Crenças de um viajante…

Depois dos eventos e perdas que tanto mudaram a minha vida nos últimos meses, prometi a mim mesmo que não passaria nenhum feriado prolongado em casa neste ano. Que aproveitaria toda e qualquer oportunidade que tivesse para pegar a estrada ou, quando possível, o caminho para o aeroporto. E assim tenho feito. Muitos podem pensar que essa atitude é uma tentativa de fuga da minha própria realidade. Uma maneira de escapar dos ambientes que me trazem tantas lembranças, tantas recordações e, consequentemente, tantas lágrimas. Não é! Na verdade, viajar é a melhor forma que conheço para que eu possa me encontrar comigo. No meu ponto de vista, as estradas, assim como os caminhos da vida, existem para que sejam percorridas. Não há como crescer sem passar por elas. Ao longo de cada estrada, lugares anseiam pelo momento em que serão descobertos. Descobertos não apenas para constarem nos mapas, nos livros e nos guias de viagem. Cada lugar quer ser visitado pela primeira vez, quer se sentir novo aos olhos de cada visitante. Para o visitante, a experiência única de se descobrir um lugar, é sempre uma das mais poderosas chaves para que ele também possa se descobrir como indivíduo. Somente quando se viaja, a palavra indivíduo alcança seu significado primário. Só quando se depara com o novo, quando se está aberto a entender o que é tão natural para o outro, quando se passa por uma rua com disposição para registrar mentalmente cada contorno, cada moldura, cada perfume e cada sensação, somente assim torna-se possível a compreensão de que cada um de nós é, essencialmente, um ser que se distingue dos demais.

Buscando na memória, muito mais marcantes do que o destino em si, sempre foram as emoções e reações que tive quando lá cheguei. Lembro-me do silêncio alentador às margens de rios e lagos, da força mágica de belas e caudalosas quedas d’água, da serenidade no maravilhoso reflexo do sol visto em diferentes mares, da insegurança boa por me sentir no meio de uma multidão de pessoas atraídas pelo mesmo objetivo, do deslumbramento diante de monumentos que sempre sonhei conhecer, da consciência da minha completa insignificância diante de cadeias de montanhas majestosas, dos museus, parques, ruelas e pequenas cidades que me levaram a épocas e mundos distantes, onde passei a me sentir novamente criança, habitante da idade média, vítima de injustiças seculares, refém de ditadores genocidas, explorador de um novo mundo, ou, simplesmente, eu mesmo agora com uma consciência muito maior do quanto é vasto e diverso esse nosso planeta. Não importa o destino, não importa o lugar, não importa o meio de transporte. O que realmente importa é o quanto essa experiência me modificou. O quanto ela me fez crescer.

A viagem, assim como a vida, não se resume à chegada, ao objetivo final. A viagem, assim como a vida, oferece crescimento a cada passo do caminho, a cada estrada marginal, a cada ribeirão afluente, a cada casebre no meio do nada. Não se pode conhecer um lugar pelos livros, pelas fotos e pelos filmes. Para realmente se conhecer, só estando lá, só indo ver. Os livros podem contar histórias lindas e inspiradoras. Mas nenhuma história deveria ser mais inspiradora do que aquela que cada um escreve por si próprio. As fotos podem mostrar lugares belíssimos, mas a paz ou a inquietude que um local transmite, nenhuma fotografia é capaz de reproduzir. Um filme pode captar ângulos extraordinários, mas os perfumes que acompanham aquelas imagens só podem ser guardados por aqueles que os degustam, que os entendem. Pode-se conhecer a história de um lugar sem conhecê-lo. Mas não se pode saborear sua alma. Pode-se tentar entender a cultura de um povo sem transpor suas fronteiras. Mas perde-se a essência inerente que o sentir-se em casa impõe a todo cidadão. Pode-se repetir em qualquer lugar as receitas das iguarias de países remotos e distantes. Mas o sabor delas será sempre único quando provadas junto aos seus canteiros, às suas raízes, à sua gente. E a cada mudança da luz, da projeção das sombras, da intensidade dos ventos, e, principalmente, do momento interior de cada um, um mesmo destino pode ser visto, pela mesma pessoa, de infinitas formas. Por isso, não é preciso que se evitem lugares já conhecidos. Afinal, eles jamais serão os mesmos.

O que mais pode guardar em si tantas nuances, tantas alternativas, tantas possibilidades? Apenas a própria vida! Vida que, em suma, nada mais é do que a maior e mais importante das viagens a serem cumpridas. Por isso, viajar não é uma atitude, é um estado de espírito. Não é um gasto supérfluo ou desnecessário, é alimento, é combustível para a sanidade mental, intelectual e espiritual de cada um. Para se viajar não é preciso conhecer previamente seu destino, mas é necessário se preparar para jamais incorrer no erro mortal de julgá-lo antecipadamente. Estar pronto para despir-se de toda a prepotência de se acreditar dono exclusivo das virtudes, da cultura mais correta, da linha de conduta mais adequada. Enfim, viajar é, pra mim, a melhor maneira de se perceber o quão distante o homem está de se sentir, pelo menos, próximo das suas realizações como ser humano e como indivíduo. Viajar é compreender que, por mais que se descubram novos destinos, sempre existirão outros. Desta forma, segue incessante a caminhada de cada um em busca do objetivo maior da sua viagem individual: o encontro consigo mesmo!

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Como eu faço o tempo parar…

Como eu faço pra parar o tempo? Antes que crianças se tornem adultos, antes que a motivação diminua, antes que os ímpetos esmaeçam, antes que os ânimos se atenuem.

Como eu faço pra parar o tempo? Antes que os anos pesem, antes que amigos se afastem, antes que sorrisos se apaguem, antes que perdas se somem.

Como eu faço pra parar o tempo? Antes que o andar se canse, antes que as referências se percam, antes que as vozes se calem, antes que os sons emudeçam.

Como eu faço pra parar o tempo? Antes que a visão se engane, antes que o discernimento deturpe, antes que as cores desbotem, antes que os conselhos se esgotem.

