O manto de estrelas ainda escondia o céu quando ela despertou. Foi até a cozinha, acendeu o fogão, pôs a água do café para ferver. Entrou no quarto do filho para iniciar o ritual de impropérios de toda manhã. No caminho de volta, renovou a ração do gato, trancou a porta de entrada que passara a noite entreaberta, recolheu os pratos em pedaços espalhados pelo chão da sala. Não tivera forças para cuidar de nada disso na véspera. A janela da área de serviço mostrou-lhe os primeiros sussurros do dia. Deu de ombros, enquanto despejava seus cacos na lixeira.
O adolescente saiu sem lhe dirigir a palavra. Talvez ainda a culpasse. Talvez preferisse que ela os tivesse deixado, antes que o pai o fizesse. Talvez estivesse se preparando para os novos embates que certamente aconteceriam no fim do dia. “Garoto insolente” – murmurou entre os dentes. Lembrou-se dos pés descalços na areia e do semblante admirado com a sequência de tapetes brancos que se desenrolavam em sua direção. Ele não passava de um rascunho de gente. O café esfriara na xícara quando o lampejo de ternura abandonou a retina de sua memória. Foi até a pia e pôs-se a lavar a louça, no afã de que a água também pudesse tocar sua alma.
O relógio marcava 7h30 quando a porta automática fechou atrás de si. O movimento em direção ao térreo despertou as náuseas, velhas damas de companhia de sua rotina. Fingiu não notar o olhar de desdém que a acompanhava por detrás do vidro da guarita. Quisera ter tempo e ânimo para acabar com a arrogância de gente incapaz de reconhecer seu devido lugar. O motorista do Uber a recebeu com a impaciência de quem esperara por quase 10 minutos. Atravessaram em silêncio a sucessão de maus motoristas, buzinas inconvenientes, e hordas de pedestres sem a mínima noção de hierarquia. Mesmo assim, o atraso na chegada ao escritório foi prontamente reportada no aplicativo.
Só notou que a hora do almoço tinha chegado ao não mais se incomodar com o alarido daqueles que só aparentavam trabalhar. Experimentou uma certa inquietação ao notar o eco que reverberava pela sala. “Nem estava mesmo com fome” – suspirou aliviada. Houve um tempo em que era convidada a se juntar às mesas dos colegas de repartição. Mas o atendimento pouco cordial dos garçons somado à péssima qualidade da comida sempre a irritava. Certamente todos sentiam sua falta. Para ela, entretanto, era um bálsamo poder ficar alguns minutos distante de tanta gente dissimulada.
Saiu do trabalho a tempo de assistir à missa das 18h. Ajoelhou-se depois da comunhão, e – com o coração mais leve – prometeu que um dia perdoaria a todos os pobres infelizes que a cercavam. Contente diante de sua própria indulgência, percorreu cantarolando o caminho de volta para casa. Como era bom sentir-se amada.