O motor e o barco…

Casamento-1-1

Há exatamente cinquenta anos, um homem e uma mulher decidiram caminhar juntos. Ela, já com trinta anos de idade, era também três anos mais velha do que ele. Fatos raros na época, e que já demonstravam o quanto essa união sempre esteve à frente do seu tempo. Ele, recém-formado em Direito, depois de anos difíceis trabalhando durante o dia e estudando à noite, não tinha ainda como exercer sua profissão pois era seu emprego como bancário que lhe garantia o sustento. Ela, que passara a sustentar sua mãe com apenas treze anos de idade, jamais teve a oportunidade de cursar uma faculdade. Compensou essa lacuna sendo uma leitora voraz, curiosa e obstinada. Tudo lhe interessava e acabou adquirindo uma cultura admirável, tanto que poucos acreditavam que não tinha chegado a cursar sequer o ensino médio.

Tendo que se virar sozinha desde cedo, ela sempre fora uma guerreira, uma mulher determinada que buscava seus objetivos e que sabia se impor junto aos seus colegas de trabalho, majoritariamente homens. De temperamento diferente, embora tendo enfrentado quase as mesmas dificuldades, ele sempre se distinguira por ser a personificação da doçura. Perspicaz ao extremo, sempre foi consciente do quanto os argumentos eram mais poderosos do que os brados. Assim, se completavam. Ela era o motor. Ele, o barco. E começaram a navegar juntos pelos rios de suas vidas.

Após o casamento ocorrido há cinquenta anos, ela lhe pediu que largasse o emprego e começasse a exercer a profissão pela qual tanto batalhara. Mesmo relutante, foi o que ele fez. Sempre determinada, sustentou a casa sozinha até que ele encontrasse seu caminho profissional. Foi o primeiro dos inúmeros momentos em que ela o levaria, com amor e firmeza, a crescer e a evoluir ainda mais. Eles já se conheciam bem. Ambos vinham do interior. Foram amigos antes de serem amantes. Curtiram fossas amorosas juntos. E adoravam praticar esportes. Órfã de pai desde os sete meses, ela recebeu como primeiro presente dele seu próprio pai, que a adotou como filha. E assim passou a chamá-lo até o fim da vida: paiê. Em retribuição, ela lhe emprestou sua mãe, e foi essa quem deu a ele o carinho maternal que não conhecera na infância, não pela ausência, mas sim pelo temperamento mais sisudo que caracterizava sua mãe.

Seguiram pela vida afora, enfrentaram dificuldades, perderam muitas de suas referências e ganharam outras. Caíram muito, mas sempre se levantavam logo depois. Choraram muitas vezes, mas sorriam muito mais. Tiveram quatro filhos. Quatro homens que ele costumava chamar de seus quatro cachorrões. Quanto carinho e orgulho estavam evidentes naquela brincadeira. Ela sabia que havia nascido para ser mãe e fez dessa tarefa a grande missão da sua vida. Distribuiu amor incondicional, deu limites, foi severa quando preciso, foi meiga e suave a todo instante. Além dos filhos, sempre foi mãe também dos amigos, das namoradas, e principalmente das esposas. Soube transcender como poucas o conceito de maternidade. Ele, guiado pela força de sua companheira de vida, cresceu profissionalmente e pôde propiciar à sua família educação, cultura e lazer. Guiado pela força de sua companheira de alma, cresceu ainda mais como ser humano. Seu olhar se tornou mais doce, suas palavras mais profundas, seu sorriso mais espontâneo, sua alegria mais contagiante, sua sabedoria mais avassaladora.

Nunca tiveram muitos bens materiais, mas sempre foram riquíssimos em amor, em paz, em cumplicidade, em tolerância. Tão forte foram os seus exemplos que a felicidade sempre fez parte daquela família, e sempre fez parte também das famílias que dela se originaram. Mesmo os momentos tristes não eram decorrência da ausência de felicidade. Eles entenderam e mostraram a todos que ser feliz não é um objetivo, é simplesmente a forma como alguém escolhe caminhar. Não é um fim, é todo o meio.

Jamais passaram despercebidos. A cada ano juntos, angariavam um número maior de amigos, de admiradores, de pessoas que se perguntavam como era possível uma família tão numerosa viver em tamanha harmonia. Foram amantes, cônjuges, pais, avós, amigos. Viveram e ensinaram com as palavras e com o silêncio, com mansidão e com persistência, com amor e com mais amor ainda. E foi assim que navegaram pelos rios que a vida lhes proporcionou. Chegada a hora de um deles ir embora, não havia como o outro continuar navegando. Quando o motor deixou de funcionar, o barco já não podia ir muito longe. Na verdade, àquela altura, motor e barco eram um só, absolutamente indissociáveis. Três meses apenas foi o tempo em que permaneceram afastados.

Durante muitos e muitos anos, o dia de hoje foi acompanhado de sorrisos, de abraços, de beijos, de brindes, e de um cartão escrito em nome dos quatro cachorrões. E, durante muitos e muitos anos, os quatro cachorrões sonharam poder comemorar as Bodas de Ouro dessa união iluminada. Planejaram fazer uma grande festa, repleta dos amigos cujas vidas foram tocadas de forma definitiva pelo amor e pela bondade de cada um deles. Teria sido difícil encontrar um lugar onde coubessem todos juntos. Uma celebração a um casal que guiou, que abençoou, que orientou, que amou e que viveu intensamente. Por pouco isso não foi possível…

Hoje, no lugar dos sorrisos, dos abraços, dos beijos e dos brindes, fica a inevitável constatação de como aquela jornada fez bem ao mundo. Fica, portanto, a imensa felicidade por ter sido testemunha do brilho daquela união que começou, pelo menos neste plano, há cinquenta anos. Parece muito tempo mas passou como um piscar de olhos. Hoje, no lugar de um cartão que os faziam chorar de emoção, há somente o pranto transformado em palavras. E não há palavras, não há pranto, não há nada que possa descrever a falta que eles fazem. Hoje, sei que eles estão juntos comemorando essa data tão especial. E estão caminhando da forma como sempre fizeram, ao longo de toda a vida. Da forma como aprenderam a fazer desde que eram apenas amigos. Hoje, eles estão caminhando de mãos dadas.

E posso dizer que hoje, por um breve instante, a alma do cachorrão número um foi caminhar com eles!

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