Estágios da vida…

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Vivíamos a segunda metade da década de oitenta quando comecei o meu primeiro estágio como universitário. Como de costume, o Brasil passava por crises e turbulências. Tancredo Neves, primeiro presidente civil em mais de duas décadas, morrera antes de ser empossado. Seu vice, José Sarney, na tentativa de acabar com a inflação galopante, lançara há pouco o famoso Plano Cruzado, com a instituição de uma nova moeda. O plano, como todo e qualquer delírio econômico baseado no congelamento compulsório de preços, foi um enorme fracasso. Durante alguns meses, entretanto, a desesperada população brasileira lhe deu crédito e os supermercados se acostumaram com a presença dos “fiscais do Sarney”, pessoas que abnegadamente passavam seus dias denunciando os empresários exploradores que traíam a República ao remarcar os preços de suas mercadorias. Tarefa que, com o passar dos meses, se tornava cada vez mais fácil, à medida em que os produtos sumiam das prateleiras. E é impressionante como ainda existe gente até hoje capaz de repetir essas mesmas bobagens…

Perdoem-me pela digressão, crises já superadas não são o tema desta reflexão, a menos que eu considere o meu estágio como uma quase crise de identidade. Exagero, é claro, mas as tarefas que eu desempenhava ali eram tão monótonas e tão distantes das que eu almejava realizar como profissional, que cheguei até a pensar em mudar de curso. Meu chefe imediato era um cara legal mas não demonstrava apreço algum à profissão. Não era pra menos, a engenharia civil vivia então seus piores momentos. O pai de um amigo chegou a me perguntar se eu já havia considerado a hipótese de, depois de graduado, ter que vender cachorros-quentes na porta de alguma escola. Diferentemente de hoje, eram tempos em que a frase “engenheiro civil, formado, muito melhor do que você”, só caberia em um programa humorístico ou, quem sabe, em mais uma infeliz propaganda institucional do CREA.

Se meu chefe não demonstrava muito entusiasmo, meu colega de estágio conseguia ser ainda pior. Filho do dono da construtora, ele ingressara no curso de engenharia apenas para – teoricamente – herdar o trabalho do pai. Digo “teoricamente” porque jamais acreditei que alguém em sã consciência pudesse passar o comando de uma empresa a uma pessoa tão limitada. Lembro-me, por exemplo, de uma tarde em que meu colega me perguntou se eu já havia provado carne de soja. Disse-lhe que não, e que também não tinha muito interesse pois eu realmente gostava de saborear carnes de verdade. “Como assim, de verdade?” ele me replicou. Fitei-o por alguns segundos na esperança de que um sorriso brotasse naquele rosto, mas ele permaneceu impassível. Sim, ele achava que soja era um animal. Achava não, tinha certeza. Chegou a rabiscar um quadrúpede qualquer no papel, jurando que aquilo era um filhote de soja. Lembro-me de, pacientemente, ter passado o resto daquela tarde tentando convencê-lo de que, apesar da correlação com as palavras “leite” e “carne”, soja não passava de um vegetal. Talvez tenha nascido ali a minha fleuma, tão utilizada anos mais tarde nas argumentações com petistas e bolsonaristas. Ao final do expediente, meu colega continuou convencido de que eu era um imbecil e eu fui pra casa decidido a sair daquele hospício o mais rapidamente possível, decisão que certamente contribuiu para que eu me tornasse, três anos mais tarde, um engenheiro civil, formado, com um conhecimento muito menor do que qualquer mestre de obras.

Mais de três décadas se passaram e volto a me sentir em um hospício do qual, desta vez, não tenho como escapar. E essa nem é a pior parte. O duro é ter que passar meses a fio explicando que criticar o presidente não é o mesmo que ansiar pela volta da esquerda, que se preocupar com as classes menos favorecidas não é o mesmo que ser socialista, que apoiar a obrigatoriedade do uso de máscaras não é o mesmo que abdicar da minha liberdade de ir e vir, que não seguir as normas do politicamente correto não é o mesmo que ser contra as minorias, que não concordar com a derrubada de estátuas não é o mesmo que ser racista, que exigir um mínimo de coordenação no combate à pandemia não é o mesmo que torcer para que empresários vão à falência, que buscar meios de viabilizar a sobrevivência das empresas não é o mesmo que não se importar com as pessoas que precisam de internação, que criticar pontos de um projeto de lei que fere a liberdade de expressão não é o mesmo que ser a favor da impunidade para as fake news, que se indignar com as milhares de mortes evitáveis não é o mesmo que ceder aos interesses do partido comunista chinês.

Convenhamos, explicar que soja não é animal era muito mais fácil…

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