O Diretório Acadêmico da Escola de Arquitetura da UFMG publicou ontem uma nota coletiva de repúdio ao nome e ao conteúdo de uma das disciplinas optativas do curso de graduação. A disciplina se chama “Casa Grande” e o conteúdo prevê que os estudantes desenvolvam o projeto de uma ampla residência de alto luxo, com cinco suítes, e que comporte quartos e banheiros para oito empregados. Segundo a nota emitida pelo DAEA, ao propor tal tarefa, “o professor estaria incentivando-os a projetarem uma casa grande que incorpora a senzala e reforça os moldes de dominação em pleno século XXI”. Os membros do DAEA também questionam “a quem contempla a construção da grade curricular e a arquitetura fomentada pela universidade na formação dos alunos do curso voltada para uma classe elitista, a qual parte dos graduandos da escola de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, pretos, pobres e advindos de escolas públicas, não pertencem. Com essa proposta, o professor Otávio Curtiss reforça os padrões sociais que vão ao encontro das estruturas do Brasil Colônia e fogem da realidade da maioria dos indivíduos que compõem a população brasileira, utilizando a proposta da disciplina para justificar a produção de uma arquitetura racista”.
Leio a nota, releio, respiro, suspiro, conto até dez, e tento encontrar palavras que consigam descrever a minha estupefação diante de tamanho despropósito. Não, não estou me referindo à disciplina, ao professor, ou ao trabalho proposto. Meu assombro é devido a uma nota ridícula, limitada, fora da realidade e, essa sim, profundamente racista. Racista porque, ao fingir proteger o “ultrajado” ocupante das dependências de serviço, simplesmente determina que o trabalho de empregado doméstico não passa de uma atividade inferior, indigna, retrógrada. A absurda comparação dos aposentos atuais com uma senzala apenas demonstra que, para estes alunos, o empregado doméstico não passa de um trabalhador explorado, submisso, quase um escravo com uma cota extra de feijão no almoço.
Que visão deturpada e distorcida é essa? Os empregados domésticos têm direitos e deveres como qualquer outro trabalhador. Têm horários e obrigações a cumprir, devem ter seus direitos trabalhistas respeitados, e exercem uma atividade digna, que exige uma série de qualificações, cada vez mais rigorosas. Atividade que tem sido, ao longo dos anos, cada vez melhor remunerada. Não há nenhum tipo de vergonha, de constrangimento, de desonra em exercer tal função. Tanto que não haveria a necessidade do insuportável “politicamente correto” passar a chamá-los de secretários e secretárias, como se a palavra “empregado” fosse imprópria ou indecorosa. Aliás, hoje, em um país devastado pela incompetência e pela corrupção, milhões de pessoas dariam tudo para que pudessem voltar a serem chamadas de “empregadas”. E a existência, em uma residência, em um apartamento, ou em um estabelecimento comercial, de dependências que lhes dê privacidade e conforto, seja para um descanso entre as tarefas ou para passar a noite, não demonstra qualquer tipo de discriminação, muito pelo contrário.
Diversos outros pontos me chamam a atenção na nota emitida. Primeiro, é preciso lembrar que a disciplina em questão é opcional. Não há obrigatoriedade de cursá-la para se obter o grau em arquitetura. Que direito esses jovens julgam possuir para exigirem que uma matéria, que não é sequer obrigatória, deva ser retirada da grade curricular da instituição? Eu também gostaria de perguntar àqueles que pretendem, um dia, exercer a profissão de arquiteto: quem eles acham que irão contratá-los? Qual é a resposta que planejam dar a um eventual cliente que lhes peçam para fazer o projeto de uma casa com dependência de empregada? Vão se recusar a fazê-lo por questões morais e éticas? Por que? Que ética é essa? Quem eles pensam estar ajudando com isso?
Outra questão é o nome da disciplina. Que importância tem se ela se chama “Casa Grande”, ou “Mansões – primeiros estudos”, ou “Choupana de Rico – módulo 1”? O que importa é que a denominação deixa claro que se trata de uma disciplina que busca ensinar os futuros arquitetos a projetarem residências de alto padrão, como já fizeram grandes nomes como Niemeyer, Frank Lloyd Wright, Le Corbusier e tantos outros. Mas os ilustres aspirantes a arquitetos que assinaram esse despautério acreditam que qualquer conhecimento que contrarie suas ideologias não deve ser ministrado. Não deve e não pode ser ministrado, mesmo àqueles que desejam adquirir o conhecimento e a formação. Que atitude “democrática”, não? Penso que, agindo assim, talvez os signatários dessa lamentável nota de repúdio se sintam como o grande arquiteto do universo, e se julguem superiores a ponto de determinar o que deve ou não ser ensinado em uma universidade pública. E é profundamente lamentável que o universo de cada um deles seja tão tacanho, tão pobre e tão limitado!