Limpeza pesada…

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– Prezados, hoje tem que ser na base do mutirão. Tem sujeira espalhada pra todo lado.
– Nem me fale, Alexandre. Vi que você começou a limpeza ontem mesmo. Sua determinação me impressiona.
– Caio, eu tinha que dar o exemplo. Sei que sou inspiração pra muita gente, inclusive pra jovens como você.
– Confesso que estou com um pouco de preguiça, pessoal. Essa rotina de limpeza cansa. Não prometo fazer muito esforço pra limpar debaixo do tapete não.
– Qual é, Rodrigo? Vai roer a corda agora? Somos um time ou não? E desde quando a gente limpa debaixo do tapete?
– Força de expressão, Augusto. Somos um time sim. Fica tranquilo, é só um desânimo passageiro. Amanhã prometo que terei de volta toda a minha gana de passador de pano.
– Ótimo. A gente precisa de união.
– Gente, cadê o Guilherme e a Ana Paula? Até agora não deram as caras.
– Não se preocupem. Sabemos como eles são. Quando a sujeira é grande demais, sempre esperam a poeira baixar.
– É verdade, Alexandre. E aposto que a AP vai alegar que está mais ligada na faxina americana.
– Bom, a sujeira é das grossas por lá também.
– Foco, pessoal. Foco. Enquanto a gente fica nesse lero-lero o pó só acumula.
– Quem me preocupa mesmo é o J.R. Ele jogou a merda toda no ventilador ontem, vocês viram?
– Calma, Rodrigo. Ainda tá muito cedo pra chegarmos a uma conclusão. Da outra vez foi a mesma coisa e ele voltou pra turma com o paninho entre as pernas.
– Tomara que você tenha razão, Caio. Mas lembre-se de que já perdemos bons faxineiros ao longo do último ano.
– Não adianta a gente entrar nessa paranoia agora. Diante do trabalho, os preguiçosos somem. Vamos dar tempo ao tempo.
– Não temos muito tempo não. Olhem só, nem o Allan apareceu. E ele é sempre o primeiro. Tô ficando preocupado.
– Pois é. É daqueles que não têm vergonha de se contorcer pra limpar até as sujeirinhas mais difíceis. Tipo o Alexandre, só que bem mais tosco.
– Prezados, nossos esforços têm que ser muito coordenados agora. Teremos que acumular tarefas, pelo menos até que o resto da turma apareça.
– Perfeito, Alexandre. O comando é seu.
– Pois bem. Caio, você poderia passar pano pro currículo do nomeado.
– Combinado. Vou limpar e ainda dar um lustro.
– Excelente. Como o Rodrigo está desanimado, ele fica a cargo de passar pano pro desapontamento do eleitor. Sujeirinha fácil de limpar.
– Deixa comigo. Limpo e ainda toco o berrante.
– Você é mesmo bom nisso, Rodrigo. Agora, Augusto, você prefere ficar a cargo da limpeza da reunião com o Gilmar ou do abraço efusivo no Toffoli?
– Alexandre, sabe o que é? Minha coluna está me matando nesses dias. Não sei se dou conta de todo esse contorcionismo.
– Augusto, sou mais velho que você e consigo me enfiar em qualquer greta pra passar um pano bem passado.
– É que você já está aposentado. Faz isso pelo amor à faxina. E a sua coluna é bem mais maleável.
– Então passa pano pras pedaladas, pro Renda Brasil e pro desfalque no Fundeb. Pode ser?
– Farei o que puder.
– Já vi que sobrou pra mim a sujeira mais encardida. Alguma sugestão, prezados?
– Água sanitária e um pouco de soda cáustica, Alexandre. Só o pano ali não vai dar nem pro começo…

