Aspirações coordenadas…

plano_cartesiano

O Coronavirus já mudou o Brasil e o brasileiro. Ainda longe de qualquer perspectiva de término, a pandemia já pode ser considerada um divisor de águas em nossa sociedade. Não que divisores de água sejam raros na nossa história mas, em uma análise antropológica mais apurada, a atual mudança merece um destaque especial.

Se analisarmos apenas os últimos vinte anos, por exemplo, a sociedade brasileira já se dividiu de diversas formas: Lula x FHC, PT x PSDB, petralha x coxinha, vermelho x verde e amarelo, golpe x impeachment, anta x pato amarelo, Haddad x Bolsonaro. Claro, ao longo de todas essas mudanças vivenciamos também pequenas divisões pontuais: vai ter Copa x não vai ter Copa, Lewandowski x Rosa Weber, Lula livre x ele tá preso, babaca, Democracia em Vertigem x O Mecanismo. Sim, caros leitores, e não vale o argumento de que vocês não se identificavam com nenhuma dessas correntes de pensamento. Talvez não tenham notado, mas nunca houve outras opções disponíveis. Ou vocês estiveram de um lado ou de outro, simples assim. Mas hoje, finalmente, atingimos um novo patamar.

Só mesmo uma pandemia em escala global seria capaz de tal façanha. A mesma pandemia que nos mostrou que há mais especialistas em Coronavirus no Brasil do que em toda a comunidade científica mundial. Que fez com que os sons de aplausos e panelas ecoassem democraticamente pelas ruas das cidades desertas. Que explodiu as consultas ao Google sobre as gripezinhas que mais mataram na história da humanidade. Que fez as pessoas perceberem o quão pouco haviam se dedicado à geografia no ensino médio. Que trouxe arrependimento àqueles que não tinham em casa um grande estoque de cerveja e um ainda maior de rivotril.

Pois bem, graças ao Coronavirus, a partir de agora a sociedade brasileira oficialmente se divide entre isolamento horizontal e isolamento vertical. Convenhamos, mais didático do que isso é impossível. Desde os longínquos e simplórios tempos de esquerda e direita, a nossa sociedade não havia encontrado conceitos tão graficamente evidentes. Mas com um inequívoco avanço: deixamos de lado a unidimensionalidade e alcançamos o plano cartesiano.

Perceberam a importância da coisa? Agora temos Descartes e podemos, finalmente, deixar Marilena Chauí e Olavo de Carvalho para trás. Imaginem todas as possibilidades abertas à nossa sociedade. Imaginem todas as composições possíveis. Pela primeira vez, aqueles que se identificam com pontos ora na horizontal e ora na vertical terão forma, serão vistos. Podem ser apenas pequenos pontos flutuando mansamente em um dos quadrantes. Mas poderão se tornar diagonais, ângulos, hipérboles, espirais, circunferências, elipses, parábolas. Ah, as parábolas. Quanto conhecimento e quanta sutileza elas são capazes de guardar. Poderemos acessá-las pela primeira vez. Um novo mundo muito mais livre acaba de se abrir diante de nós.

Quem diria que uma epidemia que nos condenou à reclusão poderia nos proporcionar tamanha liberdade. Liberdade inclusive para aqueles que quiserem se manter exclusivamente na horizontal ou na vertical. Entretanto, diante de um novo mundo tão rico e tão vasto, só não venham depois reclamar de solidão…

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