Comprovando a tese de que a epidemia do politicamente correto se espalhou pelo mundo, a curadora da Galeria de Arte de Manchester retirou da exposição a obra “Hilas e as Ninfas”, pintada por John William Waterhouse em 1896. A razão alegada é que a pintura retratava o corpo feminino como “forma decorativa passiva”, obviamente subjugada pelo másculo Hilas. Assim, o museu informa que quer “fazer pensar”.
Talvez o objetivo do museu tenha sido alcançado pois eu não consigo deixar de pensar sobre o quanto este mundo está se tornando mais pobre a cada dia. Que tipo de engajamento e de empatia o atual movimento feminista pretende conquistar com posturas como essa? Ao mesmo tempo em que busca salvar as indefesas mulheres da mitologia, enaltece atitudes absolutamente conflitantes, dependendo de quem as pratica. Corpos femininos à mostra podem ser tratados como submissão ou empoderamento. Opiniões bem elaboradas são exaltadas quando se adequam aos ideais do movimento ou demonizadas quando se tornam contraponto. Assédios criminosos obviamente condenáveis são colocados no mesmo patamar de elogios e paqueras de mau gosto. Em nome de uma pseudoigualdade, perde-se até a capacidade de percepção de que um corpo masculino jamais será idêntico ao feminino (e vice-versa), não importa quantas cirurgias sejam feitas ou quantos hormônios diferentes sejam administrados.
A própria liberdade, que sempre foi o objetivo da luta de tantas extraordinárias mulheres que muito fizeram pela paridade de direitos conquistada ao longo dos anos, vem sendo agredida por um movimento que impõe uma agenda baseada em conceitos deturpados, que restringe a capacidade individual de discernimento e que promove absurdos tais como os que testemunhamos hoje com as grid girls, desempregadas da Fórmula 1 em nome da “integridade feminina”, com o linchamento virtual das poucas artistas que ousam contextualizar situações que as novas damas de preto só conseguem enxergar de forma genérica, com as recentes sensações do esporte nacional que quebram recordes para o delírio das igualitárias, com os assaltos feitos à língua portuguesa para se adequar àqueles que pensam que o simples uso da letra “a” ou da letra “x” pode trazer dignidade instantânea a todas as castas, com as censuras veladas feitas em nome da arrogante autonomeada posição de “defensoras dos direitos alheios”. Não penso que tais condutas sejam capazes de elevar um debate absolutamente necessário para que as distorções de comportamento das sociedades possam ser continuamente revistas e depuradas.
Por fim, atendendo aos anseios do museu de Manchester de nos fazer pensar, imaginei uma solução para o impasse da obra removida da exposição. Como se sabe, o belo Hilas era, segundo a mitologia, amante de Héracles. As ninfas, aparentemente tão passivas, o atraíram e o raptaram, deixando seu companheiro inconsolável a ponto de o fazer abandonar a expedição dos Argonautas. Ainda segundo a mitologia, Hilas nunca mais foi visto e nunca se soube o que foi feito dele. Pois bem, aproveitando a lacuna mitológica, talvez a curadora possa permitir a volta do quadro às paredes do museu se a sequência da história mostrar que aquele momento retratado na pintura foi o último de Hilas como homem, antes de se transformar em Hilária, a primeira e mais empoderada ninfa trans da história. As aventuras de uma personagem tão lacradora, certamente jamais poderiam deixar de enriquecer qualquer galeria da atualidade!