Roteiro desastroso…

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No curso de cinema…

– Venha cá, Gabriel. Precisamos conversar sobre o seu roteiro.
– Claro, professor. Tá ficando bom?
– Olha, tem qualidades, mas umas passagens são muito inverossímeis.
– É um filme de gângsters, né?
– Eu sei. Vi que começa com o chefão da máfia se elegendo prefeito de uma cidadezinha na Sicília.
– Sim. Algum problema?
– Não. Até aí tudo bem. No cargo, ele rouba a cidade toda.
– Mais do que esperado.
– Claro. Mas depois vem o primeiro problema: o bandido é reeleito.
– Ué, mas a explicação tá no roteiro. Ele distribuiu dinheiro pros pobres, pagou jornalista pra falar bem dele, fingiu que defendia os interesses da cidade, essas coisas.
– Um populista.
– Sim, mas carismático. Pensei no Zé de Abreu interpretando.
– Ok. Aí aparece um promotor disposto a fazer justiça.
– Tá meio clichê, né?
– Um pouco. Mais um daqueles promotores vaidosos que não se importam em dar uma forçada de barra nas leis pra pegar o bandido.
– Era o único jeito. O chefão dominava a cidade toda.
– Beleza. Mesmo assim, na eleição seguinte, o chefão consegue colocar um pau-mandado na prefeitura. Como?
– Já falei. Populismo e ignorância.
– É difícil acreditar que exista gente tão burra assim.
– Quer que eu retire essa parte? O pau-mandado é quase um zero à esquerda na história mesmo.
– Deixa. Vamos falar de quando o promotor consegue colocar o chefão da máfia na cadeia.
– Sim.
– O roteiro não deveria acabar aí?
– Aí eu estaria plagiando “Os Intocáveis”.
– Bom, isso é verdade. Mas precisava aparecer um miliciano na história?
– Qual o problema?
– Ué, um povo que vota mal tantas vezes seguidas deveria ter aprendido.
– Mas o miliciano ganhou popularidade se colocando como inimigo da máfia.
– Então o povo não sabia que ele era miliciano?
– Até que sabia. Mas ele se vendeu como novidade, montou uma equipe conceituada, o povo acreditou.
– Pois é, vi que até o promotor decidiu largar a carreira pública pra trabalhar com o miliciano. Isso faz sentido?
– Mas eles brigaram logo depois. Aí o promotor, que já era o maior inimigo da máfia, passou a ser também do miliciano.
– Pois é. O miliciano acabou brigando com todo mundo.
– Sim. Mostrou que não tinha mudado nada. Era o mesmo corporativista limitado de sempre.
– Puxa, o povo dessa cidade gosta de um populista, né?
– É só um filme, professor.
– É que dá até pena dessa cidadezinha.
– Na época da política comandada por bandidos era assim mesmo.
– E agora o miliciano nomeou juízes pra inocentar o chefão e condenar o promotor.
– Exato. Os admiradores do chefão e do miliciano festejaram juntos.
– Eles ainda têm admiradores?
– Ah, sim. Muita gente na cidade acha que são quase santos.
– Olha só, fica difícil de acreditar nisso. É muita burrice pra um povo só.
– Quer que eu reescreva?
– Acabe o roteiro todo primeiro. Depois analisamos. Parece que os dois vão se enfrentar na próxima eleição, não é?
– Sim. Ainda vou escrever essa parte.
– Já decidiu qual deles vai perder?
– Decidi sim, professor: o povo.

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De mãos dadas…

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Ainda não se sabe como o fenômeno aconteceu. Tudo anda tão confuso hoje em dia. Alguns especialistas afirmam se tratar de anomalia decorrente do uso prolongado de cloroquina e ivermectina sem o devido acompanhamento militar. Outros levantam rumores de que a vacina chinesa pode ter sido ministrada criminosamente no indivíduo, em uma afronta ao seu direito sagrado de raciocinar somente quando lhe convém. Seja pelas severas inversões intestinais ou devido aos efeitos nocivos do chip asiático recém-implantado, o fato é que – acreditem! – nosso personagem voltou no tempo.

