Quase instantaneamente após a ocorrência de mais um crime bárbaro no triste cotidiano do país, as primeiras sentenças já foram proferidas no tribunal do abecedário. Enquanto a maioria das turmas apenas lamenta e aguarda as investigações, turmas A e Z apontam, sem nenhum constrangimento, os autores da execução.
Os membros da primeira colocam a culpa na própria vítima e nos bandidos que, segundo eles, ela defendia. Mulher de traficante, eleita com campanha patrocinada por gangues, apenas colheu o que plantou. Quem trabalha com criminosos, não poderia ter mesmo outro fim. Foi morta pelos mesmos marginais que, por tantas vezes, ela chamou de vítimas da sociedade, de merecedores de uma segunda chance, de gente explorada por um sistema capitalista injusto e cruel. No final, a maior vítima acabou sendo ela mesma. Nada mais justo.
Os membros da turma Z, ao contrário, já decidiram que ela foi morta pela polícia opressora que só mata mulheres, negros, pobres e homossexuais. Foi morta inclusive com a conivência do exército que chegou há pouco e já mostrou a que veio. Gente que mata com prazer, no intuito de manter a sociedade oligarca vigente no país nos últimos 500 anos. Foi morta porque sempre denunciou a perseguição que uma classe apartada da sociedade sempre sofreu. Sua morte demonstra de maneira cristalina o quanto é necessário o fim da polícia racista que impede a existência de um estado de direito verdadeiramente justo. E sua figura agora alcançou a alcunha de mártir de uma revolução que não pode mais ser postergada.
Sentenças proferidas, turmas A e Z aguardam com ansiedade as investigações e alardeiam quaisquer pequenos indícios que indiquem uma direção ou outra. Indícios que podem ser absolutamente falsos, afinal, para elas, justeza e coerência não têm a menor importância neste caso. Aliás, têm em algum?
Como sempre acontece, caso as investigações oficiais caminhem para uma teoria ou outra, mesmo que moderadamente, o arsenal de comemorações já está preparado. Quem “vencer” esta batalha já tem sua estratégia preparada. Um arsenal de links, memes, textos e dados celebrando a “vitória” já está sendo montado. Ao “perdedor”, caberá também a preparação de outro arsenal, que irá envolver denúncias da parcialidade das apurações, ataques às reputações dos investigadores ou, em última instância, esquecimento voluntário de uma vítima que não mais se presta à causa. A verdade, aqui, é o que menos importa.
E, enquanto isso, no abecedário, as turmas de todas as demais letras sonham com o dia em que todas as palavras poderão ser escritas sem as letras A e Z. Será que é sonhar demais?