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Consultoria grátis…

– Puff… puff… puff…
– Cansou?
– Tô morto.
– Mas você tá só começando.
– Eu sei. Não sei como você conseguiu manter o rítmo por tanto tempo.
– Manter? Eu fui só aumentando, esqueceu?
– Como poderia? Você é minha inspiração… puff… puff…
– Como o mundo dá voltas, né?
– É. Mas eu vou até o final.
– Será? Eu também achava.
– Mas você estava sozinha. Não tinha ajuda nenhuma. Olha só quanta gente está me incentivando.
– É… você tem a companhia de uma turma grande. Mas você sabe que eles também estavam comigo quando eu comecei, né?
– É que eu os trato bem demais. Eles gostam.
– Ah, eu sei que eles adoram ser mimados. Mas experimenta parar de agradar pra ver o que acontece.
– Tô cada vez mais generoso… puff… puff…
– O que você chama de generosidade eles chamam de obrigação.
– Você anda muito pessimista.
– É que eu já vi esse filme.
– Agora é diferente. Até o árbitro da prova eu estou indicando.
– Eu vi. Aliás, parabéns pela escolha. Eu não teria feito melhor. Foi mais uma recomendação deles, né?
– Claro. Só indico gente centrada.
– Isso é verdade. Essa turma toda é bem centrada.
– Olha só, essa conversa tá me fazendo perder o fôlego… puff… puff…
– Desculpa. Longe de mim querer te atrapalhar. Aliás, quanto mais você avançar mais feliz eu fico.
– Puff… puff…
– Vai, força! Você consegue!
– Puff… puff… você vai ficar me incentivando?
– Mas é lógico. Adoro quando os outros seguem meus passos. Ajuda na minha autoestima, sabe?
– Tô sentindo um certo sarcasmo nesse seu papinho…
– Imagina. Falo do fundo do coração.
– Sei. Daqui a pouco você vai me aconselhar a estocar vento também.
– Não, cada um com seu estilo. Eu saúdo a mandioca, você saúda embalagem de cloroquina. O importante é cada um deixar a sua marca na história.
– Puff… puff…
– Bom, vou indo.
– Vai não. Conto com a sua consultoria, talquei?
– Ah, você não precisa. Seus amigos são mais especialistas no assunto do que eu.
– Alguma dica final? Puff… puff…
– Só uma: continua pedalando!

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Uso compulsório…

– Você não vai usar?
– Claro que não.
– Mas assim você não entra.
– Não quero nem saber. Cadê a minha liberdade de ir e vir?
– Ninguém está te proibindo de ir a lugar nenhum.
– Estão sim. Tô sempre sendo impedido de entrar. Nem aqui eu posso.
– Você está sendo impedido porque não está usando.
– Pois é. Estão cerceando a minha liberdade.
– E o respeito às outras pessoas, não conta?
– Não respeito gente frouxa, covarde e submissa.
– Frouxa, covarde e submissa por quê?
– Ora, por aceitar passivamente essas imposições. Fossem por estes estaríamos vivendo no comunismo.
– Cuidado e respeito não têm nada a ver com comunismo.
– Essa gente é que não se dá ao respeito.
– Eu também devo ser comunista pra você.
– Se a carapuça serviu…
– Bom, então vai ficar de fora.
– Ah, mas não vou mesmo. Nem que tenha que chamar a polícia.
– Você acha que a polícia vai lhe dar razão?
– Deveria. Duvido que um policial aprove essa barbárie.
– Não importa. Regras existem para serem seguidas.
– Maldito STF comunista. Se tudo estivesse nas mãos do presidente nada disso estaria acontecendo.
– Pois é, vai usar ou não vai?
– Não!
– Acho que sei qual é o seu problema. Você não tem nenhuma, né?
– Claro que eu tenho. Só não quero usar.
– Então mostra.
– Não preciso te provar nada.
– Tá escrito ali que não precisa ser grande.
– Já disse que não.
– Bom, eu estou entrando.
– Eu que não perco o meu tempo com isso.
– Beleza. A gente se vê em outras por aí…

“Página do Fernando. Exige-se um mínimo de capacidade de discernimento para participar”

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Que dureza…

Kid Bengala, o famoso ator pornô, lançou ontem sua campanha para vereador na capital paulista. Seu slogan, como não poderia deixar de ser, é “pau pra toda obra” e seu número termina com 33, referência direta ao tamanho de sua fé (33 é a idade de Cristo, gente!).

Natural de Santos, Kid optou por concorrer por São Paulo por uma mera questão de sonoridade. Que ele vai trabalhar duro, todo mundo sabe, mas será que seus atributos são grandes o bastante para transformá-lo em um bom parlamentar?

Pergunto porque, pela força do hábito, talvez seja difícil evitar que ele se meta em confusão e acabe enfiando o pé na jaca. Kid pode até querer mudar de pau pra cavaco, mas não será fácil convencer o eleitorado de que agora é um homem sério que não fica mais gozando com a cara dos outros.

