Tenho medo da noite. Não sei se pela falta ou pelo excesso das sombras. Talvez seja pelo silêncio lá de fora, tornando ensurdecedora a algazarra de tudo que vive aqui dentro. Quem sabe pela imprecisão das feições, pela indecifrabilidade dos olhares, por tudo que deixa-se desvendar quando a luz vai-se embora. É no escuro que os olhos se revelam, que os semblantes se denunciam. Não há como enxergá-los. Hoje, prefiro a hipocrisia da claridade, que ilumina apenas o que se permite ser visto. O sorriso falso da manhã não me apavora tanto quanto a sisudez da madrugada. Os disfarces existem a pedido da luz. A escuridão, ao contrário, insiste em delatar os que buscam se encobrir. Se o dia é mentira, a noite é a verdade que ninguém quer saber.
Tenho medo da noite. Talvez pelos ecos que insistem em me fazer companhia, ou pela corrente de vento que se esgueira entre as frestas da porta da varanda. É na quietude da noite que me inquieto com os estralos do piso de madeira recém-encerado, com as gotas de chuva tamborilando no peitoril da janela, com o zumbido de pernilongos tão sedentos quanto fui um dia. É sob o véu da noite que a lua pálida enxerga meus vícios, minhas frustrações, meus arrependimentos. É a noite que se compraz em me lembrar dos toques agora inacessíveis, da boca escura tão distante da minha, das mãos tingidas de breu. A noite me tortura tal qual minhas próprias escolhas.
Tenho medo da noite. Houve um tempo em que as trevas eram aliadas. Houve um tempo em que a visão dava – de bom grado – lugar ao tato, em que a língua acessava segredos inatingíveis a qualquer centelha do dia, em que gemidos e sussurros desafiavam os mais sagrados silêncios. Houve um tempo em que meu cansaço era saciado pelo aconchego, em que meu coração descompassado me embalava, em que o repouso de mãos sobrepostas era recompensa. Houve um tempo em que o luar também era cúmplice.
Tenho medo da noite. Talvez por sua irritante intimidade com a solidão, sua inexorável mudez diante de tantas lágrimas, sua arrogante indiferença às não tão silentes súplicas. Tenho medo da noite. Quisera eu ser capaz de fechar os olhos para não vê-la se insinuando, camuflada de entardecer. Pudera eu ter brilho próprio, e impedir que o lusco-fusco viesse para eclipsar o que resta do meu dia. Quisera eu que o horizonte fosse intransponível por um instante.
Tenho medo da noite, e o crepúsculo se aproxima…