Entre laços…

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“Quando a vida enfim me quiser levar pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar no derradeiro beijo seu”

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O quarto de hospital – envolto na penumbra de um dia afônico – parecia solidário aos calafrios que me descompassavam. O visor de um dos aparelhos ligados na cabeceira da cama tingia o ambiente de ceticismo. Voltei minha atenção para o semblante dela, na busca de alguma centelha que – como grão de fé – pudesse ser confundida com esperança. Seus olhos fechados gemiam. Passeei meus dedos pelos cabelos em desalinho, na tentativa de reproduzir o ritmo das carícias que sempre conseguiam me apaziguar. Não era capaz de retribuir o que recebera.

Da porta do quarto, meu pai – com o olhar banhado de incredulidade – também a observava. Não a reconhecia. Sentei-me ao seu lado e – como de praxe – nossas mãos se entrelaçaram. Não sei por quanto tempo permanecemos assim, numa comunhão em que os prantos eram compartilhados como hóstias. Hesitei antes de romper o mais cinza dos silêncios. “Pai, posso te pedir uma coisa?” Ele baixou a fronte, antevendo a súplica que não poderia atender. “Se realmente tiver chegado a hora dela, não vá embora logo em seguida não. Fica mais um pouco, por favor”.

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“E ao sentir, também, sua mão vedar meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar num acalanto de adeus”

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Ansiedade e deslumbramento revezavam-se nas telas líquidas de seus olhos. Depois de meses de sacrifícios, planejamentos e preparativos, ele via o sonho de estudar fora ser concretizado. Lágrimas já haviam sido derramadas. Despedira-se da mãe, do irmão, do ninho que o embalou e protegeu ao longo de seus 18 anos de vida. Embarquei ao seu lado naquele avião, certo de estar testemunhando o primeiro de muitos voos. Embarquei para auxiliá-lo nos prelúdios de suas descobertas. Embarquei para postergar o instante de dizer adeus.

A semana passou com a urgência de um suspiro. A cada obstáculo superado, ele se mostrava mais confiante. A cada dia vivenciado, um cheiro turvo fustigava minha visão. Fizemos um brinde ao futuro, na noite que antecedeu minha volta. Entramos abraçados na casa em que me hospedara. Jurei guardar para sempre os sons daquele toque. Fechei um banho, tomei a mala. Ele já estava deitado quando entrei no quarto. Virou-se para mim, com a voz em gotas: “papai, eu não quero que você vá embora. Fica mais um pouco, por favor”.

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“Dorme, meu pai, sem cuidado, dorme que ao entardecer
Seu filho sonha acordado, com o filho que ele quer ter”

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