Quando deu por si, Jacinto Onofre Pinto (apelidado de Jacinto Jair Mito nas redes sociais), conhecido comerciante da cidade de Borrazópolis, no Paraná, estava sentado no banco da praça central de seu município. Era junho de 2015, mas nada indicava que ele atravessara uma fissura no contínuo espaço-tempo. As calçadas e as construções ao seu redor eram as mesmas. A pintura intacta da igreja e o fato de que nenhum transeunte usava máscaras foram os únicos pontos que lhe chamaram a atenção. “O povo desta cidade está acordando” – pensou ele.

Absorto em suas divagações, Jacinto não notou quando uma mulher de cabelos longos sentou-se na outra ponta do banco. Valdirene Silva não tinha mais do que 30 anos e os óculos de grau que usava não conseguiam esconder um olhar atento e aguçado. Vestia uma blusa de malha vermelha, calças jeans e surrados tênis de caminhada. Desde o início daquele ano, Valdirene mudara seu nome no Facebook para Val Coração Valente, em homenagem à governante da época. Naquela tarde de sábado, se entreolharam pela primeira vez. Depois duas, três e, por fim, sorriram. Ele foi o primeiro a romper o silêncio:

– Você costuma vir aqui com frequência?
– Não, é a primeira vez. Tenho parentes na cidade e meus primos me chamaram para participar da manifestação.
– Não fiquei sabendo. Manifestação contra o quê?
– A favor do governo federal, na verdade.
– Puxa, conte comigo. Não aguento mais essa imprensa vendida tentando destruir o Brasil.
– Exatamente. Nem eu. Eles nem disfarçam o ódio que sentem. Meu cartaz diz: “Fora, Globolixo”.
– Perfeito. Não suporto aquele Bonner.
– E a Miriam Leitão? Choram porque acabou a mamata.
– Isso. Mas os piores bandidos estão no judiciário.
– Nem me fale. Quem consegue governar com um Gilmar Mendes fazendo merda atrás de merda? Se eu encontrasse aquele canalha na rua cuspia na cara dele.
– Eu já saía no braço. Foda-se se fosse preso depois. Teria valido a pena.
– Olha, eu sou da paz, mas com certo tipo de gente é só na pancada.
– Puxa, nunca conheci uma mulher lúcida e inteligente como você.
– Ah, que isso? É bom quando encontramos pessoas que pensam como a gente, né?
– Ô, e como. Muitos amigos já me abandonaram, dizem que eu tô cego, que sou fanático.
– Sabe que comigo acontece a mesma coisa? Será que esse povo não é capaz de ver o quanto o Brasil melhorou?
– Pois é. Também não entendo. Reclamam até dos acordos no congresso. Sem acordos, o governo não anda. Já critiquei o Centrão no passado, mas o Brasil precisa dele.
– Governabilidade. Se não fosse o Centrão, o Moro já tinha acabado com o governo.
– Nem me fale nesse cara. Que ódio que eu sinto dele. Traidor de uma figa.
– Qual é o seu nome?
– Jacinto, mas pode me chamar de Mito. E o seu?
– Meu nome é Valdirene. Mas meus amigos me chamam de Val.
– Olha, Val. Talvez você me ache atirado, mas eu nunca me identifiquei tanto com alguém assim, logo de cara. Tô falando sério.
– Eu também não, Mito. Aliás, que apelido mais bonitinho.
– Vamos tomar um café?
– Vamos.

E assim começou uma longa história de amor. Claro, ambos perceberam depois que não falavam sobre o mesmo governo. Mas era tarde. A paixão estava selada. Eles têm uma relação conturbada, quase tóxica. Discutem, brigam, se afastam por um tempo, mas não conseguem viver distantes um do outro. Mito costuma dizer que, sem a Val, ele não sobreviveria. Val também pensa o mesmo mas, orgulhosa, não gosta de admitir. Pelo andar da carruagem, essa interdependência promete durar muito. Quem será capaz de separar Val e Mito?

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Aplauso ao desastre…

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No dia 13 de março de 2016, o Brasil testemunhou as maiores manifestações populares de sua história. Eu estava entre as milhões de pessoas que saíram às ruas para protestar contra a roubalheira, a incompetência, os conchavos, a compra de apoio parlamentar, a impunidade. A massa de gente que invadia praças e avenidas pelo país afora me parecia quase homogênea. Na euforia do momento, julguei estarmos todos do mesmo lado, compartilhando objetivos, planos e indignações. Pensei ter me visto em íntimos olhares estranhos, em contagiantes sorrisos desconhecidos, em familiares vozes insólitas. Parecíamos velhos amigos que se reencontravam depois de longa ausência. Cheguei a pensar que o brasileiro havia mudado. Que jamais perderíamos a nossa recém-descoberta capacidade de ser protagonistas e que nossos valores éticos nos seriam cada vez mais caros. Quanta ingenuidade…

