Vivi muito tempo longe do mundo dos pets. Depois de casado, me convenci de que não teria tempo, espaço e disposição para cuidar de qualquer animal doméstico. Os dois argumentos iniciais não passavam de desculpas para o terceiro, mas foram eficazes nos discursos que costumava repetir quando o assunto vinha à tona. Àquela altura, tinha sido dono de cachorro apenas na infância (o termo “tutor” só seria exigido 4 décadas depois). Zandor, um dálmata doce e brincalhão, foi meu fiel companheiro durante anos.
O nascimento do Arthur prometia findar minhas promessas de isolamento. “Pode escrever: mais cedo ou mais tarde, você vai comprar um cachorrinho pra ele” – diziam os promotores de uniões humano-caninas. De fato, aos 6 ou 7 anos, Arthur passou a requisitar – com irritante constância – a presença de um novo melhor amigo. A insistência deu resultado. No lugar do cãozinho, ganhou um irmão.
Superada a investida, pensei estar definitivamente livre de qualquer ameaça de olhos límpidos e patas sujas. Satisfazia-me brincando com os pets dos amigos, ou acompanhando muitos deles serem eternizados por seus tutores. Vi Tião e Duda transformarem-se em personagens deliciosos nas crônicas de Eduardo Affonso. Cora Rónai fizera o mesmo com Tobias, Toró, Tiziu e Mafalda. Cães e gatos têm personalidades diferentes até na literatura.
Ao concluir o ensino médio, Arthur decidiu que iria estudar fora. Teríamos alguns anos de encontros esporádicos pela frente, fora o risco de que ele acabasse ficando por lá. Guilherme estava desolado. Eu? Eu não, sou forte e sei que os filhos são mesmo do mundo. Mas percebi que chegara o momento de reavaliar uma de minhas mais arraigadas certezas. Foi assim que Val entrou nas nossas vidas.
Ela já não apresentava sinais evidentes de maus tratos quando a vimos pela primeira vez. Tinha sido resgatada há coisa de um mês. Ainda estava magra, e trazia uma inquietante indiferença no olhar. Caberia a nós conquistar sua confiança. Demos a ela o nome da faculdade onde o Arthur iria estudar: Valencia (eu sei, nem é preciso que Freud explique). Quando ele partiu, ela fez do vazio seu novo lar.
Val faz parte da família há mais de 4 anos. É mansa, discreta, mas sabe como ninguém a hora de se aninhar no meu colo. É a primeira a me receber quando abro a porta da sala. Pula, faz festa, sorri (sim, ela sorri). Estar com ela é estar em paz. Já me disseram que pareço ainda mais feliz ao seu lado. Será? Talvez seja só impressão, como aquela vez em que me chamaram de pai de pet. Eu? Eu não, sou forte e acho essa coisa de amar um cão como se fosse gente uma enorme bobagem.