Como eu faço pra parar o tempo? Antes que as questões desistam das respostas, antes que as angústias não busquem mais alívio, antes que as certezas se transformem em dúvidas, antes que o amanhecer não traga mais desafios.

Como eu faço pra parar o tempo?

Mas o tempo não para! E não é necessário ser propriamente um gênio para jamais se colocar em dúvida essa afirmação. Mas será que ele não para mesmo? Será que não existem momentos tão ímpares na vida de cada um, nos quais o tempo perde inteiramente o sentido? Eu acredito em momentos como esses! Eu acredito que o eterno pode ocupar apenas um instante, e fazer desse instante uma experiência atemporal. Eu acredito em momentos que guardam, em um segundo, o sentido de toda uma vida. Mas como eu posso vivenciar isso? Como eu posso sentir o tempo parar? Talvez no olhar admirado do meu filho, no abraço que ele me pede antes de dormir, e na expressão de seu rosto quando entende o significado de uma boa ação pela primeira vez. Quem sabe no beijo doce do meu amor, no seu ombro e nos seus braços quando preciso renovar minhas energias. Também no encontro com meus amigos, com meus irmãos, nos sorrisos e nas lágrimas que compartilhamos. Talvez na saudade e na lembrança de inúmeros momentos vividos junto àqueles que não mais dividem comigo o mesmo tempo e espaço. E, certamente, nas inúmeras imagens que só fazem sentido para quem pode compreender o eterno daquele momento: o descer apressado de uma escada após ter ouvido meu nome em um grito vindo do fundo da alma. O retrato da luz da minha vida sorrindo e caminhando em minha direção. O primeiro choro de um bebê imediatamente interrompido nos meus braços. As lágrimas felizes de tantas pessoas na expectativa da primeira visão de um novo sorriso. Um canto de harmonia cercado de água. Duas mãos entrelaçadas. Uma música e um lago. Um brinde a três com saquê. Um brinde a quatro com vinho italiano. Um brinde a seis com champanhe sem álcool. Uma oração inspirada, inspiradora e emocionada. Um esperado telefonema repleto de dor. Um inesperado telefonema que redefiniu meu conceito de desespero. O abraço de muitos filhos em torno da última imagem da mãe de todos. O abraço de quatro filhos em torno da última imagem, neste plano, de um espírito de luz pura! Tantos momentos eternos. Tantos momentos bastantes em si. Tantos momentos que vivem hoje e viverão amanhã com a mesma intensidade de quando ocorreram. Tantos momentos em que o tempo realmente parou.

Como eu faço pra parar o tempo? Qual tempo? As crianças não vão deixar de crescer, os anos não vão deixar de pesar, sorrisos não vão deixar de se apagar e a vitalidade não deixará de diminuir. Mas os momentos eternos permanecerão pra sempre, a cada segundo, seja hoje ou daqui a quarenta anos. Permanecerão inclusive depois que tivermos partido. Permanecerão porque é assim que a vida se perpetua. Permanecerão porque o maior legado que cada um pode deixar aos seus filhos é viver em plenitude. É, portanto, a própria Vida! E esta só poderá ser assim nomeada se tiver sido edificada entre incontáveis momentos eternos, se tiver sido realmente vivenciada e experimentada em todas as suas cores, texturas e possibilidades. Só poderá ser assim nomeada se tiver sido realmente testemunha de que o tempo pode, enfim, parar!

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Uma poesia para ele…

Até quando vou seguir te amando?    
Até quando vou chorar por ti?
Até quando murmurar teu nome
Será meio de buscar te ouvir?
 
Até quando teu sorriso espera?
Até quando sentirei tua mão?
Até quando seguirei sonhando
Com o abraço que faltou então?
 
Até que o sol se ponha sem angústias
Até que a noite passe sem porquês
Até que encontre no olhar do espelho
A mesma paz do teu olhar, talvez.
 
Até que a ausência de som seja música
E uma ária silente me conforte
E estar comigo me acalente tanto
Quanto estar contigo indicou meu norte
 
Até que o outrora não me traga lágrimas
E que o depois não seja mais distante
Até que o tempo em que eu vivo agora
Seja não mais que o único importante
 
Até que tudo que aprendi me falte
Até que nada do que vi me encante
Até que o sopro do passado exale
A essência inata que é o seguir adiante
 
Até que o rio encontre seu caminho
Até que o amor seja sempre mais forte
Até que a luz que me cegou um dia
Mostre que a vida é bem maior que a morte
 
Até que a calma seja sempre plena
Até que o andar deixe de ser errante
Até que a aurora a cada novo dia
Seja sublime apenas num instante
 
Até que a noite não me traga frio
Até que os sons esqueçam suas trovas
Até que as cores que enxergo tímidas
Recriem tons e se descubram novas
 
Até que tudo que já foi vivido
Seja deixado ao largo do caminho
Até que os sonhos que sonhei menino
Encontrem coro no meu eu, sozinho
 
Até que o nunca esteja mais presente
Até que o sempre tenha o mesmo apelo
Até que o ímpeto de seguir em frente
Seja menor que o de tornar a vê-lo
 
Até que a paz me envolva, finalmente
Até que a vida cesse sem pesar
Até que eu possa contemplar contente
O meu próprio Caminho para o Mar…
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O silêncio de uma campainha…

A poltrona vazia. O lugar desocupado na mesa. A ausência do perfume de um prato especial sendo preparado. O livro de orações fechado. As palavras cruzadas incompletas. A cama intacta. A tela do computador fria e a caixa de emails transbordando de mensagens não lidas. Os telefones desligados. A chave do carro guardada. A ausência de novas orquídeas. A caixa de remédios vazia. Os cheiros que não são mais os mesmos. Os sons que ecoam no silêncio. A música que deixou de ser tocada. Tanta coisa à minha volta me lembra que eles aqui não mais estão. E tantas lembranças vivas ainda hoje me fazem suspirar: será mesmo verdade?