Hoje não reconheço muitos daqueles rostos emocionados que marcharam comigo. Como é possível que a roubalheira, a incompetência, os conchavos, a compra de apoio parlamentar e a impunidade não lhes incomode mais? O que houve com aquela gente destemida que prometia uma nova postura de atenção e cobrança em relação a seus representantes dali por diante? Por onde anda a aversão a tudo que tem nos levado ao fundo do poço ao longo das últimas décadas?

O segundo mês de 2021 começa com o governo cada vez mais unido à mesma corja que juramos expurgar da política nacional. Olho em volta e ouço – estupefato – aplausos às manobras, à compra de votos, à liberação criminosa de emendas no momento em que todos os gastos deveriam estar focados na saúde e na recuperação da economia. E os aplausos vêm daqueles que, há cinco anos, gritavam ao meu lado em busca de seriedade, honestidade e competência.

O fato é que, no Brasil, não importam as ações e sim seus autores. O mesmo argumento falacioso apelidado de “governabilidade” na gestão petista continua sendo usado desavergonhadamente na gestão bolsonarista. O mesmo sistema de compra de votos continua em voga. As fichas sujas continuam valendo apenas para os inimigos. E os aplausos ao novo homem mais honesto do Brasil continuam a ecoar.

Aplaudam, velhos companheiros de caminhada. Aplaudam a eleição de mais um corrupto que, juntos, costumávamos detratar em nossas marchas. Ele estava do outro lado, lembram-se? Aplaudam a criação de novos cargos e de novos ministérios feitos para acomodar a turma mais sedenta de recursos e mais avessa a reformas estruturantes e mecanismos anti-corrupção. Aplaudam o homem que não se preocupa em comprar vacinas, mas não se esquece de comprar apoios. Aplaudam o político que discursa contra a privatização como se fosse um sindicalista, que nomeia para o STF um Gilmar Mendes mais jovem, que usa o poder do Estado para proteger seus filhos e seus apadrinhados. Aplaudam aquele que vocês chamam de “mito”.

Perdão, é inevitável que eu use as aspas. Porque mito de verdade foi o que vivemos cinco anos atrás!

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Branca tarde…

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A folha de papel repousa intacta sobre a escrivaninha. Em branco. Nada é capaz de tirá-la daquele alvor. Nenhum tom se atreve a corar sua palidez mórbida. Grafite algum ousa enfrentar sua branquitude opressiva. Desfila, diante dos meus olhos resignados, uma repulsiva exibição de poder albugíneo. Um escárnio caucasiano que minhas mãos não conseguem impedir. Há horas, quero rabiscar qualquer coisa, mas aquela candura só atiça o branco que me domina. Frase alguma me vem à cabeça.

“Quem sabe um título? Só um título” – suplico, em vão.

A folha parece sorrir, cheia de ironia e deboche. Sua soberba me incomoda. Sei que sou alvo de suas provocações e de seu desdém. Meu rosto empalece. A dor começa a ocupar o espaço que deveria ser abrigo das palavras. Minha cabeça vazia lateja. Penso em desistir, mas a folha me instiga. Abro o computador e releio alguns dos desafios já vencidos. As musas de então já se foram. Meu olhar se ergue em busca de seus pares. Não os encontro. Reparo que a parede à minha frente também é quase branca. Costumava ser verde, eu mesmo a pintei poucos dias atrás.

“Qual era mesmo o nome da tinta? Ah, papel picado.”

A tentação aumenta mas contenho meus impulsos. A vitória da folha seria definitiva. Levanto-me. Dirijo-me à janela em busca da luz do entardecer. A neblina baixa – bem alva e típica dos dias frios do inverno – apaga as minhas recorrentes fontes de inspiração. Estão inacessíveis a capela multicor do alto da colina, o Manacá-da-serra que prometia florir hoje cedo, o horizonte dourado, os indecifráveis matizes do ocaso. A lividez insiste em limitar meu mundo e ampliar minha impaciência.

“O branco é a ausência de tudo” – filosofo, sem qualquer sinal de inspiração.

