Meu Pelé…

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Dormia tranquilamente em meu berço quando fui acordado aos berros por meu pai. Eufórico, ele queria comemorar com seu primeiro filho – então com menos de um mês de idade – a conquista da Taça Brasil de 1966. Com uma virada épica sobre o Santos, o Cruzeiro ganhava no Pacaembu seu primeiro título brasileiro. Naquela noite, coube à minha mãe a inglória tarefa de me fazer dormir novamente. Na semana anterior, meu pai estivera no Mineirão para assistir a uma das maiores atuações do esquadrão celeste: a goleada de 6×2 no primeiro jogo da final. Cresci ouvindo as histórias dos jogos que colocaram o Cruzeiro como um dos gigantes do futebol brasileiro. Tostão, Piazza, Raul e Dirceu tornaram-se palavras recorrentes no meu limitado vocabulário. Pelé também.

Desde muito cedo, o Mineirão passou a ser minha segunda casa. Não, meus pais não eram (tão) irresponsáveis a ponto de levar um bebê de colo a todas as partidas. Naquela época, a maioria das minhas visitas ao estádio foi feita em dias comuns. Minha mãe trabalhava na Diretoria de Esportes do Estado de Minas Gerais, cujos escritórios ficavam no subsolo, abaixo das arquibancadas. Lembro-me com nitidez dos corredores em curva que levavam às diversas salas. Lembro-me das pequenas janelas que davam para o fosso do gramado e, por isso, permitiam que apenas nesgas de claridade iluminassem os ambientes. Lembro-me dos colegas de trabalho de minha mãe, quase todos homens, e da forma como ela se impunha junto a eles. Era nítida a couraça adquirida a partir dos 13 anos de idade, quando teve que largar os estudos e os embrulhos de pão que lhe serviam de caderno, para ajudar a sustentar a própria casa. Entretanto, também era nítido o orgulho por ter conseguido superar tantos desafios. Por seus méritos, minha mãe tem até hoje seu nome gravado em uma placa no hall principal do Mineirão. Pelé também.

Estava prestes a completar 5 anos quando fui à minha segunda casa, desta vez para assistir a uma partida de futebol. Era uma tarde de domingo, e meu pai me guiava pelos iluminados acessos em curva do estádio. O silêncio do subsolo contrastava com o alarido vindo das arquibancadas. Não me assustei. Os corredores vazios, esses sim me amedrontavam. O uivo do vento seguido do estrondo de portas batendo me sobressaltavam bem mais do que os gritos da torcida em festa. Eu não entendia o que acontecia no gramado, mas achei fascinante aquela concha de concreto repleta de gente. No campo, metade vestia azul. A outra metade, branco. Na tentativa de me manter entretido, meu pai começou a narrar os lances como se estivesse em uma cabine de rádio. Reconheci os nomes já gravados no meu inconsciente. Todos vestiam azul. Lembro-me, entretanto, que meu pai adotou um tom solene para se referir a um jogador de branco. Ao ouvir seu nome, meus olhos brilharam. No final do jogo, ficamos para ver de perto os jogadores que desciam para os vestiários. Meu pai sorria. Pelé também.

Voltei ao Mineirão com meu pai muitas outras vezes depois daquela tarde de outubro. Lembro-me de vibrar em seus ombros no quinto gol do Cruzeiro sobre o Internacional, na mágica primeira partida da Libertadores de 1976. Lembro-me de ver – da mesma posição – a chegada dos jogadores campeões daquele ano. Após o nascimento de meu terceiro irmão, minha mãe deixou seu trabalho para dedicar-se aos quatro filhos. E foi justamente o caçula – aquele que jamais conheceu os corredores escuros do subsolo do estádio – quem substituiu meu pai ao meu lado nas arquibancadas. Não saberia afirmar com certeza o que o afastou das partidas. Ele dizia que apenas preferia o conforto do sofá e o silêncio da televisão (sim, meu pai abaixava o volume para não escutar os comentaristas. “Se é pra ouvir bobagens, prefiro ficar com as minhas”). Mas, no fundo, acho que quem presenciou tanto talento, tanta entrega, tanto amor às camisas, e tanta paixão pelo esporte, dificilmente iria se contentar com o grande negócio que o futebol se tornou com o passar dos anos. De qualquer forma, gosto de pensar que meu pai está agora em um estádio de futebol, vibrando e cantando com minha mãe ao seu lado. Eles não iriam deixar de assistir a tanta gente boa jogando por lá. Ali só tem craque. E tem Pelé também.

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