Ao tocar aquela campainha, ainda ouço uma voz firme e alegre me dizendo: “não tem chave, não entra”. A chave, que eu sempre trazia comigo, propositalmente não era usada pois preferia ouvir aquela voz doce do meu pai todas as vezes que chegava. Preferia vê-lo abrir a porta pra mim com aquele sorriso aberto e o olhar brilhando. Era sempre a primeira pessoa em cujos braços eu mergulhava. E beijava-lhe a face e lhe perguntava pela mamãe. Na maioria das vezes, ela estava lendo no sofá do quarto de TV, ou apenas sentada nesse mesmo sofá, assistindo a um dos seus programas preferidos. Adorava esportes, principalmente vôlei e futebol, desde que o Cruzeiro estivesse jogando. Também não perdia um CSI Miami ou um bom filme que estivesse passando. Sentávamos todos por ali mesmo e eu, muitas vezes, de mãos dadas com ela. Quando os netos estavam juntos, a atenção era sempre toda deles. E seus olhos brilhavam de orgulho a cada nova palavra pronunciada, a cada pequeno sinal de crescimento e amadurecimento. Quando as crianças não estavam, passávamos horas conversando sobre todos os assuntos. Papos corriqueiros que hoje ganham uma importância inalcançável. Conversas triviais ou profundas, muitas vezes acompanhadas de um bom vinho e de muitos brindes. Quisera eu poder discutir sobre todos aqueles assuntos novamente. Que assuntos? Isso é o que menos importa. Mas imagino que, se fosse hoje, falaríamos mais sobre a vida. Sobre o quanto ela é especial mas o quanto ela é breve. O quanto ela vale a pena mas o quanto ela nos cobra em crescimento, em redenção, em revelação ao longo da nossa caminhada. O quanto ela nos ensina, mesmo que a gente se recuse a aprender. E o quanto ela é capaz de nos mostrar como pode ser tão profundamente dolorido, de um momento para o outro, o som de uma campainha sem resposta…

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Oh Captain, my Captain…

Uma vez que acabo de publicar um texto sobre o meu personagem literário preferido, acho oportuno fazer o mesmo a respeito do meu personagem cinematográfico inesquecível. Na verdade, o texto abaixo foi escrito no dia 11 de agosto de 2014, assim que tomei conhecimento da morte do ator Robin Williams, que se suicidara após anos e anos tentando lidar com a depressão. É notável como uma pessoa que encarnou tantos personagens inspiradores e que, através deles, conseguiu ajudar e motivar tantas pessoas ao redor do planeta, não tenha conseguido encontrar inspiração e força para superar seus próprios dilemas, suas próprias limitações, suas próprias inseguranças…

Oh Captain, my Captain! Foi-se hoje o ator que deu vida ao personagem cinematográfico que maior impacto causou na minha vida. Robin Williams era um ator extraordinário, mas a sua atuação em “Sociedade dos Poetas Mortos” foi tão verdadeira que, pra mim, Robin Williams sempre foi, na verdade, John Keating. Sempre foi aquele professor revolucionário que conseguia tocar os corações dos seus alunos, que conseguia inspirá-los, que conseguia ensiná-los a trilhar seus próprios caminhos. Pra mim, foi John Keating quem se vestiu como uma senhora para continuar vendo seus filhos após o divórcio. Foi John Keating quem se formou em medicina e usou o sorriso para curar seus pacientes. Foi John Keating quem deu um imenso coração a um robô do futuro. E foi também John Keating quem ensinou um perturbado gênio da matemática a encontrar suas aptidões.

Mas Robin Williams nunca foi John Keating. Se fosse, certamente teria afogado suas mágoas nas poesias e não nas drogas. Quando se descobrisse em dificuldade, teria subido na mesa da sala apenas para se lembrar de sempre olhar para as coisas de um ângulo diferente. Ao se sentir deprimido, teria saído para caminhar de um jeito desengonçado, sem medo de ser considerado ridículo, sem medo de não ser aceito pelos outros.

É uma pena que Robin Williams não tenha guardado na memória os poemas de Walt Whitman, Thoureau e Tennyson, nos quais a vida é sempre motivo de celebração e não de desespero. É uma pena também que ele não tenha encontrado a sua própria sociedade dos poetas mortos. Mas o que mais me surpreende em tudo isso, é que John Keating não tenha conseguido mostrar ao homem Robin Williams o quanto ele tinha feito da sua própria vida algo realmente extraordinário!

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O que Jean Valjean não tinha me contado…

Sempre detestei aqueles “ping-pongs” ao final dos programas de entrevista. Principalmente quando as perguntas eram do tipo: uma cor, um som, uma imagem. Eu sempre me perguntava se o objetivo daquele questionário seria semelhante aos dos testes psicotécnicos que tínhamos que fazer para tirar a carteira de motorista. Respondeu vermelho? Bomba. Tinha que ter dito azul ou verde. Volte daqui a quinze dias.

Entretanto, toda vez que me deparava com um programa desses na TV, eu mesmo me fazia as mais diferentes perguntas, exatamente naquele formato (eu sei, nem Freud explica). Pior, ainda cronometrava quanto tempo demorava para responder. Acho que eu ficava treinando para quando fosse entrevistado (em sonhos, claro). Não gostaria que se prolongasse, além do necessário, aquele silêncio constrangedor que sempre existe entre uma pergunta idiota e uma resposta forçadamente educada.

De qualquer maneira, havia sempre nessas minhas autoentrevistas, uma pergunta na qual nem uma fração de segundo se passava até a minha resposta convicta: um livro? Os Miseráveis.

Minha conexão com o universo de Victor Hugo começou graças à minha mãe, que sempre apontava para aqueles dois imensos volumes no meio da coleção de clássicos que adornava a estante do meu quarto. Insistentemente, ela me dizia que aquela era uma obra-prima que eu não poderia deixar de ler. Mas quase mil páginas em letras miúdas fazem qualquer adolescente achar até as lições de casa mais interessantes. E assim, acabei postergando meu encontro com Jean Valjean até os meus dezenove anos. Talvez tenha sido mais adequado dessa forma, pois não creio que aquela história tivesse me causado o mesmo impacto, caso eu a tivesse lido quando ainda achava que um livro só poderia ser bom se estivesse repleto de figuras e letras grandes.