Olho de relance para o papel. Sua arrogância e sua empáfia parecem ganhar força. Passo ao seu lado a caminho da lareira. O fogo se apagou e as cinzas brancas envolvem a última tora em brasa. Acomodo os gravetos restantes em busca de uma labareda que me traga um pouco de cor, mas o lume derradeiro está cada vez mais pálido.

Volto à escrivaninha e me lembro de Gabriel Garcia Márquez: “a folha em branco é a coisa mais angustiante depois da claustrofobia”. Sinto o ar me faltar. Pego a folha branca na mesa e a dobro sob a brasa agonizante. Logo o bruxulear de uma pequena chama sarapinta meu rosto em tons quentes.

Suspiro.

“Amanhã tudo há de ser mais colorido.”

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Atualizações constantes…

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– Boa tarde. Eu vim pra vaga no setor de escrita criativa.

– Ah, ótimo. Seja bem-vinda. Quando você pode começar?

– Nossa! Já? Achei que vocês fossem me entrevistar primeiro.

– Olha, o batente aqui tá tão puxado que estamos pulando essa etapa.

– Mas eu nem sei qual é o trabalho.

– Ué, você tem que escrever.

– Sim, mas escrever o quê? Vocês trabalham com livros, jornais, revistas?

– Não, aqui trabalhamos exclusivamente para o governo federal.

– Então é comunicação interna?

– Não exatamente. Na verdade fazemos todas as revisões do manual.

– Puxa, não tenho muita experiência com termos técnicos.

– Não se preocupe. A linguagem é básica. Aliás, tem que ser bem básica mesmo pra que todos possam compreender.

– Ufa, que alívio. E quantos manuais vocês editam aqui?

– Só um.

– Um? Esse manual dá tanto trabalho assim?

– Você nem imagina. Estamos na revisão 673, só pra você ter uma ideia.

– Nossa, o original deve ter sido escrito há décadas.

– Nada, fez dois anos agora.

– Não é possível. Isso dá quase uma revisão por dia.

– Nosso recorde eram três. Mas só hoje estamos a caminho da quinta.

– Peraí. Que manual é esse?

– Manual comportamental dos seguidores do presidente.

– Eles precisam de um manual?

– Claro, senão ficam perdidinhos.

– E por que essa quantidade de revisões?

– Pra acompanhar as mudanças do chefe, é claro.

– Não entendi.

– Vou tentar explicar: na nossa primeira edição, por exemplo, os seguidores tinham que idolatrar a Lava Jato, ter horror a político corrupto, ser fã número 1 do Moro, considerar o Centrão o maior inimigo do país, querer privatizar tudo (inclusive a Ceagesp), achar que intervenção na PF é coisa de ladrão comunista, ser a favor da prisão em segunda instância e acreditar que filho bandido de presidente tem que ir pra cadeia.

– Ah, estou começando a entender…

– Bons tempos aqueles. O manual não tinha mais do que quinze páginas.

– E hoje?

– A edição que estamos finalizando terá 985. Mas são tantas desculpas, depoimentos e novos gráficos inventados que, na próxima tiragem, chegaremos a mil com certeza.

– Agora eu vejo por que vocês querem me contratar.

– Pois é. Trabalhamos 24 horas por dia. Agora mesmo estamos tentando explicar que as frases “não compro a porcaria da vacina chinesa do Dória” e “fui eu que banquei a vacina e ela é do Brasil” não são contraditórias. Podemos contar com você?

– Olha, infelizmente não vai dar. Vou aceitar o convite pra ser editora do jornal dos terraplanistas. Lá não vou ter tanto trabalho pra encontrar argumentos verossímeis, sabe?

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Palavras…

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Sabe aquela frase ou palavra que, assim que você escuta, seus olhos reviram de impaciência? Pois é, tenho uma lista delas. Minha implicância começou antes do meu primeiro ano de vida. Não tenho lembrança, é claro, mas sou capaz de apostar que “não” foi o primeiro vocábulo a se tornar alvo da minha ira. Mais tarde, as clássicas “hora de dormir”, “já fez o dever de casa?” e “dia de prova” da infância foram, aos poucos, sendo substituídas pelas castradoras “só quando você for mais velho”, “proibido para menores” e “se enxerga, garoto” da adolescência.

