O que Jean Valjean não tinha me contado…

Sempre detestei aqueles “ping-pongs” ao final dos programas de entrevista. Principalmente quando as perguntas eram do tipo: uma cor, um som, uma imagem. Eu sempre me perguntava se o objetivo daquele questionário seria semelhante aos dos testes psicotécnicos que tínhamos que fazer para tirar a carteira de motorista. Respondeu vermelho? Bomba. Tinha que ter dito azul ou verde. Volte daqui a quinze dias.

Entretanto, toda vez que me deparava com um programa desses na TV, eu mesmo me fazia as mais diferentes perguntas, exatamente naquele formato (eu sei, nem Freud explica). Pior, ainda cronometrava quanto tempo demorava para responder. Acho que eu ficava treinando para quando fosse entrevistado (em sonhos, claro). Não gostaria que se prolongasse, além do necessário, aquele silêncio constrangedor que sempre existe entre uma pergunta idiota e uma resposta forçadamente educada.

De qualquer maneira, havia sempre nessas minhas autoentrevistas, uma pergunta na qual nem uma fração de segundo se passava até a minha resposta convicta: um livro? Os Miseráveis.

Minha conexão com o universo de Victor Hugo começou graças à minha mãe, que sempre apontava para aqueles dois imensos volumes no meio da coleção de clássicos que adornava a estante do meu quarto. Insistentemente, ela me dizia que aquela era uma obra-prima que eu não poderia deixar de ler. Mas quase mil páginas em letras miúdas fazem qualquer adolescente achar até as lições de casa mais interessantes. E assim, acabei postergando meu encontro com Jean Valjean até os meus dezenove anos. Talvez tenha sido mais adequado dessa forma, pois não creio que aquela história tivesse me causado o mesmo impacto, caso eu a tivesse lido quando ainda achava que um livro só poderia ser bom se estivesse repleto de figuras e letras grandes.

O meu encontro com aquele ex-forçado acabou se tornando um dos mais marcantes de toda a minha vida. Jean Valjean foi, para mim, bem mais do que uma mera criação de Victor Hugo. Ele foi a personificação de uma escolha. Através dele, percebi que não se pode atribuir a bondade humana apenas à índole de cada um. Percebi que ser bom é uma escolha diária, que se faz a cada novo obstáculo, a cada novo desafio. No livro, Jean Valjean leva esse preceito ao seu limite, trilhando sempre os caminhos mais difíceis e tortuosos, como se cada sacrifício feito o redimisse dos seus próprios erros, cada vez mais insignificantes diante da grandeza do seu caráter. E assim, ao conhecer a história daquele homem, compreendi que o caráter é a capacidade que cada um tem de escolher o caminho correto, mesmo que este seja, na maioria das vezes, o mais árduo, o mais íngreme, o mais longo.

A história de transformações pelas quais passa aquele personagem me cativou de tal forma que eu, não satisfeito em ler uma vez todas aquelas páginas, passei a relê-las reiteradas vezes. E cada vez que as visitava, eu mesmo inseria, mentalmente, gravuras em cada parágrafo. Aquelas imagens eram só minhas e não tinham sido influenciadas pelas cenas de filmes, mesmo daqueles que retratavam batalhas históricas ou barricadas feitas por estudantes revolucionários. Jean Valjean mudara a minha vida. Passei a buscar, nas pessoas ao meu redor, traços daquele que se transformara em meu novo herói. Imaginei sua voz semelhante à do meu padrinho, seu porte físico igual ao do meu tio, e seu olhar, sua bondade, seu caráter e todo o resto sendo exatamente os do meu pai. Jean Valjean fazia mais do que me ensinar a gostar de ler, ele me ensinava a admirar as pessoas reais, os exemplos à minha volta.

Há pouco tempo, depois de muitos e muitos anos sem fazê-lo, voltei a folhear aqueles dois grandes volumes. E, tantos anos depois, pude constatar que as imagens que eu mentalmente imprimira em cada página daquela obra continuavam lá, intactas, como se eu tivesse acabado de inseri-las. As folhas, amareladas pelo tempo, destacavam ainda mais as imagens que explodiam nas cores mais vivas. Pude perceber, então, que o meu Jean Valjean jamais iria morrer. E, finalmente, compreendi que, assim como ele, também se manterão vivos nas páginas da minha existência os meus heróis de verdade, as minhas inspirações de vida, as minhas referências literais, os personagens do livro que só eu serei capaz de ler.

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