“Toma tento, menino!”
Essa foi, provavelmente, a frase que mais ouvi da minha avó quando ainda era moleque. “Vó, vou continuar tentando”, respondia eu, só para que ela sorrisse e se esquecesse da arte que eu acabara de aprontar. Ela conhecia de cor a artimanha mas sorria mesmo assim. E a nossa cumplicidade crescia.
Minha avó quase não tinha instrução mas sua sabedoria era inata. Era capaz de aprender o que quisesse com extrema facilidade e tinha um vasto conhecimento da língua portuguesa, resultado das inesgotáveis palavras cruzadas que lhe consumiam boa parte das tardes em que estávamos na escola. Pode ser impressão minha, mas acho que o significado da palavra “tento” – no sentido de juízo, prudência, discernimento – ela, de alguma forma, sempre soube.
Ela também dominava, como ninguém, a arte de contar histórias. Trago comigo as imagens de uma árvore cantante, um pássaro falante, um rei reencontrando seus filhos e pedindo perdão ao seu amor. Não me perguntem o enredo completo, mas essas e outras imagens geradas das palavras da minha avó ainda estão carinhosamente gravadas na minha mente.
Estaria mentindo se dissesse que, depois de tanto tempo, ainda me lembro exatamente das nuances de sua voz, mas as inflexões impressas em cada frase me são nítidas. “Toma tento, menino”, por exemplo, tinha sua força concentrada no “menino”, deixando claro a quem se dirigia o corretivo. Ainda assim, é justamente o “tento” que não me sai da memória.
Minha avó faleceu bem antes que eu entrasse na faculdade. Na verdade, não chegou sequer a me ver concluir o ginásio, antigo nome dos quatro últimos anos do ensino fundamental. Mesmo assim, não tenho dúvidas de que suas palavras e seus conselhos tiveram uma grande influência na formação da minha índole e do meu caráter. O “toma tento, menino” continuou reverberando em meus ouvidos por muitos anos. E eu continuei tentando…
Não posso afirmar quais seriam a opiniões da minha avó sobre a atual vida política e social do país e do mundo. Mas não tenho dúvidas de que ela deixaria seus pontos de vista muito claros, pois jamais deixou de se posicionar sobre qualquer assunto. Também não tinha a menor pretensão de agradar alguém. Sempre foi doce e ponderada mas, ciente de suas convicções, não se dava ao trabalho de escondê-las para que fosse aceita pelos outros. Ao mesmo tempo, sempre se mostrou aberta ao diálogo, às argumentações, às visões alheias. Por tudo isso, tenho a impressão de que ela se daria muito bem nos dias de hoje, mesmo certo de que seu espírito inquieto e questionador a faria angariar admiradores com a mesma facilidade com que poderia perdê-los mais tarde, em virtude de suas análises sempre coerentes e incomodamente imparciais.
Consigo até imaginá-la repetindo hoje o seu “toma tento” para muita gente. Gente que se orgulha de ter posições e ideologias muito bem definidas, de preservar suas verdades com afinco, de não se deixar influenciar por opiniões externas. Gente que não percebe que o problema começa quando essas verdades passam a ser intocáveis, quando o contraditório passa a ser visto como ameaça, quando o que se busca são apenas maneiras de corroborar e ratificar pensamentos arraigados e pré-concebidos. Gente que não entende que, dessa forma, perde-se todo o sentido da troca de ideias, como quase sempre acontece naqueles falsos debates da CNN, em que um interlocutor tem que se contrapor ao outro, mesmo que o assunto seja quase consensual. Ao fim do “debate”, aqueles que já se identificavam com A o chamam de vencedor e compartilham apenas os seus pontos de vista. O mesmo acontece com os admiradores de B. E ninguém percebe que, ao fim, cada um falou apenas para a sua casta, e que cada casta se limitou a ouvir e aplaudir seu representante enquanto desmerecia o outro.
Assim, entre uma história e outra, creio que minha avó nos alertaria para os perigos da conformidade e nos diria que perdemos oportunidades preciosas cada vez que entramos em uma imensa biblioteca para buscarmos apenas os livros e autores cujos posicionamentos e ideais coincidam com os nossos. Que deveríamos saber separar nossas opiniões das nossas crenças, pois uma crença não pode ser questionada e uma opinião clama para que seja. Que acreditar é importante, desde que nossas convicções não nos impeçam de entender que sempre haverá outros caminhos, e que estes não são inaceitáveis simplesmente por diferirem daqueles que escolhemos trilhar. Que deveríamos analisar os fatos de forma desarmada, pois só assim um pensamento crítico poderá ser realmente formado. Que deveríamos estar atentos para que fôssemos fiscais de nossas próprias condutas, e jamais trocássemos a inquietude da busca pela acomodação da primeira resposta satisfatória encontrada.
Por fim, ouviríamos o célebre “tomem tento, meninos”. E tudo estaria dito…