As responsabilidades da fase adulta chegaram acompanhadas de critérios de escolha mais elaborados. Mais consciente do mundo à minha volta, passei a prestar atenção no que diziam escritores, personalidades e governantes. A liberdade e a democracia davam sinais claros de vigor no final dos anos 80 e todas as expressões contrárias a esse movimento me aborreciam, assim como as eternas promessas de se acabar com a hiperinflação que assolava o país. O “brasileiras e brasileiros” que abria os discursos de Sarney me irritava tanto quanto o “minha gente” empertigado do Collor. Amaldiçoei a palavra “confisco” e tive esperanças em uma que não conhecia até então: “impeachment”.

E não é que deu certo? Dali por diante, vivemos anos promissores e minha coleção de frases passou por um momento de baixa volatilidade. Sim, a palavra “companheiro” já me importunava e tive que aturá-la bem mais do que gostaria. Mas o pior ainda estava por vir. Mal sabia eu que o mundo se tornaria bem mais chato com o intragável “politicamente correto”, até hoje uma das frases mais abomináveis da minha longa lista. A partir de então, tive que redobrar meus esforços para fingir indiferença ao ouvir as frequentes “apropriação cultural”, “lugar de fala”, “dívida histórica”, entre tantas outras. Minha paciência já estava no fim quando passei a tolerar, por longos seis anos, a palavra “presidenta”. E só não foram oito porque o impeachment voltou a nos socorrer.

Os ares renovados prometiam tempos de descanso para a minha listagem. Ledo engano. Novos contextos mudaram o significado de frases bobas e comuns. Quem diria que “pessoa de bem”, por exemplo, poderia me incomodar tanto? Ou “patriotismo”, “nacionalismo”, “conservadorismo”? Todas expressões triviais que passaram a ter lado, carregadas do mesmo sentimento divisionista e desagregador plantado lá atrás pelo arauto da palavra “companheiro”. Não por acaso, hoje a minha lista de termos irritantes é encabeçada pelo que entendo ser o seu sinônimo mais preciso: “mito”.

E eu só torço para que aquela minha velha palavra amiga dê o ar de sua graça novamente…

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História de um desastre…

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O canal Spotniks lançou hoje um vídeo com a linha do tempo da pandemia no Brasil ao longo de 2020.

Assistam. Trata-se de um documento histórico.

Mostra de forma clara como o presidente do Brasil menosprezou uma doença que já matou mais de 200.000 pessoas por aqui. Pior, mostra como ele, desde o princípio, fez tudo o que estava ao seu alcance para desestimular toda e qualquer medida de prevenção, inclusive as mais básicas.

Não houve, desde o início da pandemia, um único gesto de Bolsonaro no sentido de orientar a população a se cuidar, a lavar as mãos, a usar álcool em gel, a não sair sem máscaras, a evitar toques e contatos. Em compensação, não faltaram galhofas, deboches, brincadeiras bobas e aglomerações desnecessárias quase que diárias. Não houve sequer um único instante de lucidez, de serenidade, de liderança.

O povo brasileiro foi chamado de maricas, de covarde, de trouxa. Ao longo dos meses, Bolsonaro só fez transferir responsabilidades e negar sistematicamente a gravidade da pandemia. “Gripezinha”, “vírus superdimensionado pela mídia”, “doença que só ataca velhos e doentes” foram algumas das suas frases mais repetidas. Todas falaciosas.

Com a proximidade da vacina, Bolsonaro fez exatamente o oposto do que se espera de um governante: politizou seu uso, torceu abertamente para o seu insucesso, alertou para seus possíveis efeitos colaterais (não, virar jacaré não é um deles) e nunca enalteceu seus benefícios, deixou claro que jamais tomaria vacina e teve a cara de pau de criticar sua “falta de comprovação científica” depois de passar a pandemia inteira como garoto propaganda de um remédio comprovadamente ineficaz. Nenhum líder mundial teve uma atuação tão desastrosa e tão irresponsável.

Seu descaso com a saúde do brasileiro foi tamanho que colocou no Ministério da Saúde um fantoche cujo maior atributo é lhe prestar continência. Disse que o fantoche era “especialista em gestão”. Pois o “gestor” não se preocupou em formar parcerias com vários laboratórios do mundo (pra que essa ansiedade e essa angústia?), não pensou em comprar seringas com antecedência (quem poderia imaginar que elas viriam a ser necessárias, não é?), não conseguiu atender às exigências cadastrais da Pfizer (ah, mas esse laboratório é muito chato mesmo), mandou um avião enfeitado com propaganda governamental buscar – ali na Índia – uma carga que não está liberada (talvez esteja no dia D e na hora H) e deixou centenas de pessoas morrerem asfixiadas por falta de oxigênio, num dos episódios mais tristes e degradantes já vistos na nossa história (sim, o governador amazonense também é conivente, o que não atenua em nada a responsabilidade do governo federal).

