“Filho, as três coisas mais perniciosas do mundo são imprensa, deus e pais”. A frase me pegou de surpresa. De onde surgira? Conversávamos sobre assuntos triviais: primeiras impressões da nova universidade, boas lembranças dos tempos de criança, comentários aleatórios sobre os assuntos do dia. Meu pai era mestre na arte de transformar bate-papos banais em momentos inesquecíveis. Pensei em indagar muitos porquês, mas um estranho brilho nos seus olhos insinuava que caberia a mim encontrar as respostas.
As quatro décadas que se seguiram àquela tarde não foram suficientes para que eu deixasse de me indignar com a parcialidade de quem deveria se ater aos eventos. A notícia tem lado (e aqui não me refiro a opiniões, sempre bem-vindas). Conceitos universais tais como democracia, liberdade, justiça e soberania tornam-se fluidos. Há as invasões e depredações do bem, os desmatamentos do bem, a ditadura do bem, a guerra do bem, o ódio do bem. Há até as decapitações do bem. Manchetes que corroboram ideologias são compartilhadas sem qualquer apuração criteriosa. Quando a situação se inverte, fatos aparecem em notas de rodapé, ou transmutam-se em silêncios ainda mais eloquentes. Decisões idênticas vindas dos mais diversos agentes públicos são objetos de elogios ou críticas, dependendo exclusivamente de quem as toma. Mais do que a verdade, importa a narrativa.
Houve um tempo em que hereges eram queimados vivos, condenados pelos autonomeados porta-vozes de divindades. Dizem que esse tempo de barbárie terminou. Será? As 12 pessoas assassinadas na sede do Charlie Hebdo certamente discordariam. O que diriam os milhões de mulheres mutiladas em países da África, se lhes fosse concedido o direito de manifestação? Qual seria a opinião de Mahsa Amin, morta pela “polícia da moral” iraniana devido ao uso “incorreto” de um véu? E como reagiriam as incontáveis vítimas dos conflitos travados por sunitas e xiitas no Iraque? Cristãos, hindus e muçulmanos na Indonésia? Cristãos e muçulmanos na Nigéria? Em nome de um deus, muitos se dispõem a morrer e a matar. Em nome de um deus, povos se mobilizam para exterminar povos que reverenciam outros deuses. Em nome de um deus, brasileiros tentam impedir que duas pessoas do mesmo sexo se unam perante a lei. Em nome de um deus, evidencia-se cada vez mais o vácuo de humanidade em que vivemos.
De repente, eu também era pai. De repente, minhas ações passaram a influenciar um caráter em formação. De repente, virei exemplo. Justo eu, ainda inexperiente naquilo de ser adulto. Via-me como aluno primário em um cargo destinado a doutorandos. Mesmo assim, não sei dizer quantas demonstrações de impaciência, quantas reprimendas fora de hora, quantos conselhos infelizes foram necessários até que eu percebesse os riscos aos quais meu filho estaria exposto. Errar não me seria permitido. Acertar era impossível. Busquei recordar momentos em que meu pai havia me magoado. Não fui capaz. Eles aconteceram, é evidente. Apenas tinham perdido a importância.