Em contrapartida, ele tem tudo pra entender os desejos da população e lançar mão de sua inata facilidade de penetração nas comunidades mais carentes. Ele já provou que pau que dá em Chica acaba dando em Francisca.

Kid entra na campanha disposto a acabar com o preconceito de que sua classe não seja bem dotada de intelecto. Seus diálogos monossilábicos e repletos de interjeições estão sendo burilados para passar a confiança necessária ao eleitor. Ele já aprendeu, por exemplo, a trocar os “ai”, “ohh” e “ahhhh” pelo eficaz “e daí?”, muito em voga nos dias de hoje.

Ninguém duvida de sua capacidade de botar a boca no trombone e a mão na massa mas, convenhamos, lidar com regulamentos, leis e anseios da população vai exigir muito mais de sua cabeça reconhecidamente privilegiada.

Valendo-se de sua enorme experiência, o lazer das pessoas será sua maior preocupação e ele promete não poupar esforços para levar seus eleitores ao delírio com a sua ampla plataforma erigida nos mais rígidos preceitos humanistas.

Em um país com tanta gente com vocação pra puxa-saco de político, a candidatura de Kid tem tudo pra ser um sucesso. Afinal, culhão o homem já mostrou que tem!

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Narciso e seu espelho…

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A chamada no portal de notícias era impactante: “Caetano Veloso largou o liberalismo após conhecer Jones Manoel”. Confesso que fiquei intrigado. Quem seria Jones Manoel e que métodos de convencimento teriam sido capazes de fazer um dos grandes ícones do liberalismo brasileiro abandonar suas mais arraigadas crenças? Que segredos estariam agora guardados sob os muitos cabelos brancos na fronte do artista?

Pensei em quantas frases de Caetano a favor do livre mercado, do Estado mínimo e das garantias às liberdades individuais deixariam de ser pronunciadas daqui por diante. Pensei no que seria de Felipe Neto, Greta Thunberg, Chico Buarque e outros liberais em formação vendo seu mestre desertar. Pensei na população brasileira – quase toda adepta do liberalismo – a também se questionar: “por que não? Por que não?”

Não tive outra escolha a não ser assistir àquele vídeo. Li, em seguida, todas as informações que encontrei na tentativa de entender como alguém tão intrinsecamente liberal como Caetano pôde ser cooptado por uma ideologia tão distante de seus valores mais caros. Os argumentos do jovem youtuber teriam sido suficientes ou haveria alguma força estranha no ar?

Descobri que Jones Manoel é um militante comunista do Recife que cresceu com o peito cheio de amores vãos. Seu discurso inovador, capaz de arrastar olhares como um ímã, o transformou em referência para muitos. Humilde, ele se autodeclara um intelectual-marxista-leninista, fã de Che, Fidel, Cuba e Coreia do Norte. Nada poderia ser mais moderno. Seus posicionamentos em relação a Stalin também surpreendem, e sua admiração não o impede de fazer corajosas ressalvas aos pequenos equívocos cometidos. Um verdadeiro bálsamo benigno, um guru, um porto seguro em tempos de trevas.

Convenhamos, diante de tamanha lucidez, não é de se espantar que Caetano tenha aberto sua dura cabeça liberal. Eles, que a princípio se conheceram de forma virtual, tornaram-se grandes amigos. Quando Caetano convidou Jones para seu programa de entrevistas na plataforma Mídia Ninja – a Meca dos liberais brasileiros – a relação se estreitou. Ali, ambos viram, um no outro, o avesso do avesso do avesso do avesso. Ali, diante das câmeras, Caetano se transformou. Ali, tudo ficou claro como o sol sobre a estrada é o sol sobre a estrada é o sol.

Agora, Caetano e Jones são uma só voz. Ambos querem cantar que é pro mundo ficar odara. Ambos querem que os homens parem de exercer seus podres poderes. Ambos querem que todos vivam sem lenço e sem documento, nada no bolso ou nas mãos. Ambos querem que, um dia, o ideal comunista possa ser colocado em prática, e todos possamos cantar juntos nosso novo hino: “Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito ainda mora…”

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A liberdade da ignorância…

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Muitos líderes proferiram frases famosas sobre a liberdade. Churchill, Lincoln, Kennedy, Tancredo, Gandhi e diversos outros, enalteceram a importância da liberdade para o ser humano e para as sociedades. Nenhum deles, entretanto, deixou de reconhecer que os conceitos de liberdade e de responsabilidade sempre estiveram intrinsecamente ligados. Nenhum deles afirmou que toda pessoa é livre para fazer o que lhe der na telha, doa a quem doer.

