Não consigo prever qual será o legado da grande crise que estamos vivendo. Tenho lido comentários os mais diversos, quase todos fortemente contaminados pelo viés ideológico de seus autores. De uma forma absolutamente simplista e leviana, direita e esquerda apontam seus respectivos culpados e se satisfazem com suas conclusões. Nada mais triste. Não há legado em uma discussão tão rasa, apenas a continuidade de um sistema vigente há décadas. Sistema que, pela primeira vez, recebe uma contestação forte o suficiente para que se inicie uma discussão bem mais aprofundada por parte de toda a sociedade brasileira. E essa discussão, essa esperança, essa faísca que agora se acende são, na minha opinião, as grandes oportunidades que temos para alterar paradigmas e mudarmos verdadeiramente os rumos do Brasil.
Uma análise profunda sobre o caos que tomou conta do país deve levar em conta vários aspectos, desde os comportamentais e sociológicos até os históricos e econômicos. Apesar de me incomodar imensamente, não vou tentar encontrar razões que expliquem a quase incontrolável tendência do brasileiro em levar vantagem sobre os outros. Essa “cultura do mais esperto” só será superada daqui a muitas gerações, dependendo do que viermos a fazer com a nossa educação daqui por diante. Vou procurar me ater, neste texto, aos aspectos que considero mais factíveis e importantes a curto prazo.
Algumas observações referentes à mencionada “cultura do mais esperto”, entretanto, estão diretamente ligadas às oportunidades prementes que não podem ser perdidas. Afinal, aproveitando-se da situação, muitos estão transformando fatos condenáveis em falsos exemplos do livre mercado, levando inúmeras pessoas, por ingenuidade, a acreditarem que a presença mais forte do Estado é a solução para todos os problemas do país. Esse conceito não poderia ser mais danoso. Há alguns dias, políticos e pessoas mal intencionadas tomaram um posto que dobrou o preço de seus combustíveis neste momento de desabastecimento como exemplo do funcionamento de uma economia liberal. Assim funciona o capitalismo selvagem, disseram eles. Na verdade, todos os envolvidos não passam de “espertos” buscando se aproveitar de um cenário caótico para conseguirem seus torpes objetivos. O empresário quer simplesmente arrecadar muito mais às custas do desespero dos consumidores. Os políticos, por sua vez, buscam recrutar mais e mais ingênuos aliados na disseminação de suas ideias intencionalmente deturpadas.
É fundamental que os brasileiros percebam que tal fato nada tem a ver com o livre mercado. Na verdade, trata-se do exemplo mais próximo do socialismo que vivenciamos nos últimos tempos. Somos um país refém de um único modal de transporte, refém de uma única empresa petrolífera que não tem que se preocupar com concorrentes e refém de um Estado cada vez mais corrupto e ineficiente que encontrou no aumento constante e indiscriminado dos impostos a sua única forma de autossustentação. Agora percebemos que somos também reféns de uma única categoria, com poder de interromper inteiramente o fornecimento de alimentos, produtos e combustíveis, de parar o país e, assim, de escancarar a fraqueza e a incompetência de seus líderes. O que estamos vivenciando hoje é, literalmente, o OPOSTO do liberalismo. Enquanto não entendermos isso, não teremos a menor chance de nos tornarmos uma nação mais competitiva, mais próspera e mais justa.
Perguntam-me se sou a favor ou contra a greve dos caminhoneiros. Depende de qual greve estamos falando. Sou inteiramente a favor da greve de uma classe que trafega em estradas mal conservadas, que paga caro por um combustível de qualidade duvidosa, que busca a redução da absurda carga tributária incidente em todos os produtos e em todos os processos produtivos vigentes no Brasil, que enfrenta a concorrência desleal de empresas amparadas pelas benesses concedidas por um governo que sabe muito bem a quem concedê-las. Mas sou contra a greve de uma classe que engloba pessoas bem mais influentes e poderosas do que os bravos caminhoneiros que rodam pelo país. Uma classe que, assim como tem feito ao longo de décadas, mantém seu lobby cada vez mais ativo e consegue, dessa forma, os subsídios específicos que são arcados pelos demais setores da sociedade civil, as reduções de impostos incidentes exclusivamente sobre a sua atividade, em detrimento de todas as outras, a manutenção de um modal de transporte único em um país continental, com enorme potencial para criação e ampliação de malhas ferroviárias e fluviais.
É exatamente aqui que precisamos estar atentos. Queremos lutar por liberdade ou por privilégios? Por igualdade de direitos e oportunidades ou pela manutenção de um sistema em que muitos pagam pelas regalias de poucos? Por uma economia verdadeiramente liberal ou por um socialismo travestido de capitalismo selvagem? Pela manutenção de um Estado grande, caro e incompetente ou pela redução generalizada da carga tributária do país, o que, na prática, tornaria impossível o velho patrocínio da ineficiência? Por mais uma corriqueira greve pontual ou pela alteração definitiva dos protagonistas da sociedade brasileira?
Que o legado desta imensa crise seja, acima de tudo, uma nova visão sobre o país e sobre os caminhos a serem trilhados. Que tenhamos consciência do poder que temos como sociedade, mesmo diante de um Estado opressor, centralizador e extremamente acomodado. Enfim, que não nos falte o desejo de mudança e, principalmente, a certeza de que qualquer alteração de rumo depende exclusivamente de cada um de nós!