Ele aguardava na sala de espera há quase meia hora quando ela chegou. Vestia um tailleur pérola que delineava seu corpo esbelto. A maquiagem que realçava seus olhos verdes não era capaz de esconder o olhar vacilante. Conseguia, no entanto, se equilibrar com elegância sobre os saltos agulha recém-adquiridos. Ele tentou não sorrir ao vê-la. Não conseguiu. Ela respondeu com um aceno de cabeça quase imperceptível e endureceu o semblante. Sentou-se na poltrona em frente à dele, cruzou as pernas bem torneadas e abriu a bolsa em busca do celular.
A secretária lhes serviu café e informou que a reunião começaria em breve. Ambos haviam concordado em procurar um único advogado para a abertura do processo de divórcio. Sempre se deram bem, não existiriam motivos para disputas ou litígios. Entre um gole e outro, ele perguntou pelas meninas. Ela, pela sogra, a quem tinha como mãe. Seguiram-se longos minutos de um silêncio constrangedor que ela, por fim, decidiu quebrar:
– Li o seu conto.
– Qual deles?
– “Subindo pelas paredes”, ou coisa parecida.
– Gostou?
– Sim.
– Que bom.
– Literal, né?
– Achou?
– Sim, bem diferente dos outros.
– Diferente como?
– Sei lá, as imagens são tão palpáveis.
– Palpáveis? Se passa num sonho.
– E a descrição das imagens de um sonho não podem ser palpáveis? – perguntou, revirando os olhos.
Ela detestava quando ele dizia o óbvio para sustentar seus pontos de vista. Ele, por sua vez, não tinha paciência com sua dificuldade em ir direto ao assunto. Ela continuou:
– A personagem parece bem apaixonada.
– Deu essa impressão?
– Por quê? Não está?
– Não pensei nisso quando escrevi.
– Pensou em quê?
– Ué, numa mulher decidida, que quer se libertar, viver novas experiências, essas coisas.
– Principalmente na cama, né?
– Também. Algum problema?
– Nenhum. Mas quando estávamos juntos você escrevia sobre esses assuntos com mais cerimônia.
Agora quem revirou os olhos foi ele.
– Não tem nem duas semanas que eu saí de casa. Quando comecei a escrever ainda estava lá.
– Pior ainda.
– Pior ainda por quê?
– Porque claramente não foi em mim que você se inspirou.
– Não me inspirei em ninguém.
– Ah, conta outra.
– Eu sempre escrevi sobre relacionamentos, você sabe.
– Mas muito pouco sobre sexo.
– Várias e várias vezes. Você está sendo seletiva por conveniência.
– Não estou não. Comigo era no máximo um “papai e mamãe” velado e olhe lá.
– Que bobagem é essa? A gente nunca teve pudores na cama.
Ela engasgou. Tinha que admitir que aquilo era verdade.
– Não estou falando da gente. Falo de mim como personagem dos seus textos.
– E quem disse que era você?
– Ah, não? Quem era, então?
– Eu sou escritor. Eu invento personagens.
– Não me venha com essa. Você sempre me disse que se inspirava nas pessoas.
– Me inspiro nas características que observo. Só isso.
– Pois é, que tipo de piranha você anda comendo que gosta de se lambuzar de mel?
Ele ameaçou se levantar, mas recuou.
– Nem vou responder. Você sabe que eu não gosto de mel.
– Mas essa última sirigaita parece que conseguiu mudar seus gostos.
– Já disse que aquilo é um personagem.
– Garanto que era chantilly e você trocou por mel só pra disfarçar.
– A única vez que usei chantilly numa transa foi com você e há uns dez anos.
Ela suspirou. Olhou em volta para se certificar de que ninguém os ouvia.
– Pois é. E nunca escreveu uma linha a respeito.
– Trabalho com contos e crônicas. Não tenho blog de dicas sexuais.
– Mas parece que vai começar um. Fiquei horrorizada com aquela descrição.
– Que descrição?
– Você sabe.
– Não faço ideia.
– Da língua. Não parece seu estilo.
– A língua lambe? Intertextualidade pura. Mérito do Drummond.
– Carlos Drummond de Andrade?
– Ele mesmo.
– Não conhecia.
– Pesquisa aí. É curtinho.
Ela pegou o celular e leu o pequeno poema. Tentou se conter, mas seus olhos brilharam.
– Nossa. Forte, né? Então o mel…
– É só uma metáfora. Criei um paralelo com as pétalas.
– Puxa, ficou muito bom.
– Obrigado.
– Então… não se inspirou em ninguém mesmo?
– Já disse que não.
– E você continua não gostando de mel?
– Detesto.
Ela hesitou por um momento, levantou os olhos e disse:
– E de chantilly, ainda gosta?
– Cada dia mais – respondeu, num sorriso.