O meu encontro com aquele ex-forçado acabou se tornando um dos mais marcantes de toda a minha vida. Jean Valjean foi, para mim, bem mais do que uma mera criação de Victor Hugo. Ele foi a personificação de uma escolha. Através dele, percebi que não se pode atribuir a bondade humana apenas à índole de cada um. Percebi que ser bom é uma escolha diária, que se faz a cada novo obstáculo, a cada novo desafio. No livro, Jean Valjean leva esse preceito ao seu limite, trilhando sempre os caminhos mais difíceis e tortuosos, como se cada sacrifício feito o redimisse dos seus próprios erros, cada vez mais insignificantes diante da grandeza do seu caráter. E assim, ao conhecer a história daquele homem, compreendi que o caráter é a capacidade que cada um tem de escolher o caminho correto, mesmo que este seja, na maioria das vezes, o mais árduo, o mais íngreme, o mais longo.

A história de transformações pelas quais passa aquele personagem me cativou de tal forma que eu, não satisfeito em ler uma vez todas aquelas páginas, passei a relê-las reiteradas vezes. E cada vez que as visitava, eu mesmo inseria, mentalmente, gravuras em cada parágrafo. Aquelas imagens eram só minhas e não tinham sido influenciadas pelas cenas de filmes, mesmo daqueles que retratavam batalhas históricas ou barricadas feitas por estudantes revolucionários. Jean Valjean mudara a minha vida. Passei a buscar, nas pessoas ao meu redor, traços daquele que se transformara em meu novo herói. Imaginei sua voz semelhante à do meu padrinho, seu porte físico igual ao do meu tio, e seu olhar, sua bondade, seu caráter e todo o resto sendo exatamente os do meu pai. Jean Valjean fazia mais do que me ensinar a gostar de ler, ele me ensinava a admirar as pessoas reais, os exemplos à minha volta.

Há pouco tempo, depois de muitos e muitos anos sem fazê-lo, voltei a folhear aqueles dois grandes volumes. E, tantos anos depois, pude constatar que as imagens que eu mentalmente imprimira em cada página daquela obra continuavam lá, intactas, como se eu tivesse acabado de inseri-las. As folhas, amareladas pelo tempo, destacavam ainda mais as imagens que explodiam nas cores mais vivas. Pude perceber, então, que o meu Jean Valjean jamais iria morrer. E, finalmente, compreendi que, assim como ele, também se manterão vivos nas páginas da minha existência os meus heróis de verdade, as minhas inspirações de vida, as minhas referências literais, os personagens do livro que só eu serei capaz de ler.

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Dilma e seu dilema…

Dilma enfrenta hoje seu maior dilema. Para entendê-lo, entretanto, é preciso que se busque conhecer quem é Dilma Rousseff. Até mesmo essa simples indagação possui nuances de sobra. Naturalmente, cada brasileiro tem direito de vê-la de diversas formas, sob diversos aspectos. Como presidente, muitos podem questionar a sua competência, a sua capacidade de comunicação, a sua capacidade de negociação, a sua habilidade em resolver problemas e disputas internas, a sua forma de gerir e administrar um país tão complexo quanto o Brasil. Outros tantos podem exaltar suas qualidades (que devem existir com certeza), seja na sua antipatia indisfarçável pelo congresso nacional, seja na sua lealdade aos seus companheiros mais próximos, ou seja em aspectos que talvez só quem realmente conviva com ela poderá enumerar.

Mas eu me refiro à pessoa, ao ser humano chamado Dilma Rousseff. As plásticas, as cirurgias que lhe permitiram enxergar sem os óculos, o cabelo e as roupas que lhe deram um ar mais elegante e austero, tudo foi feito para compor um personagem, uma imagem perfeita de uma técnica competente e assertiva. As feições duras, disseram, eram herança dos anos de sofrimento durante a ditadura militar, quando foi perseguida e torturada. Foram-lhe ministradas aulas de oratória, a começar do conselho básico de sempre iniciar uma resposta com introduções do tipo: “no que se refere a isso, eu gostaria de dizer que…”. Dessa forma, segundos preciosos são sempre ganhos até que as idéias possam se ordenar melhor (inevitavelmente fico me perguntando como seriam suas respostas caso ela não utilizasse esse artifício). Também foram-lhe ministradas aulas de etiqueta, não apenas para que ela aprendesse a se comportar em eventos de gala, mas também para que pudesse passar uma imagem simpática aos seus eleitores, com sorrisos mais frequentes e espontâneos, carinhos discretos em crianças pobres, e abraços efusivos em seus companheiros de partido. Tentaram lhe ensinar línguas estrangeiras, a começar do inglês básico, mas essa ideia foi abortada logo depois da primeira hora de aula. Em virtude disso, ressaltaram a sua brasilidade, o seu orgulho do seu próprio país e de sua língua, onde quer que estivesse. Aulas de tolerância também lhe foram apresentadas, quando falsos repórteres lhe faziam perguntas hipotéticas tais como: a senhora assinou? A senhora aprovou? A senhora sabe de alguma coisa? Essa iniciativa também foi abortada antes que alguém se ferisse e preferiram imputar à sua personalidade a característica de uma pessoa literalmente impaciente com a corrupção, com a injustiça e com a incompetência. As suas entrevistas ao vivo sempre foram uma preocupação maior, tanto que atores do Teatro do Improviso chegaram a ser contratados para tentar lhe mostrar que uma resposta deveria sempre estar conectada com a pergunta feita. Mas, depois que diversos atores tiveram sérios problemas de autoestima por não mais se sentirem engraçados, as aulas foram canceladas. A solução foi reduzir o número de entrevistas à metade desde então. Os discursos, entretanto, jamais foram um problema. Escritos sempre pelo marqueteiro, a única dificuldade se limitava a substituir as palavras que ela não conhecia. Nada muito significativo tanto que, cento e cinquenta substituições depois, lá estava ela sempre pronta para proferi-lo com relativa desenvoltura em frente às câmeras de televisão. E foi do marqueteiro também um conselho que já provou ter sido muito útil: em situações de pânico, finja estar passando mal. Isso sempre funciona.

