Não estava nos meus planos me manifestar sobre o polêmico caso das mensagens hackeadas, mas tenho lido tantos textos rasos e simplistas (com raras e honrosas exceções) que resolvi deixar de lado os memes e as opiniões alheias para ler a reportagem completa publicada há três dias no site “The Intercept Brasil”. E aqui vão as minhas observações. Para quem não a leu, a reportagem se divide em quatro partes. A primeira é uma espécie de editorial autopromocional intitulado “Como e por que o Intercept está publicando chats privados sobre a Lava Jato e Sérgio Moro”. Há muito o que se comentar sobre essa introdução mas vou deixar para fazê-lo ao final das minhas ponderações.
A segunda e a terceira partes, cujos respectivos títulos são “Procuradores da Lava Jato tramaram em segredo para impedir entrevista de Lula antes das eleições por medo de que ajudasse a eleger o Haddad” e “Deltan Dallagnol duvidava das provas contra Lula e de propina da Petrobras horas antes da denúncia do tríplex”, mostram trechos de mensagens trocadas entre os próprios procuradores. Por mais parciais, tendenciosos e sensacionalistas que sejam os títulos, não há nas mensagens um único indício de que algo ilícito ou antiético tenha ocorrido. Os procuradores apenas trocaram opiniões, pontos de vista e estratégias de apresentação das denúncias. Não há evidências de “trama” alguma na segunda parte, no máximo indignação e revolta. Não há evidências de dúvida quanto “às provas contra Lula” na terceira, apenas cautela para que cada ponto da denúncia estivesse efetivamente caucado em fatos. Sim, as mensagens deixam muito claro que eles detestam Lula e o PT. Sim, eles têm convicção de que Lula e o PT são um desastre para o país. Mas não há uma única falsa evidência plantada, um único depoimento inverídico solicitado, uma única prova de inocência ocultada. Ou seja, não há nada que deponha contra a seriedade dos procuradores. São colegas de uma mesma equipe manifestando suas percepções em um ambiente – assim pensavam – absolutamente privado. Assim como fazem diariamente quase a totalidade dos jornalistas de cada um dos veículos de comunicação deste país. Assim como fazem políticos, magistrados, professores, estudantes e profissionais de todas as áreas quando estão em seus ambientes – repito e enfatizo – privados.
A quarta e última parte da reportagem, a única que efetivamente mostra conversas envolvendo o ex-juiz Sérgio Moro, tem a seguinte chamada: “chats privados revelam colaboração proibida de Sérgio Moro com Deltan Dallagnol na Lava Jato”. E aqui vai uma percepção que tenho não de agora: Sérgio Moro é uma pessoa focada e determinada mas também extremamente vaidosa e competitiva. Ele definitivamente não entra em um jogo para perder. E já mostrou, diversas vezes, que sempre esteve disposto a “ampliar” os limites das suas atribuições como juiz. Entretanto, embora pareça contraditório, não fosse por essa vaidade exacerbada, dificilmente Moro teria tido a coragem de enfrentar as mais poderosas e mais corruptas figuras e corporações do país. Não há amor à pátria puro e simples que justifique tamanho risco. Posto isso, não vi nas conversas divulgadas entre ele e Deltan nada que me parecesse ilícito ou inadequado. Sim, sei perfeitamente que acusador e julgador deveriam se manter distantes mas é público e notório que ambos trabalhavam conjuntamente, tanto que sempre foi consenso entre todos os órgãos de imprensa chamar a ambos de integrantes da força-tarefa da Lava Jato. Também é público e notório que tal distância jamais foi verdadeiramente respeitada no judiciário brasileiro. Mesmo assim, não identifiquei ordens de um que tenham sido seguidas cegamente pelo outro e tampouco submissões tácitas a quaisquer sugestões. Mais uma vez, meras observações feitas em um ambiente privado.
Dizem alguns poucos que tais conversas poderiam levar à nulidade de todas as ações da Lava Jato. Se isso de fato acontecer será o maior retrocesso ocorrido no país desde que Cabral aportou por estas bandas. A Lava Jato conseguiu desmontar o maior esquema de corrupção da história da humanidade. E o fez apresentando provas inquestionáveis, recuperando valores jamais obtidos por nenhuma outra operação policial, levando à cadeia poderosos empresários e políticos até então intocáveis. Além do mais, se tais conversas constituíssem mesmo motivos para a nulidade de todo o processo, quais ministros do STF teriam legitimidade para julgá-lo? Gilmar Mendes e suas conversas mais do que indiscretas com Aécio Neves (legalmente obtidas, diga-se de passagem)? Lewandowski e seu teatro previamente combinado com Renan e o PT no impeachment de Dilma? Marco Aurélio Mello e sua conexão mediúnica com os advogados de Lula, capaz de fazê-los antever sua tresloucada decisão quanto à prisão em segunda instância e impetrarem um complexo pedido de habeas corpus imediatamente após a publicação da liminar? Alexandre de Moraes, Toffoli e suas decisões monocráticas pela volta da censura? Sejamos honestos, exemplos de limites ultrapassados são pródigos no judiciário brasileiro. Lamento apenas que os patriotas hackers não tenham se interessado pelos celulares dessa gente.
No seu editorial de abertura, a reportagem faz críticas ao fato de Moro ter autorizado a divulgação da íntegra dos diálogos do ex-presidente Lula, ao mesmo tempo em que se vangloria pela divulgação atual somente das mensagens “que revelam transgressões ou engodos por parte dos poderosos”. Mais adiante, informa que os envolvidos não foram contatados antes da publicação por receio de que medidas impeditivas fossem tomadas e pelo fato dos documentos “falarem por si”. Termina afirmando que “a transparência é crucial para que o Brasil tenha um entendimento claro do que eles realmente fizeram”.
Pois bem, acho no mínimo curioso que os responsáveis pela reportagem se autoavaliem como éticos e profissionais ao divulgarem mensagens obtidas ilegalmente através da atuação de hackers criminosos. O papel de antiético ficou, nesta deturpada visão, para aquele que autorizou a divulgação de gravações feitas com a devida autorização judicial prévia. Também me causa espanto o fato dos autores da reportagem clamarem por transparência enquanto se promovem às custas de um crime. Se a transparência lhes é realmente tão cara, sugiro que abram eles próprios os sigilos de suas comunicações com os criminosos. Como foram obtidos tais documentos? A que custo? Acho que a transparência neste caso é tão crucial quanto aquela por eles defendida. Por fim, entendo que a bombástica divulgação das mensagens serviu apenas para reforçar a seriedade de uma operação que mudou a história do Brasil. Operação cujos números superlativos – esses sim – falam por si. Serviu também, é claro, para animar os membros da outra turma de criminosos que assaltou os nossos cofres públicos por décadas. Nos tempos de Shakespeare, muito barulho por nada rendia apenas uma ótima história e muitas gargalhadas. Hoje, infelizmente, serve a interesses bem mais soturnos.