Afinal, existem leis, regras, normas e códigos de conduta que regem toda e qualquer coletividade. Existe o outro, e os desejos individuais estão sempre subordinados aos limites coletivos. Existem, acima de tudo, as consequências.

Hoje, no Brasil, temos um líder (?!) que acredita que ser livre é se achar no direito de não usar máscaras em ambientes fechados, de não respeitar distanciamentos, de não se vacinar. Temos um líder (??!!) que não se preocupa com as incontáveis vítimas decorrentes da tal “liberdade” por ele defendida. Temos um líder (???!!!) que, não satisfeito em propagar absurdos, faz questão de destacá-los em propagandas oficiais, como se tais absurdos representassem algo digno ou memorável. Temos um líder (????!!!!) que não tem a mínima noção dos conceitos de liberdade, de sociedade, de bem comum, de liderança.

O mundo inteiro conta os dias para a chegada de uma vacina que possa nos trazer de volta a liberdade plena. Enquanto isso, o nosso líder (?????!!!!!) usa toda a sua liberdade de ser imbecil para insuflar outra turma ainda mais imbecil a não se proteger e, principalmente, a não proteger seus semelhantes.

Pelo menos tenho (ainda) a liberdade de poder chamar o nosso líder (??????!!!!!!) de verme, criminoso e filho da puta!

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Um dia na Flique…

Flique

Confesso que o convite me pegou de surpresa e a ficha demorou a cair. Quando caiu, inseguranças que imaginei superadas vieram à tona: teria o que vestir? Saberia me comportar? Que assuntos poderia abordar? Conseguiria disfarçar meu nervosismo?

Chega o dia. O convite era mesmo pra valer. Mal adentro e me deparo com o André e o Helinho diante de uma pintura abstrata na parede. Um filosofa sobre a forma intuitiva oculta no borrão multicor e o outro só quer saber onde está o garçom. Nelson, logo atrás, dá uma sonora gargalhada.

Mais adiante, Cássio e Sonia assistem emocionados a uma ária de Don Giovanni. Fico com a impressão de que a harmonia da ópera foi ofuscada pela suavidade da dupla.

Ao lado deles, Patricia, Fernando e Mentor discutem a viabilidade do equilíbrio psíquico da humanidade. Esforço-me na tentativa de acompanhar a rapidez das argumentações. Desisto. É mais fácil aceitar o primeiro canapé.

No centro da sala, em um patamar elevado de madeira de lei, Eduardo e Carlos sentam-se lado a lado em uma grande escrivaninha. Debruçados sobre uma infinidade de papeis, parecem felizes com os sonhos que se dispõem a realizar.

Na mesa lateral, Daniella e Calu dividem um cappuccino enquanto selecionam fotografias de tirar o fôlego. Penso em me juntar a elas. O papo noite adentro estaria garantido. Decido explorar primeiro todos os cantos daquele recinto, ainda mais fascinante do que imaginara.

De um ponto da sala, vejo simultaneamente cada um daqueles rostos. Um arrepio percorre meu corpo quando meu olhar de admiração percebe o instante de reciprocidade na troca de olhares. Sou cativado pela disponibilidade, pelo acolhimento e pela simplicidade de todos. As obras ali criadas – que já me guiavam de alguma forma – ganham agora novas camadas, novas cores, novas texturas.

Agradeço.

Está na minha hora. Tem muita gente na fila para entrar. Um dia, quem sabe, eu volto…

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Cronologia…

Calendário

Setembro de 2018…

– Cara, você vai votar no mito, não é?
– Se você se refere ao Bolsonaro, não vou não. Acho que temos opções bem melhores.
– Que isso? Ele é o único capaz de tirar o PT. Vai jogar seu voto fora? Os outros candidatos não têm chance alguma.
– Vou votar em quem considero o melhor.
– Ele é o melhor disparado. E os filhos dele? Só gente boa e honesta. Pensa bem. Vai um chocolate aí?

Janeiro de 2019…

– Viu o ministério do homem? É mito ou não é? Guedes, Moro, Mandetta, Pontes, Bebianno, só gente técnica. Acabou o toma-lá-dá-cá e a Lava-Jato vai colocar todos os corruptos na cadeia.
– Pois é, tomara que dê certo. Mas já descobriram irregularidades do filho dele.
– Sabia que ia começar a perseguição. O deputado petista movimentou quarenta vezes mais e ninguém falou nada. Tô tomando um suquinho de laranja, aceita?