Foram meses e meses de preparação de uma imagem. Períodos desgastantes para a pobre Dilma. Mas ela se esmerou tanto que foi eleita e reeleita, a despeito da situação cada vez mais caótica no país. A imagem perfeita da gerente, da gestora firme, da presidente técnica e competente provou ser um enorme sucesso, pelo menos até agora. O problema é que Dilma anda cansada de ser incompreendida e vaiada. Embora abraçada pelo povo, ela se sente rejeitada pela elite brasileira. As madames batem panela nas suas varandas gourmet. Nos estádios, os torcedores a ofendem de seus camarotes gourmet. Os caminhoneiros protestam e param o país com seus caminhões gourmet. E os metalúrgicos a hostilizam diariamente em frente às suas indústrias gourmet. Quanta injustiça e quanto ódio vindos da elite!

Quatro anos depois, Dilma encontra-se agora frente ao seu maior dilema: continua por mais quatro anos representando o papel criado especialmente para ela ou se liberta de uma vez? Mantém a postura firme de quem aparenta saber qual o caminho a ser seguido ou volta a ser a pessoa inexpressiva que sempre foi? Qual será o caminho de Dilma? A prisão de um personagem ou a sua libertação definitiva? Claro que essa decisão cabe à ela, mas acho que seria a hora da própria Dilma optar por voltar a ser aquela mulher simples, despreparada, mas autêntica que já foi um dia. Aquela senhora ingênua que, uma vez questionada por seu amigo presidente sobre o que acharia de se tornar a mulher mais importante da história de sua pátria amada, respondeu prontamente: Cuba ou Venezuela?

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O encontro com o Mar…

“O dia amanheceu como amanhecem todos os dias. Pela primeira vez, todavia, o vi com olhos diferentes. O azul do céu estava mais celeste; as nuvens mais belas; o arvoredo mais verde, em todas as suas tonalidades. As barrancas do meu leito estavam mais amigas, mais identificadas comigo. O sol era risonho… como risonha seria a chuva, se porventura chovesse. O que havia de diferente, na verdade, não era com o que me cercava. Diferente estava eu. Eu via tudo com mais amor.

Então compreendi.

A serenidade absoluta se aproximava. Não que a visse… seria impossível. Mas, a sentia. Por longo tempo da minha vida caminhei, acompanhado pelo sol, pela lua, pela chuva, pela brisa. Conheci pássaros e animais silvestres. Convivi com os homens. Com tudo e com todos aprendi muito.

Nunca manifestei cansaço ou ansiedades. Apenas caminhei o caminho que me estava reservado, aproveitando as lições da vida.

Mas, eu sentia que minha hora se aproximava. Meus remansos eram maiores e meu corpo se alargava, na medida em que as profundidades do meu leito cresciam.

De repente, aconteceu.  O turbilhão que me envolveu, batendo-me e rebatendo-me, em nada abalava a minha paz, a minha tranqüilidade. Continuei andando. E fui envolvido por uma atmosfera de absoluta serenidade. Nada do passado. Nada no futuro. Somente aquela sensação de felicidade total, de não relacionamento com o que quer que fosse. O silêncio era absoluto. E eu parei… não uma parada de remanso, a que já me acostumara em toda a minha vida –  momentos em que eu mergulhava no fundo de mim mesmo e desfrutava a plenitude do conhecimento e da contemplação e saboreava a paz.

A parada, eu a senti definitiva.

Não era o fim, todavia. Era a morte, mas não era o fim. Era a morte para tudo quanto eu conhecia: corredeiras, remansos, raseiras, praias, barrancas, montanhas, arvoredos ciliares. Era a morte para tudo quanto eu me acostumara ao longo do meu percurso… ao longo da minha vida. Era a despedida para o brilho do sol ou para a clara suavidade da lua; era o não mais retornar ao perfume das flores ou aos sons maviosos dos pássaros; era esquecer o convívio com os animais da terra e os obstáculos do meu leito. Mas, eu sentia todo o conforto na transição. Eu mergulhava e mergulhava. E me fortalecia. Era a integração total; era o sabor da felicidade plena, quando eu me via inteiro, desde o dia em que brotei entre aquelas pedras cobertas de verde musgo, cresci, engordei, corri, caí, superei obstáculos, engoli seres viventes, enfrentei desafios, me debati, fui criticado e elogiado, sofri injúrias e agressões – e a tudo isso, fatos tristes ou alegres, respondi com a serenidade de quem cresce, evolui e se realiza. E a felicidade pelo cumprimento dos deveres que me ditara o Pai transfigurou-me. Já lançado em maior profundidade no mar, eu me via inteiro. Seria capaz de descrever cada curva do meu caminho. Eu repassava, num átimo, o conhecimento acumulado. E sentia que a melhor verdade que eu aprendera era o perdão. Não o perdão a quantos me fizeram males físicos, aos agressores da natureza. Mas, o principal, o único, o essencial: o perdão a mim mesmo. Tudo quanto acontecera na minha vida não tinha qualquer significado. Só tem sentido o que eu sou! Tudo quanto a mim me perdoara  – e estava enterrado no ontem –  contribuíra decisivamente para a minha felicidade. Infeliz quem não se perdoa. Erros todos cometem. Mas, o erro não é bagagem a ser carregada pela vida afora. Assim como os sucessos também não o são.

Veio-me a segunda grande verdade: o caminho é a vida. O fim é apenas sublimação. O caminho é o crescimento, é o aprendizado, é a evolução. O fim é apenas a integração. Por isso não devemos ter pressa. Por isso não devemos buscar metas. Estas devem balizar, como objetivos de vida, o caminho. Não se pode esquecer, todavia, que todo sonho fica sepultado na realização. Alcançar o fim é tão somente satisfazer o objetivo. Experimentar e crescer são as lições do caminho. Neste se encontra o verdadeiro sentido da vida, porque enriquecido pela alegria, pela dor, pela ira, pela bondade, pela revolta e pela harmonia. As metas não são a felicidade. A vida está no caminho que se cria e que se percorre… não no fim dele. Felicidade é experimentar, é aprender, é evoluir, é saborear cada instante na sua plenitude.

