No consultório psiquiátrico…
– Doutor, o senhor tem que me ajudar. Tem meses que não consigo dormir mais do que duas horas por noite.
– A sua dificuldade é para pegar no sono?
– Não, doutor. Durmo com facilidade. Mas tenho pesadelos horríveis e acordo logo depois.
– Que tipo de pesadelos?
– Eles variam bastante, mas o final é sempre o mesmo.
– E o que acontece no final?
– Eu sou cancelado, doutor!
– Não entendi o que é cancelado no seu sonho. Sua inscrição, sua matrícula, seu CPF?
– Não, doutor. Eu mesmo é que sou cancelado.
– É normal sonharmos com situações impossíveis.
– Mas esse é justamente o meu medo, doutor: ser cancelado na vida real.
– Meu caro, nenhuma pessoa pode ser cancelada.
– Doutor, em que mundo o senhor vive? Pessoas são canceladas a todo instante.
– Que bobagem. O que faria uma pessoa ser cancelada?
– Aí é que está, doutor. Basta ter opinião própria sobre algum assunto. E muitas vezes ela nem precisa fazer nada. Tudo é imprevisível demais. Não consigo conviver com esse medo. Por favor, eu só lhe peço que me receite um sonífero bem forte.
– Olha só, não sou do tipo que prescreve remédios para dormir logo de cara. Vamos buscar uma solução mais saudável, mudar sua rotina. Você gosta de música?
– Só MPB, doutor.
– Ótimo, antes de dormir escute meia hora de música pra relaxar. Sugiro Chico, Caetano, Gil…
– Não posso, doutor. Todos eles foram cancelados.
– Cancelados por quem?
– Pela direita.
– Bom, então ouça alguém mais antigo. Gosta de Raul Seixas?
– Também foi cancelado, doutor. Só que pela esquerda.
– Mas Raul sempre foi de esquerda.
– Pois é, para o senhor ver o risco que todo mundo está correndo.
– Esquece a música, tenta ler um livro antes de dormir. Gosto dos livros do Karnal, do Cortella e do Pondé.
– Cancelado, cancelado e cancelado.
– Não é possível. Por quem?
– Ah, esquerda e direita disputam o cancelamento desses três à tapa. Depende do dia, do que dizem e de quem tirou foto com eles.
– Tá bom. Esquece o livro. Assista a um bom filme antes de dormir. Vai te fazer pensar em outras coisas. Você assina a Netflix?
– Foi cancelada, doutor.
– Então reative a sua assinatura.
– Não foi a minha assinatura. O canal foi cancelado.
– Por quê?
– Bom, entre outras coisas por chamar o impeachment da Dilma de golpe e por chamar o PT de corrupto.
– Mas esses motivos são antagonistas.
– Bem lembrado. O Antagonista já nasceu cancelado por um lado e agora está pelos dois. Se juntou a todos os outros jornais que estão na categoria “hors concours” do cancelamento.
– Ninguém foi “descancelado” até hoje?
– Impossível, doutor. Quando um lado “descancela” alguém, o outro o cancela imediatamente.
– Olha, você está falando só de gente famosa, de grandes empresas. Nós, pessoas comuns, não corremos nenhum risco de cancelamento.
– Doutor, o senhor já ouviu falar de Lucas, Tulla, Everton, Hadson?
– Não, nunca.
– Pois é, todos cancelados. Estou lhe dizendo, não vai sobrar ninguém.
– É, meu caro, acho que só rezando mesmo.
– Doutor, eu sou católico e nesta semana até o Papa foi cancelado.
– Aqui está a sua receita. Tem três soníferos aí. Tome todos juntos. Um só não vai fazer efeito algum…