É inegável que a pandemia tem suscitado novas abordagens filosóficas sobre os papéis de Estado e sociedade. Quase dois anos depois, os limites entre as liberdades individuais e as limitações impostas pelo poder público ainda são alvo de debates acalorados, muitas vezes perigosamente contaminados pelas ideologias inerentes a cada interlocutor. Há pouco a se crescer quando todos os lados buscam tão somente proteger suas verdades. Ao contrário, quando o porta-voz de uma determinada corrente de pensamento mantém-se aberto ao contraditório, seus argumentos ganham legitimidade e relevância. Afinal, pontos de vista divergentes são fontes de crescimento inestimáveis se todos os lados estiverem dispostos a confrontar seus mais arraigados conceitos.
Depois de muitos meses focado na paralisação de grande parte das atividades econômicas do país, o debate da vez é a controversa obrigatoriedade das vacinas. Os tais “passaportes sanitários” têm sido execrados por muitos e aplaudidos por outros tantos. Refiro-me, naturalmente, àqueles que têm consciência da importância da vacinação. Não levarei em conta, aqui, os adeptos de uma teoria da conspiração que enxerga imunizantes como parte de um complô comunista em escala global. A limitada capacidade cognitiva e intelectual desses indivíduos impediria qualquer tentativa de troca de ideias mais produtiva e, para ser franco, não ando com muita paciência para debater com gente que adora usar exceções como exemplos de regras que corroborem suas tresloucadas teses. Portanto, se você é um daqueles que acham que as vacinas são engodos desnecessários e ineficazes, recomendo que interrompa aqui sua leitura e volte a compartilhar seus memes no WhatsApp e no Telegram.
O grande dilema atual, na minha opinião, reside na tênue linha que separa a liberdade individual da coletiva. Somos seres livres, e prezamos por nossos direitos básicos de locomoção, trabalho, expressão, entre muitos outros. Entretanto, vivemos em sociedade, e viver em sociedade pressupõe aceitação tácita de uma série de normas. Enfim, somos independentes, mas há limites para nossa autonomia. Nossas escolhas são soberanas, mas somos responsáveis por suas consequências. Todas versões do velho clichê: “o meu direito termina quando começa o direito do outro”.
Há poucos dias, ao trocar mensagens com uma pessoa contrária à exigência de vacina, deparei-me com o seguinte argumento: “cabe exclusivamente a mim decidir me imunizar, porque é exclusivamente meu o ônus de minha decisão”. Bem, há controvérsias. Não podemos nos esquecer de que é necessário um percentual mínimo de vacinados para que uma imunização em massa seja bem sucedida. Esse percentual pode variar mediante uma série de fatores, mas é imperativo que seja relevante. Portanto, se muitas pessoas usarem o seu direito de não se vacinar, o prejuízo certamente irá recair sobre toda a sociedade. É o que temos assistido em países como os Estados Unidos, onde parcela considerável da população simplesmente não acredita nas vacinas.
Por outro lado, o Estado deveria ter o direito de obrigar alguém a se vacinar, mesmo contra a sua vontade? Não entendo dessa forma, além de considerar essa opção inviável. Meu lado liberal, entretanto, acredita na autorregulação decorrente dos anseios da maioria. Companhias aéreas, estabelecimentos comerciais, escolas e universidades podem exigir comprovantes de imunização. Quem não quiser se vacinar que escolha ir de carro, ou almoçar na calçada, ou frequentar aulas online, ou nem sair mais do Brasil. São as tais consequências decorrentes de cada escolha.
O brasileiro – felizmente – quer se vacinar. Apesar das inúmeras pessoas que fazem de tudo para colocar em dúvida a eficácia da vacinação, e se comprazem em levantar suspeitas infundadas, quase sempre baseadas em mentiras e deturpações. Apesar de um ministro da saúde que busca apenas a manutenção de seu emprego e que, para isso, abre mão de suas aptidões e de sua dignidade. Apesar de um presidente imbecil, leviano, irresponsável, mau-caráter e criminoso, capaz de colocar ideologias retrógradas e disputas políticas à frente da saúde e da vida de seu povo.
Que o brasileiro esteja cada vez mais atento às suas escolhas. Como vivemos em sociedade, nosso futuro depende delas.