E percebi que o mar fluía do meu corpo etéreo, na medida em que perdia consciência da unidade para adquirir o conhecimento da integração. E nessa indefinível transmutação, ressoou minha voz que dizia a oração da minha vida:

“Pai, Senhor do Universo. Você que me concedeu nascimento, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, antes de crescer, idealizar e intuir os seus altos desígnios, satisfazendo sua santa vontade.

Pai, Senhor do Universo. Você que me concedeu vida e crescimento, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, cumprindo minha missão, identificá-la com os seus altos desígnios, satisfazendo sua santa vontade.

Pai, Senhor do Universo. Você que me concedeu conhecer o bem e o mal, verso e reverso da mesma medalha, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, antes do discernimento entre as duas faces da medalha, cumprir os seus altos desígnios, satisfazendo sua santa vontade.

Pai, Senhor do Universo. Você que me concedeu o livre arbítrio para a escravidão telúrica ou para a evolução do espírito, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, antes de qualquer opção, cumprir os seus altos desígnios, satisfazendo sua santa vontade.

Pai, Senhor do Universo. Você que me concedeu a morte, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, depois dela, integrar-me na Suprema Energia, por haver cumprido os seus desígnios e satisfeito a sua santa vontade.”

Aí, então, compreendi o amor.

Entendi, na sua inteireza, na sua totalidade, o que é amor. Tudo o que eu fizera na minha vida, todo o meu percurso, toda a fertilização… tudo; tudo não passava da mais simples e pura expressão do amor. Eu sempre estivera disponível. Eu sempre fora, desde o nascimento, doação total. Jamais fui maculado pelo egoísmo. Tudo o que fizera na vida, desde aquela grota de pedras cobertas de verde musgo, era amar. Amei inteira e amplamente, numa doação plena a todos e a tudo. Amei espinhos, assim como amei flores. Jamais possuí, em nome do amor. Amei as pedras, os arbustos, as minhas barrancas e minhas praias. Amei o sol e a chuva. Amei o orvalho da manhã, o calor do sol, a suave claridade da lua. Amei naturalmente; porque o amor não é emoção… é muito mais: alcança o zênite da contemplação e a sublimidade do servir. Amei sem distinções, sem escolhas, sem preferências. Amei sem restrições, sem limitações, sem preconceitos e sem medos. Entreguei-me ao mundo, à minha missão, ao meu dever, ao meu lazer… entreguei-me à vida.

Amei. E por isso fui amado igualmente, com a mesma intensidade… sem limites. Porque o amor é energia pura, é energia cósmica que se propaga em todas as direções; e se multiplica em escala geométrica; e ecoa; e volta. E cresce ainda mais. Ilumina o mundo.

Se os homens pudessem entender minha vida, possivelmente não me rotulariam RIO. Ou, talvez, teriam este nome como sinônimo de amor.

Era chegado o momento da última revelação: o renascer.

Eu poderia, se não aproveitadas as lições de todo o curso da minha vida, renascer fisicamente. E então, sugado pelo sol, transformado em nuvens e chovendo sobre a montanha, poderia brotar naquele lindo e agreste “olho d’água”. Ou em qualquer “olho d’água” do mundo, para deslizar sobre a mesma terra, reconhecer barrancas, criar novas curvas, abraçar outros cascalhos, cantar outras canções de correr ou ouvir o silêncio profundo dos remansos. E, se assim fosse, eu guardaria a semente de toda a evolução anterior, e poderia crescer ainda mais em conhecimento e amor e, um dia, alcançar a integração com o Todo.

Ou poderia renascer pelo espírito, sagrando-me no sal das águas do mar, desde que o meu amor superasse as fronteiras dos preconceitos e das limitações físicas, e se tornasse cósmico. Aí, sim, desobrigado do círculo do renascimento físico, poderia baixar às profundezas abissais, poderia elevar-me a alturas inimagináveis, poderia conhecer outras moradas do Pai e, a seu serviço, poderia continuar a transformar, pelo crescimento, não apenas a Terra… mas todo o Universo.”

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Outras preciosidades de “Caminho para o Mar…”

Eu estava bastante acelerado. Já há algum tempo, por força da constante declividade do terreno, eu vinha crescendo meu ritmo.

Uma curva à direita.

Uma longa… quilométrica reta! De repente, uma queda abrupta e, em seguida, várias outras menores. Logo após o meu corpo se transformava em corredeira forte e traiçoeira.

O arvoredo marginal era frondoso, vegetação luxuriante, magnificamente trançada. Certamente nenhum ser humano pisara aquele trecho. Uma variedade enorme de aves, de coloridos alegres e sutis, e animais silvestres pouco comuns, faziam uma algazarra tipicamente domingueira… tudo, cenário e sons, de indizível beleza… numa saudação festiva ao raiar do dia.

Aos poucos fui refreando meu ímpeto. Acomodei-me ao leito, cuja declividade já era muito mais suave. As profundidades foram crescendo… cada vez maiores. Gradativamente fui desacelerando a corrida.

Logo adiante o avistei. Pela primeira vez o vi assentado na barranca. Eu já o conhecia de várias outras pescarias… sempre acompanhado de bons amigos… barco a motor… tralha completa… tudo o mais.

Desta vez, no entanto, estava só. Próximo do seu rancho de pesca — ao qual se chegava através de uma precária e estreita estrada de chão batido —  e sem descer ao ancoradouro onde se achavam atracados vários barcos. Aboletara-se ele numa pequena clareira da mata, num barranco, espécie de mini-promontório que declinava até uma praiazinha rasa de águas claras e areia branca.

