A imponente porta se abriu com um esforço muito menor do que eu imaginara. Tinha quase três metros de altura e sua largura era o dobro das demais portas daquele casarão. Ainda não sabia o que esperar daquele cômodo prestes a ser desvendado, mas um frio na espinha me dizia que aquela experiência poderia mudar meus parâmetros.
Era um salão enorme e a bruma que escondia boa parte da fachada externa do palacete parecia ter adentrado o cômodo longilíneo. Oito janelas simetricamente posicionadas em ambos os lados emprestavam ao local a solenidade de uma nave. A luz que conseguia vencer a densa neblina, embora difusa, era suficiente para que todo o ambiente se desnudasse. Dois largos degraus ao fundo levavam a uma espécie de altar desprovido de imagens sacras. No centro do patamar elevado, um grande candelabro pendia de um teto ornado com pinturas de instrumentos e notas musicais. Mas o que havia de mais sagrado naquela sala se localizava em cada uma de suas paredes. Estantes com pelo menos quatro metros de altura repletas de novos e antigos livros compunham uma visão quase cinematográfica, como se um filme de época estivesse para ser rodado a qualquer momento naquele cenário. Sob o candelabro, cercada por outras estantes nas laterais e ao fundo, uma mesa de Pinho de Riga fazia as vezes de parlatório. A sobriedade daquele ambiente se contrapunha a uma inequívoca sensação de aconchego.
Atravessei todo o salão vagarosamente, na tentativa de identificar alguns dos títulos e autores das centenas de obras ao longo do caminho. Não consegui, entretanto, vencer a cerimoniosa distância que se espera de todo primeiro encontro. Subi os degraus rumo ao piso elevado e o ranger do assoalho de madeira ecoou pelo ambiente como o badalar dos sinos de uma silenciosa catedral. Dei a volta na mesa, afastei a generosa poltrona revestida com um surrado veludo vermelho e ali me sentei. A visão do lado oposto do cômodo era ainda mais impactante e cheguei a me questionar se era a bruma que entrava pelas frestas das janelas ou se esta nascia naquele ambiente para só então transportar sua misteriosa aura ao exterior. Havia alguma coisa mágica naquele lugar e eu não queria mais sair dali.
Sobre a mesa, repousavam uma pequena caixa de música e um violão. Não ousei tocar no instrumento mas instintivamente abri a caixinha de música. Ouvi as primeiras notas de uma deliciosa valsa quebrarem o silêncio absoluto. De repente, os singelos sons passaram a reverberar em cada estante daquele salão e retornaram à mesa na forma de uma verdadeira orquestra, completa e harmoniosa. Eu não conseguia acreditar no que ouvia. Aquele concerto quase etéreo não poderia ser fruto de meras questões acústicas. Levantei-me da poltrona e me dirigi às estantes. A harmonia do concerto não se perdeu e vi que, oriundos de muitos livros, os sons dos mais diversos instrumentos podiam ser identificados. Violinos, trompetes, oboés, flautas, violões, contrabaixos e até um piano executavam um arranjo primorosamente concebido que completava com maestria o tema melódico performado pela pequena caixa de música sobre a mesa. Tomado pela emoção, tirei diversas obras das prateleiras e percebi que as páginas cantantes eram parte de calhamaços de partituras musicais. Atordoado, coloquei os livros de volta nas estantes e me sentei novamente na poltrona em frente à mesa. Então mantive meus olhos fechados até que a última nota daquela sinfonia foi tocada. E o silêncio voltou a reinar naquela sala.
Não tardou muito e um outro som me retirou do estupor em que mergulhara. Abri os olhos e me deixei ser guiado por um sussurro que parecia vir de uma estante próxima à entrada. Não se tratava mais de música. Eram palavras. Palavras recitadas por uma voz pausada e suave que, à medida em que me aproximava da sua origem, ficavam cada vez mais nítidas. Foi quando ouvi com clareza: “Nenhum homem sábio deixará de se espantar com a cegueira do espírito humano. Ninguém permite que sua propriedade seja invadida, e, havendo discórdia quanto aos limites, por menor que seja, os homens pegam em pedras e armas. No entanto, permitem que outros invadam suas vidas de tal modo que eles próprios conduzem seus invasores a isso. Não se encontra ninguém que queira dividir sua riqueza, mas a vida é distribuída entre muitos. São econômicos na preservação de seu patrimônio, mas desperdiçam o tempo, a única coisa que justificaria a avareza”.
Não hesitei. Tomei o livro de Sêneca nas mãos e o levei comigo. Poucos dias depois voltei para devolvê-lo à sua prateleira e ficar atento ao que a voz pausada e suave me reservava. E assim conheci Goethe, Kant, Sartre, Carlos, Cecília. Assim ouvi Ludwig, Wolfgan, Peter, Heitor, Fabio. Assim ainda os revisito, ouço e sou apresentado a tantos outros. Todos naquela sala. Todos naquele altar…