Maio de 2019…

– O mito é o melhor presidente da história deste país.
– Você acha mesmo? Achei muito estranha essa história do Bebianno com o tal do zero dois, o Coaf saiu das mãos do Moro e a educação está um desastre. Até o ministro caiu.
– Bebianno era traíra e comunista. Sempre soube disso. E o novo ministro é bom pra cacete. Vai mudar a educação deste país. Pede esse yakissoba aqui, tá ótimo.

Outubro de 2019…

– Você não vai dar o braço a torcer nunca? O Bolsonaro é fera.
– Fera? Recorde de queimadas na Amazônia, briga com os líderes de metade dos países da Europa, briga com aliados e até com o próprio partido.
– E a reforma da previdência?
– Qual? Aquela que o próprio presidente desidratou e que não contempla os militares?
– Tá com saudade da roubalheira do Centrão, né? Você nunca tá satisfeito. Prova este açaí, tá uma delícia.

Janeiro de 2020…

– Este será o melhor ano da nossa história, pode ter certeza. Bolsonaro vai fazer o Brasil deslanchar.
– Ele colocou um PGR que não tem nenhum respaldo da corporação, quis trocar o diretor da PF, a correção do Enem está uma zona, o secretário de cultura parece a reencarnação de Goebbels e o tal de coronavirus promete fazer estragos.
– Você só olha pro lado negativo. E o vírus não me assusta. Temos o melhor ministro da Saúde do mundo. Quer tomar um leite? Tá geladinho.

Maio de 2020…

– O mito tá reeleito. Você viu o vídeo da reunião ministerial?
– Sim. Vi também que os ídolos Moro e Mandetta viraram comunistas, que o Centrão de ladrão passou a aliado, que o comando da PF finalmente foi trocado, que a Lava-Jato virou fumaça e que o presidente não dá a menor bola pra pandemia.
– Não tem que dar bola mesmo pra esse vírus chinês fabricado. Consegui um monte de comprimidos de cloroquina. Quantos você quer?

Agosto de 2020…

– Viu como a popularidade do mito cresceu?
– Vi. Ele fechou a boca, né? Mas a equipe econômica está se desintegrando.
– Ele sabe o que faz. Foi nele que a gente votou, não no Guedes. Olha como ele está sendo recebido no Nordeste.
– Pois é, campanhas pelo país, dinheiro distribuído para a população, governabilidade… Não te lembra alguém não?
– Não tem nada a ver. Pode anotar: em 2022, o mito será eleito novamente.
– Com a oposição que ele tem, infelizmente tenho que concordar com você. Ah, não esquece do seu licorzinho de jerimum, talquei?

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Hoje…

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Hoje, o sorriso tem mais doçura
A troca de olhares tem mais cumplicidade
O som do silêncio tem mais liturgia
As curvas do rio têm mais relevância.

Hoje, a palavra tem mais sensatez
O ícone tem mais reverência
O discurso tem mais emoção
O caminhar de mãos dadas tem mais segredos.

Hoje, o vinho tem mais corpo
A pizza de aliche tem mais simetria
O caldo de capelete tem mais sabor
A laranja sem casca tem mais perfume.

Hoje, o olhar tem mais gratidão
O otimismo tem mais pretextos
O conselho tem mais sapiência
O papo noite adentro tem mais leveza.

Hoje, o ombro tem mais amparo
A dúvida tem mais luz
O perdão tem mais tenacidade
O impulso de amar tem mais infinitude.

Hoje, a vida tem mais mansidão
Os questionamentos têm mais respostas
O ser tem mais onisciência
O bom dia tem mais confiança.

Hoje, a gargalhada tem mais ânimo
O beijo tem mais espontaneidade
O abraço tem mais aconchego
As mãos entrelaçadas têm mais história.

Hoje, o retrato tem mais mobilidade
A voz tem mais ressonância
O dia tem mais luminosidade
O encontro com o mar tem mais plenitude.

Hoje, a lágrima tem mais saudade
Mas o amor tem muito mais vida.

Feliz aniversário, pai!