Lançara iscas em minhas águas. Embora sofisticado em qualidade, usava leve material de pesca: varas finas, não obstante resistentes; linha trinta, nitidamente imprópria para espécimes de maior porte; carretilhas pequenas. Fisgava um peixe e, calmamente, o trabalhava, recolhendo e liberando linha, até trazê-lo à raseira, costado fora d’água, barriga roçando a areia clara. Descia do barranco controlando a presa. Apreciava-o. Detinha-lhe os movimentos prendendo-o pelo rabo; retirava-lhe o anzol da boca e, lentamente, o soltava. O peixe ainda ficava ali… na raseira… parado… presumindo-se de alguma forma preso. Até que, com movimentos suaves — o instinto alertando-o contra o perigo, embora já agora ultrapassado —  avançava um pouco… um pouco mais… e, livre, deslizava nas águas límpidas e transparentes, para logo desaparecer nas profundidades maiores.

Esse procedimento repetiu-se várias vezes. Inclusive com espécimes nobres e de bom porte. Um único “pintado” —  belo “moleque” de uns oito quilos —  foi sacrificado: alimento para a família. “Bicheirado”, arrastado para fora d’água, foi preso pela boca num galho forte de árvore; corte longitudinal no rabo, para esvair o sangue e deixar a carne branca e pura. Tudo isto após o ritual de sempre: vinho tinto aberto, batismo do peixe com uma breve golfada por sua goela abaixo e, depois, a dose do pescador: prazer de degustá-lo, ele próprio.

E a partir daí, todos os demais fisgados, por mais belos e superiores espécimes, eram acariciados e, cuidadosa e prazerosamente, devolvidos ao seu “habitat”.

Havia serenidade no rosto daquele pescador. Perguntei-lhe qual era a sua verdade. E ele, em absoluto silêncio, respondeu-me:

“—      Eu não acredito na dor do ontem. Acredito na dor, assim como na satisfação do hoje. Não acredito no riso ou no choro do amanhã. Não sei se terei a oportunidade de desfrutá-los ou sofrê-los.

           Acredito na energia cósmica do Todo, capaz de reformar o Universo e tudo quanto nele se contém.

           Acredito na serenidade interior, a mesma que você sabe saborear, quando mergulha em você mesmo e se identifica com a alma do rio. Acredito na evolução do homem e na de todos os seres vivos.

           Penso que o homem da idade da pedra disputou, sem o uso da razão e sem maiores vantagens, lugar com os animais. Penso que, mais tarde, despertada a inteligência, aproveitou melhor os instintos que desenvolvera, e sobrepujou os irracionais. Penso que, gradativamente, ainda por força da inteligência embrionária, distinguiu o homem os seus sentidos. E usou-os para manter e aumentar sua supremacia sobre os demais seres vivos. Formou núcleos familiares; criou normas e preconceitos. Ampliou seu relacionamento além do núcleo familiar — criou mitos. Saboreou o comando tribal — criou embrionariamente o Estado. Inebriou-se com o poder — criou a política.

           O que era da terra, porém, não lhe bastava. Evoluiu; criou explicações  que visavam a justificar seu poder de vida e morte sobre os outros seres e até sobre seus semelhantes, fundadas na sua natureza superior de ser inteligente.

           Cresceu mais e mais.

           Evoluiu além das religiões. Alguns, muito além: do Lúcifer (portador  da  luz)* alcançaram o Logos (sabedoria pela razão)*. Penso que o homem, assim como todos os demais seres vivos que habitam este pequenino planeta Terra, são consciências em evolução, em busca de sua integração com o Todo. Integração que somente se alcança através do amor.

Acredito que nada… absolutamente  nada  no  mundo acontece por acaso. Um cascalho não rola da barranca para dentro do rio sem que haja o comando e o desígnio da Energia Superior.

           A não ser as ações do homem, que possui o dom de usar (e, às vezes, lamentavelmente, de abusar) do seu livre arbítrio — sempre sofrendo ou gozando as conseqüências dessa faculdade — nada mais no mundo acontece por acaso. Eu creio nisso.

           Creio na Energia Cósmica, que alguns chamam Todo, outros chamam Deus e alguns poucos chamam Pai.

           Por isso que acredito no amor, que é a única forma, para nós inteligível, de expressão da Energia Superior. Amor desinteressado, puro, universal, que nunca exige ou pede retribuição ou recompensa. Amor que se dá… porque esta é sua única forma de expressão:  doação total. Amor que não escolhe, não distingue, não ofende e não se ofende. Amor que não se vangloria. Amor, sinônimo de Energia Suprema que governa o Universo.

           Isto é o que eu penso… é o que eu creio”.

Eu já estava quase no fim da reta quando aquele pescador encerrou o seu silencioso e inarticulado credo.

Eu entendia, agora, porque ele não transformava sua pescaria em indiscriminado sacrifício de peixes. Eu entendia porque ele se bastava, sozinho, no barranco do rio. Eu entendia porque seu lazer e a sua alegria eram naturais, contidos e quase silenciosos. Eu entendia porque em cada sofrimento de sua vida (não há quem não os tenha), ainda que lhe custasse lágrimas, ele se mantinha discreto, reservado e sereno.

Nós dois sabíamos que TUDO na vida passa. Não há mal que nunca acabe; nem bem que sempre dure  –  mas, há sempre evolução para quem a ambos aproveita.

Minha próxima curva também era à direita.

Segui meu caminho… em paz!”

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Primeiras preciosidades de “Caminho para o Mar…”

“De repente a queda! Altura? Nem sei dizer.

Sei apenas que não parecia ter fim. A velocidade era crescente. O deslocamento de ar provocava um turbilhão… e meu corpo inteiro se quebrava nas pedras e se espargia em gotas multicoloridas, vazadas pela luz iridescente do sol. O vento arrastava-me no ar e lançava-me numa cortina de fumaça diáfana sobre o arvoredo compacto que me cercava. O barulho que eu provocava era ensurdecedor, originado no meu embate contra a muralha de rochas sobre a qual me despencava. Eu não temia a queda. Eu não resistia ao desconhecido. Pelo contrário: senhor do meu destino, pela minha disponibilidade para a vida, eu permitia que toda a potência do meu corpo batesse firme e forte sobre as pedras, e corresse livre, revolto, formando uma esteira de espuma branca. Havia um fascínio na queda e na corrida. Ambas desenfreadas, livres, naturalmente belas. Eu me divertia com tudo aquilo. Fui criado para a felicidade… como todos os seres e todas as coisas o foram. E as quedas e as corredeiras fazem parte da minha vida e da minha felicidade.

