Acho que já me acostumei com a sua ausência. Há muito não tenho mais ímpetos de lhe contar as novidades, de lhe mostrar os novos desenhos do Guilherme, de comentar detalhes do roteiro fabuloso que o Arthur está escrevendo. Há muito não preciso mais reprimir minhas lágrimas ao falar de você, ao vê-la nos inúmeros vídeos felizes que tenho em casa, ao ouvir o som da sua risada contagiante. Há muito perdi o hábito de dividir com você minhas preocupações, minhas aflições, minhas dificuldades. O mesmo vale para as minhas alegrias, minhas viagens, minhas conquistas. Há muito não me vejo mais deitado no seu colo, não reconheço mais minha mão entrelaçada à sua, não espero mais pelo seu beijo a cada vez que me preparo para sair. Acho que já me acostumei com a sua ausência…
O Guilherme está cada vez mais criativo, mãe. Está mais independente, mais espontâneo e ainda mais perspicaz. Temos tido trabalho em controlar sua agressividade mas é uma delícia acompanhar o desenvolvimento de sua índole extraordinariamente honesta e verdadeira. Ele fala muito de você quase todas as noites. Mas acho que já se acostumou com a sua ausência…
Já o Arthur está naquele momento difícil de escolha dos seus caminhos. Ele não tem dúvidas de que quer mesmo cursar cinema mas são tantas decisões a serem tomadas, tantas novas posturas que ele deverá adotar se quiser ver sua vocação materializada. Ele sempre ressalta o seu exemplo de mãe que apoiou incondicionalmente os sonhos dos seus filhos. Mas acho que também já se acostumou com a sua ausência…
Eu e a Dani estamos muito bem, embora já tenhamos percebido que a nossa linda juventude faz parte do passado. Ela está fazendo exames para uma cirurgia de vesícula e eu entrei pela primeira vez em um equipamento de ressonância para avaliação de um persistente incômodo no quadril. Nada sério, não se preocupe. É inevitável lembrarmos do quanto você fazia questão de nos acompanhar em cada consulta. Mas acho que já nos acostumamos com a sua ausência…
A situação do país não mudou muito, mãe. Continuamos sendo governados por bandidos e as perspectivas futuras não são muito alvissareiras. Mesmo assim continuo tentando fazer a minha parte, trabalhando, correndo atrás de novas obras e novos desafios. Não me esqueço da força da sua fé e das suas orações para que meus caminhos fossem mais suaves, para que todos os nós fossem desatados. Mas acho que já me acostumei com a sua ausência…
Voltamos a Paris há pouco mais de duas semanas. Levei a Dani naquela ponte próxima ao Petit Palais, lembra? Mostrei a ela o banco onde você ficou sentada naquela tarde linda e fria enquanto aguardávamos o por do sol. Fomos também a Giverny e a Dani não parava de me lembrar o quanto você teria enlouquecido nos jardins de Monet. Sei que você iria querer reproduzir todas aquelas cores nos canteiros do Canto. Mas acho que já me acostumei com a sua ausência…
Hoje vamos comemorar mais um Dia das Mães. Já é o quarto que passamos sem você. Incrível como o tempo realmente voa. Graças a ele acho que já me acostumei com a sua ausência. Meus olhos úmidos parecem me dizer o contrário, eu sei. Não ligue pra eles, mãe. Talvez eles não consigam se acostumar tão rapidamente quanto eu. Talvez eles não sejam tão fortes. Mas um dia ainda vou conseguir ensiná-los a se acostumar. Acho que eles não sabem que nem é tão difícil assim. Que não é tão difícil se acostumar. Não se preocupe, mãe, meus olhos vão aprender mais cedo ou mais tarde. Afinal, eu já me acostumei, não é? Sim, eu acho que já me acostumei…