Já tínhamos deixado dois adversários para trás na fase de grupos. Só a primeira dupla de cada chave se classificava para as quartas de final e não tivemos que suar muito para que a vaga fosse nossa. Ambas as partidas foram fechadas em apenas dois sets, todos sem grandes sobressaltos. Eu começara a jogar há poucos anos, sempre incentivado pelo meu parceiro, bem mais experiente. Em pouco tempo, juntos conseguimos um bom entrosamento que, aliado a uma técnica razoável e um bom fôlego, fazia com que nos destacássemos entre os demais competidores. Mas havia outras boas duplas na disputa e não tardaríamos a encontrá-las.
O início das quartas de final estava marcado para a noite de um dia de semana, terça ou quarta-feira, já não mais me lembro. O torneio em si não tinha relevância alguma, a começar pelo próprio esporte. Naqueles tempos, peteca era um jogo tão popular em Belo Horizonte que seria até admissível que um clube de lazer não tivesse, em suas dependências, quadras de basquete ou de tênis, mas jamais poderiam faltar as quadras de peteca. Assim, disputas como aquela se sucediam com impressionante frequência. No nosso caso, o torneio havia sido organizado pela associação de funcionários de alguma autarquia municipal. Mesmo assim, eu estava nervoso e ansioso, como costumam ficar os jovens de dezenove anos diante de qualquer desafio. Meu parceiro, ao contrário, exibia a calma, a segurança e a mansidão que sempre o caracterizaram. Aos quarenta e sete anos, ele mantinha um físico invejável e boa condição aeróbica, apesar do tabagismo que o acompanhara desde a adolescência.
Mal começou a partida e meu nervosismo se materializou através de erros bobos, que, normalmente, eu não cometia. E a cada novo erro, maior era a minha ansiedade. Meu parceiro pediu tempo pela primeira vez e tentou me tranquilizar. “O jogo não vale nada”, disse-me ele. “A não ser que você se divirta. Aí ele passará a valer alguma coisa”, completou com sabedoria. “Então, vamos nos divertir”. As palavras dele, como de costume, surtiram efeito e quase não erramos mais, fechando o primeiro set de virada.
Veio o segundo e a partida ficou bem mais parelha e equilibrada. Empatados até os últimos pontos, quem abrisse dois de vantagem levaria o set. E estávamos assim empatados quando consegui jogar a peteca no fundo, sobre o adversário à minha frente que não conseguiu alcançá-la. A peteca tocou a quadra pouco antes da linha e comemoramos como nunca. O adversário aquiesceu nitidamente mas seu parceiro gritou: “fora”. Não havia juizes de linha e a visão do árbitro central ficara parcialmente encoberta. Eu, meu parceiro e até o adversário que estava no lance sabíamos que o ponto era nosso, mas o quarto jogador gritava e exigia que ele fosse disputado novamente, pois o juiz não tinha certeza do que marcar. Diante do impasse, meu parceiro aproximou-se da rede e pediu a opinião do adversário que se mantivera calado até então. Este olhou para seu companheiro falastrão, levantou a cabeça sem nos encarar e disse: “foi fora”. Meu parceiro o olhou nos olhos, sorriu ironicamente, e disse ao juiz que o ponto não precisava ser disputado novamente. Eles estavam na frente. Aquilo me deixou possesso! Como era possível que a gente pudesse entregar um ponto de graça sabendo que eles estavam mentindo? Meu parceiro tentou me acalmar mas eu não queria nem olhar para ele. Estava furioso com os que mentiram descaradamente, com o árbitro que não tinha visto o lance e com o meu parceiro que havia permitido a farsa. Na sequência, na primeira oportunidade que tive, tentei cortar com força e raiva mas a peteca morreu na rede. A partida estava empatada.
Fui para o intervalo fulo da vida. Bebi um copo d’água e me sentei em um banco mais afastado da quadra. Meu parceiro caminhou em minha direção com a mesma calma de sempre, colocou sua mão no meu ombro, e me disse com firmeza:
– “Por que você está tão irritado? É só uma partida.”
– “Eu sei”, disse-lhe eu. “Uma partida que agora está empatada porque estamos jogando contra dois babacas.”
– “Sim, é verdade.”
– “É verdade mas foi você quem deixou que eles ganhassem. Mas o ponto era nosso. Você sabe disso.”
– “Sim, eu sei disso e eles também sabem. E eu dei a eles a oportunidade de dizerem a verdade.”
– “Mas eles não disseram. Eles mentiram e ganharam o ponto.”
Então ele me disse algo que jamais vou me esquecer:
– “Fernando, sim, eles ganharam o ponto. Mas o ponto é o menos importante aqui. Eles têm consciência de que mentiram. Viu como um deles ficou desconcertado? Eles podem ter ganho o ponto, mas perderam todo o resto. Perderam o que realmente importa!”
Queria poder dizer que percebi a profundidade daquelas palavras imediatamente. Queria poder dizer que entendi, naquele momento, o que realmente importava. Queria poder dizer que voltei para a quadra renovado, feliz e que ganhamos a partida com facilidade. Na verdade, eu ainda estava revoltado, ainda estava com raiva e, pela minha instabilidade, o terceiro set também foi perdido. Só bem mais tarde percebi que, naquele dia, não perdemos nada além da partida. E esta não tinha a menor relevância.
Continuamos parceiros na quadra por mais algum tempo e, muito mais importante ainda, continuamos parceiros na vida por muitos e muitos anos. Ele foi, com certeza, o grande parceiro que tive até o dia em que ele partiu para formar outras parcerias em um plano bem mais elevado. Hoje, ainda sonho com o dia no qual jogarei novamente com ele. Quando isso acontecer, sei que ele voltará a me dizer coisas que vou demorar anos até ser capaz de compreender inteiramente. Mas esse é um problema meu. Quem mandou eu escolher um parceiro tão evoluído?
Ah, quase me esqueci de dizer que meu parceiro era também meu pai. Mas isso é apenas mais um detalhe. Um detalhe que não teria a mesma importância se não estivesse sempre acompanhado da parceria. Essa sim, é o que mais importava. Essa sim, me faz uma falta impossível de descrever. Essa sim, não vai terminar jamais.
Feliz dia, parceiro!