Não havia medo na queda. Há muito aprendera que a realidade da vida não enseja o medo. Somente a mente humana é capaz de criá-lo. E é capaz de transformá-lo em obstáculo intransponível, em causa de desespero e agonia, mesmo quando não existem fundamentos concretos para temer. O homem é capaz de criar a ilusão do medo e é capaz de senti-lo como sendo algo palpável, visível, sufocante, real e irremovível. E sofre. E se esquece da felicidade de viver, muito embora nascido para ser feliz.

Minha queda livre, logo após o grande embate com a muralha de pedras, teve prosseguimento por um longo trecho de corridas fortes, de agitação violenta, de força indomável. Não era a primeira vez que eu despencava de muito alto, numa manifestação de energia e responsável busca do meu caminho. Já anteriormente, por diversas vezes, havia experimentado aquele mesmo frenesi que a surpresa causa, quando se sente, no âmago, todo o poder do desconhecido. Todo desconhecido é geralmente temido. Menos para quem tem respostas para ele. Respostas que vêm do âmago; que vêm da serenidade interior.

Como de hábito, logo a seguir eu retomava o meu caminho de paz, de adaptação à vida, em busca dos meus objetivos maiores e sublimados, que se cristalizariam na minha realização. Mais uma vez a natureza me dizia, na plenitude de sua sabedoria, que as quedas não são o fim. São, apenas, simples lições demonstrativas da perenidade da vida, a ensinar persistência, obstinação nos objetivos, caminho que conduz à felicidade. Queda é, tão só e como já dito algures, alavanca para o sucesso.

Eu sempre fui o retrato da vida. Transmito nas minhas quedas as dores; nas minhas corredeiras os temores; nas minhas curvas as buscas; nos meus remansos a meditação; nas minhas relações com a fauna e a flora os amores. Tudo o que a vida dá e tudo o que ela recebe retratados em mim. Desde cedo entendi que as dores são atalhos que nos repõem no caminho da evolução. Também já havia entendido que os temores só existem no consciente humano, assumindo a proporção que se lhes quiser emprestar. Esfumam-se, se encarados de frente. Desde cedo entendi que a busca da minha evolução estava na introspecção dos meus remansos e na atenção aos meus amores. Cumprir minha missão, meu trabalho, dando vida à fauna subaquática e fertilizando a flora ciliar seria a sublimação do amor. E assim agindo, meu caminho estaria abençoado pelo Pai e a minha realização estaria completa.

Meu objetivo, soube-o desde tenra idade, era o mar… e o meu caminho era divino e único: somente eu poderia percorrê-lo. Somente eu poderia aprender a criá-lo e com ele aprender a viver. Somente eu poderia experimentá-lo e saboreá-lo. Somente eu poderia crescer e evoluir… desde que soubesse aproveitar minhas vivências. Este o ensinamento que eu guardava e alentava desde muito. Desde pequenino… desde minha infância.

Minha infância… minha história…”

Assim começa “Caminho para o Mar”, um livro precioso que meu pai escreveu há mais de dezesseis anos. Seria muito simplista da minha parte dizer que este livro sintetiza quem foi Fernando Viegas Marinho. Meu pai foi muito mais complexo e mais singelo, mais denso e mais suave, mais explícito e mais enigmático. Meu pai foi muito mais do que qualquer mensagem ou pensamento, mesmo aqueles ditos ou escritos por ele mesmo. Meu pai foi único e inigualável! De qualquer forma, “Caminho para o Mar…” é uma pequena amostra tanto dos pensamentos e valores com os quais meu pai comungava quanto da doçura com a qual ele expunha as suas verdades. Tive a oportunidade de escrever o texto abaixo na contracapa do livro, publicado no ano de 2008 com a ajuda inestimável dos amigos Márcia Soares e Iasid Bedran, dois dos muitos anjos que o ajudaram na concretização de sua missão neste plano:

“Ao longo de nossas vidas, deparamo-nos constantemente com diversas oportunidades de aprendizado e de crescimento. Na maior parte das vezes, essas oportunidades nos passam despercebidas. Outras, só são assimiladas muito tempo depois, quando adquirimos maturidade suficiente para compreendê-las. E poucas, muito poucas, conseguem imediatamente atingir nossas almas. Assim é a mensagem de “Caminho para o Mar…”.

Escrito com extrema docilidade, “Caminho para o Mar…” é uma história de amor – condição primordial para se completar qualquer caminhada. É também a história de um rio evoluindo ao longo do seu próprio caminho. Um entre tantos outros rios, mas único na sua essência. Um entre tantos outros caminhos, mas que só esse rio poderia percorrer. É uma história que não pretende ditar regras ou estabelecer verdades. Ao contrário, quer mostrar que cada rio cria seu próprio leito, tem suas próprias margens e irriga seus próprios vales. Mas conta, acima de tudo, a história de uma busca latente em cada átomo do Universo: a união da parte com o Todo, a fusão da energia com o Cosmos, o encontro do rio com o Mar…”

O indescritivelmente maravilhoso rio que foi o meu pai acaba de mergulhar definitivamente no Mar que ansiosamente o esperava. Que sua mensagem, sua história e seus exemplos possam continuar inspirando diversas almas em busca de conhecimento, de verdade e de evolução! Por isso, vou continuar publicando, nos próximos posts, outros trechos desse livro, no intuito de mostrar, mesmo que apenas de relance, a grandeza da alma que agora desfruta da paz e da serenidade do oceano em que se encontra, depois de ter feito de sua jornada, o mais generoso, fértil e disponível de todos os cursos d’água!

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