As imagens me vêm em preto e branco: os guetos, os cômodos acanhados, os ambientes lúgubres, os sons difusos, os rostos acostumados a driblar os olhares alheios. As vozes vagam no escuro, como se temessem ser vistas. Sussurros. Sussurros de desesperança.
– Não, não quero. Não era pra acontecer.
– Mas aconteceu.
– Não vou levar adiante. O ventre é meu.
– Não diga isso.
– Digo sim. Olhe pra nós. Isso é vida?
– Não vai ser sempre assim.
– Quem garante?
– Não há garantias. Quem vier precisa apenas de uma chance.
Vejo o sol nascer entre muitas nuvens. De um quarto à meia-luz, ouço seu primeiro choro. Cessa a dor, a aflição não sara. A porta se abre e, ainda na penumbra, ele a encontra dormindo. Beija-lhe a testa, suspira e fecha os olhos em oração. É uma bênção. O lume pálido da manhã dá lugar à névoa da tarde.
– Ela é linda, não é?
– Tão linda quanto o entardecer.
– …
– Não chore.
– Promete de novo.
– Prometo.
Ouço a algazarra que ecoa por entre as sombras do pátio. Noto os desenhos em grafite que adornam as paredes desbotadas. Não fossem pelos quadros-negros e as mochilas penduradas, as salas sem carteiras passariam por depósitos abandonados. A luz não se atreve a romper o bloqueio de tábuas desalinhadas que cobrem as janelas em pedaços. A escuridão predomina.
– Era esse o seu plano?
– Claro que não.
– Eu bem que avisei.
– Se arrependeu?
– Tenho medo de pensar que sim.
– Ela não vai ficar aqui por muito tempo.
– Estou cansada dos seus sonhos.
– Eu não me esqueço do que prometi.
– Você e suas promessas.
– Dê uma chance.
– A você?
– A ela…
A brisa da manhã sopra mansa. Acompanho a movimentação das pessoas que chegam pouco a pouco. Tímidas, sussurram entre si sem saber o que esperar e como agir. Acuadas pelo próprio protagonismo, ressentem-se da presença de uma pequena multidão postada no outro lado da rua. Trajes brancos, cartazes brancos, mentes em branco. Gritos de guerra são repetidos. Gritos sombrios proferidos por bocas alvas. Gritos de quem jamais teve motivos para gritar. Os gritos cessam quando o alvoroço em frente ao grande edifício branco se inicia. Agora é a vez dos sussurros se avolumarem. Sussurram os brados sufocados, os choros contidos, as lágrimas guardadas. Sussurra a esperança.
– Não consigo ver.
– Por que não?
– Está tudo tão claro.
– O sol está forte.
– Ah, lá está ela.
– Sim. Linda como o amanhecer.
– Por que está toda cercada?
– Ela não está cercada. Ela é o centro.
– Centro das atenções?
– Não, hoje ela é o centro do mundo.
As cenas em preto e branco se apagam. Ainda me resta a fotografia. E a consciência.