– “O sol, debruçado sobre as brumas da fria manhã, era incapaz de aquecer o pequeno sobrado. Persistente, a claridade penetrava pelas frestas da janela. Acordei.” Você acha que está muito lírico?
– Depende.
– Depende do quê?
– Do que quer contar, de como quer contar…
– Você deveria saber.
– Eu? Não, meu caro. Essa parte é sua, não tenho nada a ver com isso.
– Fico com receio de parecer alguém que não sou.
– Será que seu maior medo não é se revelar demais?
– …
– Às vezes o silêncio também pode ser eloquente.
– Estava tentando elaborar a resposta certa.
– Ela existe?
– Você acha que não?
– O que eu acho pouco importa.
– Pensei que estivesse aqui pra me ajudar.
– De forma alguma. Vim pra desafiá-lo.
– Ando meio cansado de desafios.
– Prefere o vazio?
– …
– Ainda em busca da resposta certa?
– Você me intimida, sabia?
– Que bom. Agora estamos progredindo.
– Você age assim com todo mundo?
– Assim como?
– Saindo pela tangente.
– Só porque não lhe digo as palavras que você gostaria de ouvir?
– Talvez eu não saiba o que esperar.
– E não é melhor assim?
– Se não fosse por este medo de errar…
– O medo estimula. O problema é que você me vê como inspiração.
– E não é?
– Não. Sou consequência.
– …
– …
– Acho que não vou mais usar a palavra “fria” pra adjetivar “manhã”. Está implícito.
– São decisões que lhe cabem.
– Tanto faz pra você?
– Pelo contrário. A excelência mora nos detalhes. Mas prefiro focar no que vem depois do “acordei”.
– Você devia ser terapeuta.
– Quem disse que não sou?
– Mais algum conselho?
– Não lhe dei conselho algum, nem poderia.
– Parece que terei de aprender sozinho.
– Os mestres serão importantes. As experiências, imprescindíveis.
– Você está me dizendo que não existe receita de bolo?
– Onde já se viu receita sem limite de ingredientes?
– Queria saber, pelo menos, como vou terminar.
– Essa é uma questão bastante filosófica.
– Não me refiro à vida. Falo de você.
– Na maioria das vezes – assim como a vida –, sou eu que vou acabar te guiando.
– Será?
– Chegamos ao final e você nem percebeu.
– Chegamos?
– Sim. Estou pronta. Feliz com o resultado?
– …nunca.