos sobre a placidez das águas. Por alguma razão, ela me parece particularmente familiar. Talvez tenhamos nos recostado no seu tronco antes de seguir caminhando. Talvez seus galhos tenham sido objeto de admiração daqueles que sempre adoraram, como ninguém, a combinação de água e mata nativa. Talvez eu mesmo tenha associado a beleza daquela imagem ao meu sentimento de êxtase por poder estar caminhando ao lado deles.

Completo a trilha e entro no salão principal das Termas. O amplo e lindo cômodo circular tem, no teto e no chão, seus pontos de maior destaque. A luz do sol continua revelando a beleza dos vitrais coloridos, e estes continuam suavizando os raios que penetram naquele ambiente místico. O belo octograma no piso de mármore continua emprestando um simbolismo único às imagens que ali presenciei. Hoje, no centro, um violonista traduz em música uma atmosfera normalmente intangível. Ontem, no mesmo centro da estrela de oito pontas, a imagem dela em oração revela com clareza que o conceito de infinito foi compreendido e apaziguadamente consentido.

Saio dali meio atordoado e continuo meu passeio pela memória, visitando as diversas salas bem conservadas de um hotel que testemunhou incontáveis histórias ao longo de décadas. Caminho pelos corredores que levam aos restaurantes, ao teatro, aos salões de baile, aos quartos decorados com a mesma mobília dos tempos em que o Grande Hotel era considerado um ícone da hotelaria nacional. À noite, chego no grande salão para o primeiro jantar. A disposição do buffet permanece a mesma. Procuro uma mesa no lado oposto ao que costumávamos nos sentar. O sabor dos pratos e dos doces mineiros também não mudou muito. Como sempre acontecia, nossa mesa não fica ocupada por muito tempo. Os meninos já buscam encontrar suas turmas e procuram passar o menor tempo possível com aqueles que insistem em colocar regras em tempos de férias. Não ouso pedir uma garrafa de vinho. Não na primeira noite. Brindes com vinho são lembranças fortes demais. Quem sabe amanhã?

Termino o primeiro dia por aqui com o coração mais leve. Um ciclo teria se fechado? Existe mesmo algum sentido nisso? Sinceramente, não sei dizer. Talvez meu coração leve signifique algo diferente. Que voltar a lugares como este apenas reforça a certeza do quanto meus pais foram verdadeiramente felizes. E o quanto cada momento junto a eles foi único e inesquecível. Portanto, mais importante do que se fechar um ciclo é estar pronto para se abrir o próximo. Que cada viagem que eu fizer ou refizer possa me lembrar que a vida continua e vale a pena ser vivida. Que eu sempre busque vivenciar vários momentos únicos e inesquecíveis para que, um dia, meus filhos sintam também alegria ao recordá-los. Talvez, então, eles possam entender a dimensão do amor que une pais e filhos. E talvez, finalmente, eles possam sentir seus corações também mais leves ao perceber que a saudade e as lágrimas não são incompatíveis com a alegria das lembranças. São apenas temperos e nuances de uma coisa extraordinária chamada vida.

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