– Bom dia. Fui convocado para o curso de reciclagem, mas não tem nenhuma multa lançada na minha habilitação. Deve estar havendo algum engano.
– Bom dia, senhor. A reciclagem não é para motoristas. Serão aulas de revisões conceituais.
– Não entendi.
– Certamente o senhor andou se esquecendo de alguns conceitos fundamentais. O objetivo do curso é relembrá-los.
– Será que você poderia ser um pouco mais clara? Continuo sem entender nada.
– Deixe-me acessar seu processo para poder explicar melhor. Sua identidade, por favor.
– Aqui está.
– Sr. Ernesto, vejo aqui que sua reciclagem será longa. Seus conceitos têm alto grau de deturpação.
– Que absurdo. Vocês querem moldar meu jeito de pensar?
– Imagine, senhor. Cada um é livre para pensar como quiser, desde que o léxico seja respeitado.
– Você deve estar brincando. Tenho dois cursos superiores. Sei muito bem o significado das palavras.
– Não é o que diz seu histórico.
– Meu histórico? Cadê minha privacidade?
– Nossos relatórios levam em conta apenas suas publicações públicas, feitas em redes sociais abertas. Mas o exemplo é válido. O que significa privacidade para o senhor?
– Que nenhuma enxerida como você tem o direito de acessar e divulgar meus dados, especialmente com o objetivo de me constranger.
– Veja só que interessante, Sr. Ernesto. No final do ano passado o senhor fez diversas postagens exigindo que os nomes e endereços dos técnicos da Anvisa que aprovaram a vacinação infantil contra Covid fossem revelados. Eles também não tinham direito à privacidade?
– É diferente. São esquerdistas que queriam colocar a saúde dos meus filhos em risco. Ainda bem que nem eu nem eles nos vacinamos.
– E não se vacinaram por quê?
– Porque toda pessoa de bem sabe que essa pandemia foi uma fraude. Bastava tomar cloroquina toda semana.
– Então o senhor se recusou a tomar vacinas aprovadas pelas agências de saúde do mundo inteiro, enquanto usava um medicamento rejeitado por essas mesmas agências?
– E não me arrependo.
– Bom, não preciso mais questioná-lo sobre o conceito de lógica…
– Chega! Já vi que isso aqui é mais uma vertente da censura que nos cerca. Só não quebro essa espelunca porque sou um democrata.
– Verdade? Ontem mesmo o senhor fez uma convocação para o 7 de setembro pedindo para todos irem às ruas autorizar o presidente a dissolver o STF e o STE, e a impedir que as eleições sejam realizadas com urnas eletrônicas. Esse seria um ato democrático, na sua visão?
– É a nossa única saída pra escapar do comunismo. Por que vocês não vão atrás dos caras que apoiam ditaduras pelo mundo afora?
– Além do senhor, não é? Pois fique tranquilo, nossos professores estão agora mesmo dando aulas para um grupo de petistas que se consideravam pacíficos, mas aplaudiram quando uma pessoa que xingava a Dilma quase foi assassinada; defensores da liberdade, mas não conseguiam entender qual é a diferença entre um governo longo na Alemanha e na Nicarágua; honestos, mas entendiam que somente políticos de direita mereciam ser presos; e sensatos, mas passaram meses acampados em Curitiba chamando Lula de deus. Aqui não escolhemos lados.
– Pois eu já escolhi o lado de fora. Tô indo embora. Não iria me sujeitar a ter aulas a essa altura da vida, mesmo que os professores tivessem doutorado.
– Doutorado? Sr. Ernesto, os conceitos que lhe faltam são muitos básicos. Nossas aulas são ministradas por professores primários…