Papo de mesa…

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Vacinação avança, casos e mortes despencam, reencontros acontecem. O ansiado círculo virtuoso começa a girar, ainda que de forma tímida. Um alívio para a mesa de bar, que não via a hora de voltar a ser testemunha de abraços sinceros, aspirações compartilhadas, brindes ruidosos, e discussões acaloradas sobre futebol e política. Ah, a política…

As redes sociais tornaram-se o grande palco de aplausos e apupos por parte de apoiadores e detratores do governo. Ali, ofensas e atritos são cada vez mais comuns, principalmente entre os que escondem ignorância e limitação sob uma tela que chamam de coragem. Mas o fato é que, cara a cara, as verdades afloram. E é disso que a mesa gosta. Quieta (ou nem tanto), ela está sempre atenta aos argumentos, às incoerências, às hipocrisias. Vez ou outra – a depender do absurdo proferido por um dos incansáveis adoradores de político (sempre há um por perto, quando não vários) – ela se faz de manca só para dar um banho de cerveja nos mais exaltados. A loira gelada é até capaz de esfriar colos e trocar conversas por gargalhadas, mas a trégua não costuma durar muito. Em pouco tempo, a mesa percebe que, além do garçom, o que não falta é gente para passar pano.

Foi ela mesma quem me confidenciou tudo isso há poucos dias, quando sentei-me ao seu lado em um boteco copo-sujo perto do trabalho. Mesa simples, daquelas dobráveis de metal, rígida em seus princípios, e dona de uma personalidade marcante. Garantiu que nunca foi de fazer fofoca ou revelar segredos, mas – como a maioria de nós – andava assustada com o rumo que as prosas ao seu redor costumavam tomar. Pedi licença para pedir um chopp, enquanto a ouvia.

– O que me assusta são as inconsistências – disse-me, quando eu ensaiava o primeiro gole. Acenei com a cabeça, em concordância. Ela continuou:

– Ontem mesmo, dois amigos que há muito não se viam estiveram aqui. Tudo ia muito bem até que um deles manifestou seu descontentamento com o atual governo. Foi o bastante para que o semblante do outro mudasse. Debateram durante horas, mas não chegaram a se exaltar. A valentia das redes sociais quase sempre desaparece quando os interlocutores estão frente a frente.

– É verdade. Mas você falava das inconsistências…

– Ah, sim. É que eu já tinha visto esse mesmo defensor do governo lançar mão de argumentos idênticos aos usados pelo amigo. A diferença é que, na época, o alvo era o PT. Até as desculpas eram quase iguais às repetidas pelos defensores de Lula e Dilma.

– Quais desculpas?

– As de sempre: não há provas de que o presidente seja desonesto (deve ser normal político comprar imóvel com dinheiro vivo); os filhos são perseguidos pela imprensa (claro que o Queiroz ganhou todo aquele dinheiro vendendo carros); o ministro da economia é ótimo (dólar, juros e inflação nas alturas não têm nada a ver com irresponsabilidade fiscal); comprar votos através de auxílios nunca foi populismo; aliar-se aos maiores ladrões da política brasileira é governabilidade; calotes em despesas obrigatórias não são pedaladas; ditadura militar foi salvação (mas as ditaduras de esquerda não prestam); desestimular constantemente isolamento, uso de máscaras e vacinação da população, levantar caixa de remédio ineficaz como se fosse um troféu, promover aglomerações ao longo de toda a pandemia, nada disso contribuiu para as mais de 600 mil mortes no Brasil, pois a culpa foi toda dos prefeitos e governadores que liberaram o carnaval de 2020; a lista é interminável.

– Que cara doido.

– Na distopia chamada Brasil, tem muita gente achando tudo isso bem normal.

– O grande problema do brasileiro é a idolatria cega.

– Eu diria que o maior problema do ser humano é a hipocrisia, mas, como mesa, não tenho lugar de fala.

– Olha, o papo está ótimo, mas meus amigos estão chegando. Melhor parar de falar com você, senão vão me chamar de maluco.

– Pensa bem: boa parte da população brasileira chama de Deus um cara que compara a democracia da Alemanha com o autoritarismo da Nicarágua. E outra parte significativa enche as ruas para autorizar um psicopata a passar por cima de todas as instituições democráticas. Você realmente acha que o louco é você?

– Bom, como você estava dizendo…

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