No baú de ferramentas (literárias)…

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1. Fecho os olhos. Tudo ao meu redor parece mais claro. Vejo o que se esconde na luz. Vejo o que se mostra nas sombras. Assombro. Assombração. Nada mais faz sentido. Nada mais a fazer. Nado. Nado contra o clichê da correnteza. Nado pra ganhar das ondas, e perder pra mim mesmo. A mesmice me assusta. Ou será que me assalta? Sobressalto-me. Salto pra longe. Pra próxima longitude. Atitude é agora. Quando chegar a hora, vou pular de cabeça.

2. Eu não tinha sede. Ela me trouxe um copo d’água. Agradeci, mais por instinto que educação. Pousou o copo ao lado do computador, atrás dos muitos livros abertos, das folhas de papel amassadas. Perguntou se eu tinha fome. Neguei, agora com um pouco mais de impaciência. Eram os prazos gritando por mim. Disse-me que deixaria a comida na geladeira. Dei de ombros. Ela acariciou meus cabelos, beijou-me a testa. “Deus te abençoe, filho”. Retribuí com um sorriso. Voltei ao escritório na semana seguinte, na tentativa de vencer o luto. O copo sobre a mesa estava vazio. Quanta sede eu sentia.

3. Tímido, ele não gostava de se mostrar. Vestia roupas discretas, e escondia seu rosto atrás de óculos que só serviam para disfarçar a miopia da alma. Dizia ser modesto, mas sabia que modéstia é apenas uma soberba que ainda não aprendeu a se olhar no espelho. Sonhava com o dia em que seria realmente livre. Às vezes, imaginava-se protagonista da vida, como se a vida tivesse roteiro e trilha sonora. Mas nunca se dispôs a escrever, tampouco a compor. Tomou para si os versos feitos por outro: “preste atenção, o mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos, tão mesquinho, vai reduzir as ilusões a pó”. Jamais se arriscou a cantar.

4. A criança sorriu. A mãe não notou, entretida com os vídeos do Instagram. O pai só tinha olhos para o crepúsculo, e não se virou para apreciar a aurora. O gari que varria a praça também não viu, pois não via a hora de chegar em casa. Os pombos olhavam para o chão, em busca das migalhas jogadas pelo ancião. A idosa que o acompanhava tinha o olhar fixo no nada, e nada vira. Somente eu tinha visto o sorriso da criança. E, naquele momento, me senti a melhor pessoa do mundo.

5. – Sabia que você iria aparecer.
– Virou vidente agora?
– Nem precisava. Você sempre aparece.
– Posso ir embora, se quiser.
– Ui, ficou magoadinho, é?
– Só quando você dá bola demais pros outros.
– Nunca te prometi exclusividade.
– E quem é que tá te cobrando isso?
– Então deixa de ser ciumento.
– Ciumento? Confio no meu taco.
– Ih, lá vem. Conheço essa sua lábia.
– Conhece e gosta, né?
– …
– Sabe que esse seu sorriso me desmonta?
– Ah, para, vai…

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