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Agosto…

Agosto20

Duas horas depois e a pequena sala de espera continuava bem mais cheia do que recomendavam as autoridades sanitárias. A televisão ligada em uma das paredes exibia um daqueles cultos nos quais o pastor assume o papel de animador de auditório. O som, entretanto, era tão audível quanto um apito canino.

A trilha sonora reinante no ambiente nada tinha a ver com cânticos e sermões. Mesmo abafados pelas máscaras, só se ouviam sons de espirros e tosses acompanhados do fungar de narizes congestionados. Meu silencioso tornozelo inchado parecia um monge beneditino em um baile funk.

O painel eletrônico de chamada continuava a negar a minha existência, e cheguei a pensar que tivesse cochilado (como se isso fosse possível) quando meu nome fora anunciado. Talvez tenha sofrido um lapso de consciência, como aquele em que quase pedi a uma das atendentes que aumentasse o volume da TV.

Já passava de uma da manhã e eu sofria com dor, sono, fome e uma estranha vontade de ser portador de um aparelho para surdez só com botão de desligar. Não havia como piorar, pensei precipitadamente.

– O senhor está aqui há muito tempo? – perguntou-me um homem que fungava três cadeiras à minha frente.

Não sei dizer se o que mais me irritou no comentário foi a possibilidade de interação com alguém com alto potencial de transmissão viral ou o fato de ele ter me chamado de senhor.

– Mais de duas horas – respondi, mantendo meus olhos fixos na TV.

Ele então se levantou e caminhou em minha direção, fazendo com que eu me juntasse às colegas de trabalho do pastor em uma prece pela divina instauração de um perímetro de segurança. A fervorosa oração não surtiu o efeito desejado e ele parou em pé bem ao meu lado.

– Não trouxe minha trena mas garanto que não estamos a um metro e meio de distância um do outro – argumentei com indisfarçável ironia.

– Ah, me perdoe – disse ele se afastando um pouco. Não aguento mais ficar sentado.

Pensei em concordar, mas preferi dar de ombros. Ele continuou:

– Eu sabia que ficaria doente.

– Estamos em época de pandemia, não é? – respondi, já arrependido por ter contribuído com o diálogo.

– Sim, mas não é por isso. É que entramos em agosto. Tudo de ruim acontece em agosto.

Fingi que não ouvi. Continuei com os olhos fixos na TV e passei a enxergar sinais de clarividência até nos olhares esbugalhados dos integrantes daquela plateia.

– Mas não imaginei que fosse adoecer tão cedo – ele continuou. O mês mal começou.

O homem aparentava ter uns 35 anos de idade. Já era grande o bastante para não acreditar em asneiras.

– O senhor – me vinguei – tem algum trauma relativo ao mês de agosto?

– Não só eu, né? O mundo inteiro.

Não resisti e revirei meus olhos escancarando toda a minha impaciência. Ele prosseguiu:

– Todas as catástrofes sempre acontecem em agosto.

Aquilo já era demais. Aproveitei que a imagem do emissário de Deus havia sido substituída por um comercial de cerveja de má qualidade e retruquei:

– Curioso, a Primeira Guerra estourou em julho, a Segunda em setembro, a gripe espanhola começou em março, o tsunami da Indonésia aconteceu em dezembro, as torres gêmeas foram destruídas também em setembro, Cristo – a transmissão do culto acabara de ser retomada – foi crucificado em abril e essa maldita pandemia começou no primeiro trimestre do ano. Alguma coisa contra esses meses também?

– O senhor não precisa se exaltar…

– Senhor é o seu avô! Mais uma coisa, o nome agosto é uma homenagem ao imperador cujo reinado marcou o início da Pax Romana, um grande período de paz e prosperidade do Império Romano. Período de paz, não de catástrofes, entendeu?

– Eu estava apenas tentando puxar assunto. Não me dou bem com o mês, só isso. Mas parece que encontrei um defensor ferrenho. O senh… você nasceu em agosto?

– Não, em novembro. E não tenho motivo algum para defender o mês. Só não gosto de ouvir bobagens.

Contrariado e fungando ainda mais, o homem voltou ao seu assento. Menos de um minuto depois o painel eletrônico anunciou em alto e bom som: Fernando Augusto, consultório 2.

Levantei-me rapidamente e lá fui eu, manquitolando, sonolento e faminto. O que mais me incomodava, entretanto, era a imagem do sorrisinho irônico que o homem me dirigiu quando passei ao seu lado…

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