Estamos prestes a completar um ano de pandemia. Não temos vacina, não temos planejamento, não temos direção. Nos sobra ignorância, arrogância, incompetência e um número de mortos e de infectados maior a cada dia.

Certa vez, Bolsonaro fez questão de dizer que não faz milagres e não é coveiro. Faltou mostrar que é presidente. Faltou agir como presidente. Agora é tarde demais. Fora, verme!

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Dia de vacina…

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Brasil, num dia Q qualquer, em um futuro P próximo…

– Bom dia. Eu vim me vacinar.
– Perfeitamente. O senhor fez o agendamento no nosso site?
– Sim. Aqui está o comprovante.
– Senhor, aqui diz que o agendamento é para o dia D.
– Sim. Hoje.
– Não. Hoje é dia H.
– Mas o presidente anunciou ontem que o dia D tinha chegado. E no site só existia essa opção. H era a hora. Tem certeza de que está lendo certo?
– Certíssimo. No momento estamos atendendo apenas pessoas agendadas para hoje, dia H e para agora, hora A.
– Dia D foi ontem?
– Não. Ontem foi dia O.
– E quando vai ser o dia D?
– Senhor, somos cientistas aqui. Lidamos com fatos, não com previsões.
– Meu filho, eu tenho 85 anos, peguei duas conduções pra vir até aqui. Veja o que você pode fazer por mim.
– Meu senhor, não posso colocá-lo à frente de todos que agendaram corretamente.
– Mas não tem ninguém aqui.
– Mesmo assim. Além do mais, não ia adiantar muito.
– Por que não?
– Porque não temos seringas.
– De que adianta anunciar a vacina se as seringas não chegaram?
– É só uma questão de transparência e de respeito à população. E de marketing também, é claro.
– E quando elas estarão disponíveis?
– No mês M, sem falta.
– Que absurdo. Nem sei se estarei vivo até lá. Quero fazer uma reclamação.
– Para reclamações o senhor deve se dirigir ao guichê G.
– E onde fica?
– No pavimento P, ao final do corredor C, sala S.
– Aqui mesmo?
– Não. No edifício E.
– Pois eu vou!
– Mas o senhor tem que preencher o formulário antes.
– Que formulário?
– O formulário F, é claro.
– E onde eu consigo esse formulário?
– No balcão B.
– Chega. Vocês conseguiram. Eu desisto. Já vi que vou ter que ficar isolado pelo resto da vida.
– Não seja pessimista. Em breve o senhor e toda a população brasileira estarão imunizados.
– Em breve?
– Sim, antes do final do ano A. Posso ajudá-lo em mais alguma coisa?
– Só uma.
– Pois não.
– Vai pra PQP!

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Abraços de ano novo…

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Meu ano começou com abraços. Alguns poucos e especiais, daqueles bem apertados, me cobriram de amor e de amizade. Outros – a maioria – foram dados e recebidos de longe. Li e ouvi votos tão sinceros quanto os que falei e escrevi. O carinho e o afeto têm mesmo a capacidade de alcançar telas em todas as partes do mundo. Cada mensagem foi quase um abraço. O problema é essa minha dificuldade em me contentar com os “quases”.

Alguém escreveu um dia que o quase também é mais um detalhe. Pode até ser verdade, mas é um detalhe importante demais para mim. Não me satisfaço com quase abraços, com quase amigos, com quase brindes. Quero sentir a energia e o calor de quem me envolve, quero ver de perto o brilho no olhar que só os que se amam compartilham, quero ouvir o tilintar das taças se encontrando. Quero estar perto.

De todas as restrições que 2020 me impôs, o abraço é o que mais falta me faz. Um simples abraço é capaz de dizer muito mais do que qualquer texto que eu vier a escrever ou do que qualquer frase que eu vier a pronunciar. Posso não ser honesto na escolha das palavras, mas meu abraço é sempre verdadeiro. Breve ou demorado, silencioso ou dublado pela emoção, acompanhado de beijos ou de lágrimas, não importa, ali eu estou por inteiro.

