– Bom dia, vim para o Natal deste ano.
– O nome do senhor, por favor?
– Jesus Cristo.
– Sim, mas qual deles?
– Não entendi.
– Estou me referindo às suas experiências como Jesus, seu currículo, onde o senhor nasceu…
– Nasci em Nazaré, é claro.
– O senhor poderia aguardar naquela sala junto com os outros candidatos?
– Outros candidatos? Candidatos a que?
– À vaga de Jesus Cristo, naturalmente.
– Mas eu sou Jesus Cristo.
– Querido, todos ali também são.
– Deus do céu!
– Perdão, as vagas para Deus do céu ainda não foram abertas.
– É só força de expressão. Mas deve estar havendo algum engano. Eu sou único.
– Que veio de Nazaré, pelo menos até agora, o senhor é o único mesmo. Ainda assim a concorrência está muito acirrada.
– Tem quantos candidatos?
– Deixe-me ver. Até agora tem dez, incluindo o senhor.
– Dez? Virgem santa!
– As vagas pra virgem santa já foram preenchidas. Se bem que a virgindade não foi usada nem como critério de desempate.
– Deixa pra lá. É que eu nunca tive que passar por uma seleção deste tipo antes.
– Os Natais estão acompanhando a diversidade do mundo moderno. Todos querem se sentir representados.
– Diversidade? Não estou entendendo mais nada.
– Vieram candidatos de todas as épocas e de todas as manifestações artísticas. Está vendo aquele baixinho de cabelo curto e sem barba?
– Sim.
– É o mais velho que apareceu por aqui. Veio do século IV depois de… bom, do senhor. Essas representações foram banidas a partir do século VI, quando o cristianismo adotou a imagem de Cristo com barba e cabelos compridos.
– E ele quer ser Jesus neste Natal, dezessete séculos depois?
– Tem gente que acha que aquela é a verdadeira imagem de Cristo.
– E aquele ali todo coberto com um pano preto?
– Aquele é do carnaval de 1989. Criação de Joãosinho Trinta. Foi censurado pela igreja do Rio de Janeiro.
– Censurado? Por quê?
– Porque mostrava Cristo vestido como mendigo.
– E o que há de mal nisso?
– Não sei lhe dizer, senhor. Mas outros ali também enfrentaram problemas do tipo.
– Quais?
– Bom, os dois Cristos americanos são de filmes condenados pelo Vaticano, aquele com vários braços estava em uma exposição que foi fechada no ano passado, os representados por pessoas negras e homossexuais foram perseguidos e aquele do fundo foi proibido por ser considerado “humano demais”.
– Não acredito.
– O último a chegar antes do senhor foi o Cristo que estava no filme de um grupo de humoristas. Muita gente está tentando tirar o filme do ar porque aquele Jesus foi seduzido por um Lúcifer gay.
– Todas essas versões minhas foram censuradas de alguma forma?
– Parece que sim.
– Mas nenhuma delas sou eu de verdade. As pessoas não entendem isso?
– Elas dizem que estão zelando pela sua imagem.
– Elas deveriam se preocupar mais com a minha palavra.
– Elas alegam que a sua palavra também está sendo deturpada.
– Sempre transmiti uma mensagem de paz e tolerância. E é bom que o meu nome esteja sendo usado para reflexões e questionamentos, para que uma pessoa possa sorrir ou simplesmente para que alguém se sinta representado. Muito melhor do que usá-lo para justificar conflitos e guerras.
– Muitos consideram algumas manifestações ofensivas à fé das pessoas.
– A verdadeira fé não deveria se importar com manifestações artísticas e opiniões alheias. Nunca exigi que todos cressem em mim.
– Bom, vou acompanhar o senhor até a sala.
– Não é necessário. Estou de saída.
– Por quê? Não vai mais participar da seleção? Acho que o senhor iria ganhar de lavada.
– Não preciso mais, filha. Já vi que estou muito bem representado.