O ritual se repete há quase cinco meses. Texto da semana impresso, caneta e papel à mão, fones de ouvido conectados. O pessoal do escritório se despede de mim com antecedência. Todos já sabem do meu compromisso e da minha indisponibilidade momentânea para clientes, fornecedores e problemas. Fecho a porta da minha sala e lá permaneço por duas horas ou mais. Serão horas de meditação. Acesso o link da aula dez minutos antes, corto a conexão meia hora depois. Nesse intervalo, sou deleite, sou acalanto, sou lágrima, sou ombro. Ouço mais do que falo, sorrio mais do que choro, aplaudo bem mais do que sou aplaudido. Sou discípulo.
Preparo-me agora para o último ritual deste ano. Para um descanso que não anseio, afinal, desde o dia 28 de julho, as noites das terças-feiras têm sido minhas férias. É quando viajo para terras distantes que agora me parecem íntimas. Embarco munido de malas vermelhas repletas de caixas cor do mar, de queijos em forma de bola, de sabores e de perfumes. Levo de tudo: fotografias, vasos trincados, memórias. Formigas e elefantes me acompanham, seguidos por cães e borboletas amarelas. Tamanha bagagem não me pesa. Meu roteiro passa por pequenos lugarejos e grandes metrópoles. Tem cheiro de mar, de asfalto, de montanha. Tem cheiro de vida. A cada viagem, ricas e inesquecíveis histórias.
Nas minhas andanças, conheci gente que namorou no portão e foi da geração que inaugurou a pílula anticoncepcional. Gente doce e espevitada. Saboreei iguarias preparadas no fogão a lenha: o corte da carne em bisel e em lâminas bem finas, a fritura na panela de ferro até ficar dourada, o perfume do arroz de carreteiro, receita da mãe. Visitei antigos armazéns com estantes até o teto e caixas de madeira que guardavam arroz. Não resisti e lá mergulhei meus braços. Presenciei o diálogo definitivo em que criatura se despede do criador e aprendi que o maior dos deuses é o das grandes perguntas. Fui apresentado ao senhor Caramujo e percebi que eles – os caramujos – são exímios poetas quando bem acompanhados. Vi uma mãe passear de mãos dadas com suas filhas. Escolas azuis, lanchonetes, cachorros-quentes e saudades fizeram parte daquela caminhada. Ali entendi que somos como carretel e bobina, nessa grande costura que é a vida: duas linhas que, mesmo em planos diferentes, seguem entrelaçadas. Na minha frente, palavras ébrias de uma boca silente se verteram em afluente, torrente, enchente. Ouvi aquela voz no firmamento de anil e me encantei por ela. Conheci modelos com roupas de festa feitas de timidez e trajes de nada bordados de pressa. Disfarces e ilusões desfilaram diante dos meus olhos. Testemunhei a palavra dar forma aos fatos intangíveis, se transformar em esperança para a moça triste e sozinha na praça, emitir luz como um flash perene, que a tudo ilumina. Entrei em uma sala de cinema e acompanhei as projeções de um passado de entrega e um futuro de fé, que me envolveram num turbilhão de sentimentos liderados pelo amor. Vi, por fim, um gênio destruir Buenos Aires por engano, ser Tostão por um segundo, saudar as proparoxítonas de forma mágica e, com um simples “boa noite”, ganhar a atenção de todos.
Fiz amigos. Fiz muitos amigos. Amigos que pareço conhecer há várias vidas. Daqueles que você começa a bater papo e não quer que as horas passem. Daqueles que você precisa dividir textos, experiências, lágrimas, sorrisos e vinhos. Daqueles que você pode zoar sem melindres, discordar sem ressalvas, mostrar-se sem camuflagens. Daqueles que você já admirava de longe mas, quando se aproxima, percebe que são ainda mais especiais do que imaginara. Daqueles que você realmente ama. Não deveriam ser todos assim?
Minha viagem parecia simples mas, assim como o deus das pequenas coisas, se tornou sublime. Desentranhei memórias que julgava perdidas, dialoguei comigo mesmo, proseei com muita gente, sentado em um banco frente a um horizonte sempre belo. Compus imagens e canções que me fizeram filosofar sobre as razões de se estar vivo e de querer contá-las. A intertextualidade me inspirou a continuar minha busca. Ao final da caminhada, eu e as palavras estávamos entrelaçados. A hora da chegada se aproxima e já vislumbro novamente a minha sala, onde tudo começou. As normas da circularidade foram seguidas: o local é o mesmo, o personagem não mais. Aquele que partiu retorna outro, mais leve, mais pleno. Despiu-se aos poucos de suas máscaras e as largou nos parágrafos, nas frases, nas metáforas em que mergulhou nos últimos meses. A viagem pela escrita o ensinou a se ler melhor.
Suspiro.
Fecho os olhos.
Agradeço.
Hoje, finalmente, a crônica sou eu.