Meu abraço pode manter as mãos firmes e estáticas ou deslizá-las até a nuca alheia para, sem pressa, findar num sorriso. Meu abraço pode usar meus ombros como abrigo e meu rosto como amparo. Meu abraço pode ser de afago ou de perdão, de orgulho ou de tolerância, de paixão ou de bem-querer. Meu abraço pode até se esquecer de suas próprias razões.

Muitas vezes a correria da vida não me permite ficar para um papo, mas sempre haverá tempo para um abraço. Os abraços da partida são eternos mas, cá entre nós, prefiro os da chegada. Sinto falta dos abraços de consolo que me sustentam, de congratulações que me animam, de admiração que me motivam. Sinto falta do tempo em que o abraço era só um ato de carinho.

Meu abraço está contido há mais de oito meses. Quase uma gestação. Como já disse que não gosto de “quases”, que novos abraços nasçam e se multipliquem no ano que começa hoje. Que os velhos abraços se renovem e jamais se percam na distância e na frieza de um novo normal. Um dia, tudo isso vai passar e os toques voltarão a nos contagiar apenas com vida. Que o ano que se inicia seja mais afeito a abraços que seu antecessor, tão rude.

Bom dia, 2021. Seja bem-vindo. Agora que nos conhecemos, por favor, me abrace!

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O ano do jacaré…

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31 de dezembro de 2020. A bolsa termina o ano em alta, assim como o dólar, a dívida pública, o número de pessoas mortas e a insensatez. Quedas expressivas foram verificadas no emprego, na renda, no diálogo, na diplomacia e no bom senso. Gostaria de ser capaz de esquecer todos esses dados, pelo menos até amanhã. Gostaria de focar apenas nos meus próprios índices: um ano de muito trabalho, de muito aprendizado, de reconstrução de metas e objetivos. Um ano de novas experiências, novos mundos, novos e queridos amigos. Um ano de gratidão, apesar da escassez de encontros e abraços, de brindes com taças que não se tocam, do desamparo dos ombros.

Mas não há como se esquecer das perdas que 2020 nos trouxe. Não há como se esquecer da irresponsabilidade, da desinformação, da incompetência. Não há como se esquecer da gripezinha, do “e daí?”, do “quer que eu faça o quê?”, dos maricas, do “não dou bola”. Não há como se esquecer do escárnio, do desrespeito, do descaso com a vida alheia, da torcida escancarada para que uma vacina não seja eficaz, do desestímulo à única medida capaz de trazer o país de volta a algo próximo da normalidade. Não há como se esquecer dos jacarés.

Pois que sejamos todos jacarés em 2021. Jacarés imunizados livres para se reunir, para nadar pelos rios e lagoas, para se aglomerar em pool-parties regadas a caipirinha (quem já virou jacaré sabe que essa é a bebida preferida deles). Claro, sempre haverá espaço para os jacarés mais sofisticados que preferem um bom vinho e para os novos-répteis que não dispensam um scotch 18 anos só pela ostentação. Todos serão bem-vindos. Estaremos imunes. Os abraços serão liberados, as máscaras deixarão de ser exigidas e a Cuca não vai mais meter medo em nenhum jacarezinho. Bolsas e sapatos de couro serão terminantemente proibidos e o canal Nat-Geo vai tirar o primeiro lugar na audiência da Globolixo. Até por uma questão iminente de sobrevivência, a preservação das matas e florestas será levada a sério pela primeira vez e os pacotes de turismo ecológico multiplicarão o número de jacarés estrangeiros no país, impulsionando a nossa economia. As empresas de cosméticos irão compensar a queda do faturamento com xampus com o aumento exponencial da venda de cremes para a pele. Novas perspectivas se abrirão em todos os setores.

Perdoem o deboche. Não pude evitar. Afinal, foi assim – com deboche e desprezo – que o povo brasileiro foi tratado ao longo de 2020. Que sejamos mais sérios e responsáveis no ano que se inicia. Que tenhamos – sabe-se lá como – seringas suficientes, diversas opções de vacina, competência e organização no atendimento à população, vontade política. Só com a vacinação em massa poderemos começar a superar os enormes desafios que nos aguardam. A vacina tem o poder de nos trazer esperanças de um ano melhor, mas não o de transformar alguém em jacaré. Uma pena, por um lado. Tem gente por aqui que causaria bem menos estragos se fosse só mais um réptil!

Feliz 2021 a todos nós!

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