Não é de hoje que considero a ópera como a mais nobre das manifestações artísticas teatrais. Faço essa colocação sem nenhum menosprezo a qualquer outra, aliás, muito pelo contrário. A ópera é particularmente especial justamente porque é ali que todos os demais gêneros se encontram. E se encontram de uma forma absolutamente harmoniosa, fluida, entrelaçada, evidenciando a relevância de cada um. Em uma produção operística, teatro, música, dança e canto se unem e se multiplicam. Todos são protagonistas. O canto lírico, por exemplo, é sempre mais emocionante em uma ópera pois cada nota cantada está indissociavelmente ligada à carga dramática de seu contexto. Já a orquestra deve ser sempre mais precisa pois a potência de um não pode sobrepujar a delicadeza do outro. A direção cênica de uma ópera é muito mais desafiadora, uma vez que a autenticidade da cena não pode ser perdida em momento algum, mesmo quando as mesmas palavras são repetidas inúmeras vezes, quando a duração do solo musical entre duas falas ocupa um tempo bem maior que o razoável para qualquer diálogo, ou quando coro e solistas cantam simultaneamente inúmeras frases distintas que devem ser inteiramente compreendidas. Iluminação, cenografia e figurinos são igualmente primordiais para que o espetáculo possa levar o espectador aos diversos ambientes propostos, concedendo agilidade e verossimilhança ao conjunto e, consequentemente, à história. E o maestro deve ter consciência de que seu papel, em uma ópera, é muito mais relevante do que apenas reger sua orquestra. Ele é o grande responsável pela justa distribuição de protagonismos. É ele quem deve ser generoso o bastante para permitir que todos brilhem, para que cada um se torne inesquecível. A ópera é, portanto, na minha visão, o mais belo, completo, justo e democrático de todos os gêneros teatrais.
Que bom que, em Belo Horizonte, há hoje tantas pessoas competentes ainda mais apaixonadas por ópera do que eu. O trabalho desenvolvido pela Fundação Clóvis Salgado nos últimos anos é algo realmente impressionante. Uma casa que, mesmo dispondo de recursos financeiros mais escassos a cada ano, tem conseguido produzir títulos com uma qualidade que, sem nenhum exagero, não fica devendo a muitas produções feitas por grandes e famosos teatros de ópera pelo mundo afora. Lucia di Lammermoor em 2015, Romeu e Julieta e O Guarani em 2016, Norma (eleita a melhor produção do ano no Brasil pela crítica especializada) e Porgy and Bess em 2017, La Traviata (também eleita a melhor produção do ano no país) e O Holandês Errante (primeira ópera de Wagner encenada em Minas Gerais) em 2018. Mais do que o número de títulos (que, diga-se de passagem, tinha tudo para ser bem maior caso houvesse maiores recursos disponíveis), o que chama a atenção é a qualidade dos diretores, solistas, cenógrafos, figurinistas e iluminadores que desfilaram seus talentos pelo palco do Grande Teatro nos últimos anos. Chama ainda mais a atenção a competência e o nível de excelência atingido pelo Coral Lírico e pela Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, em um trabalho primoroso comandado pelo maestro Silvio Viegas e pela diretora artística Claudia Malta, incansáveis em sua luta pela difusão da cultura em Minas Gerais.
Chegamos em 2019 e a FCS apresenta sua nova produção: O Elixir do Amor, de Gaetano Donizetti. A montagem atual não poderia ser mais surpreendente. O genial (não existe outra palavra para definir esse diretor) Pablo Maritano transporta uma história que originalmente se passa em uma aldeia italiana do século XVIII para dentro de uma escola de ensino médio. E o resultado é absolutamente brilhante. A história flui com naturalidade e a performance cênica e vocal dos solistas é impecável. Carla Cottini e Santiago Martínez estão perfeitos, Homero Velho está impagável como o valentão Belcore, e Homero Pérez-Miranda e Fabíola Protzner completam um elenco afinadíssimo de grandes vozes. O Coral Lírico está sensacional e particularmente inserido entre os alunos da escola. Iluminação, cenários e figurinos totalmente integrados com a proposta completam mais uma produção mágica, deliciosa e imperdível. Claro, a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais consegue entregar mais uma performance formidável, conduzida pelas competentes e experientes mãos do maestro Silvio Viegas, sem dúvida um dos melhores regentes de ópera hoje no Brasil. Mais uma vez uma produção mineira feita com talento, criatividade e competência, reforça meu amor por uma arte que está mais viva a cada ano. Que bom, afinal, ópera é bom demais da conta, sô!